A possível Wendy

45 6 1
                                    

    Fazia dias em que eu me perguntava a possibilidade de amar alguém que nunca tinha visto pessoalmente. Nunca havia tocado. Nunca escutara sua voz. Papai repetia diversas vezes que aquilo não passava de um conto antigo que minha mãe usava para me fazer dormir. Peter Pan nunca deixou de ser uma fantasia boa para mim. Fechar os olhos e ser tomada por um sonho aonde nós dois sobrevoamos a enorme Londres é uma das partes favoritas de meu dia. Tinha vezes que eu forçava e encarar meu rosto magro no espelho e sussurrar "Wendy" diversas vezes. De tempos em tempos meus irmãos se forçavam a me chamar assim, talvez por serem obrigados, quando estou com a cabeça nas nuvens, é difícil me trazer de volta. Esqueço o fato de meu nome começar com "N", diferente do dela, volto meu pensamento para a hipótese de que são algumas letras de diferença, e que, se adicionar mais uma perna e virá-lo de ponta-cabeça, vira um "W" perfeito. Tudo fazia sentido para que eu fosse a verdadeira Wendy. Tinha dois irmãos. Uma mente criativa. Cabelos castanhos... Só estávamos congeladas em épocas diferentes. Mamãe já teve a oportunidade de me apresentar contos de fadas diversos, mas isso fora esquecido no passado. Vários parentes me fizeram acreditar de que eu já era uma moça crescida, que tinha de empinar o nariz e olhar para o futuro, parar de remendar histórias sem sentido e assumir o posto que me fora entregado. Faltava apenas alguns meses para eu (nem tão finalmente) completar os meus dezesseis anos. Fazia exatos dez anos que eu me apoiava entre uma cadeira e um baú para observar a janela. Esperando ele chegar. Nunca aconteceu, mas, por algum motivo, eu não consigo deixar de ficar uma noite na janela. Talvez ele só tenha se atrasado, não?

    Estava esperando que meus irmãos, Caleb e Aerys, viessem me confortar nessa manhã. Só esperando mesmo. Fazia alguns segundos que eu caminhava pelas ruas mais movimentadas, com o frio batendo tão forte em meu rosto que pareciam pequenas agulhas furando cada poro amostra. Nessa altura, tinha uma certeza neutra que meu nariz já havia se tornado um semáforo fechado, apesar de estar envolta em tecido o suficiente para aquecer meu colégio inteiro. Os dois andavam ao meu lado. Caleb sempre quieto, segurava minha mão e grudava em meu corpo de um jeito surreal, talvez estivesse congelando de frio, ele tinha apenas onze anos, já Aerys andava na frente, nem tão longe, nem tão perto. Seus sentidos aguçados pareciam fazer com que seu corpo desviasse de qualquer coisa a sua frente, até mesmo um embrulho de bala minúsculo; o que ele tinha de parecido de minha mãe, ele tinha de diferente de mim e do meu pai. Os cabelos loiros dele chegavam a pegar perto de seus ombros, e seus olhos azuis não suportavam uma claridade muito forte, certas vezes, quando íamos a praia, meu irmão era forçado a ficar de óculos escuros o dia inteiro, e mesmo assim, quando voltávamos para o hotel, seus olhos estavam vermelhos o bastante para parecer que ele nadou em cloro puro por horas. Caleb e eu éramos bem parecidos, se não for contar com o diferente comprimento dos cabelos. O dele era um topete que nunca parava quieto, sempre indo na direção que o vento batia. Já nossas estruturas e olhos eram bastante parecidos, nós dois tínhamos os ombros retos, como tábuas de passar roupa, nossos olhos eram castanhos claríssimos.

    Meu irmão caçula quase sempre me lembra um pouco de Peter, até nós assuntos mais esquisitos. Ele sempre acreditou nessas histórias e vivia implorando para eu ler dois, três e até quatro livros na hora de dormir. Eu sempre lia, com prazer, mas de repente ele se desinteressou pelas histórias de contos de fadas da Disney e passou a gostar de coisas mais brutas, daquelas que, se terminarem com um final feliz é porque foi um livro originado de uma trilogia enorme. Do mesmo jeito, eu não cessava as leituras, todas as noites devorávamos livros juntos. Aerys participava poucas vezes, já que estava entrando em um relacionamento amoroso com uma menina inexpressiva, da minha idade. Um ano mais velha que ele.

    Toda manhã tínhamos que esperá-la chegar, tinha dias que ela se atrasava até demais, nos fazendo perder a primeira aula, e fazendo Caleb perder o café-da-manhã de graça. Os dois imploravam para que eu não fosse embora sozinha ou entupi-la de xingamentos cruéis.

    Até quando eu não devia pensar nele, eu pensava. Imaginava ele sobrevoando por cima de nós, junto com Sininho, e, muito talvez, acompanhados dos Meninos Perdidos. Tinha dias que eu não conseguia aguentar a ansiedade e começava a rabiscar em meu caderno, de como a Terra do Nunca me aguardava e quais seriam as cinco coisas que eu faria primeiro. Até hoje eu não consegui terminar, com receio de que se eu me precipitar muito, posso acabar mudando um futuro improvável.

— Está com a cabeça nas nuvens de novo? - Caleb me chamou a atenção, usufruindo de seus olhos impiedosos para me puxar a uma loja de doces.

    Sem condições de processar tudo, eu apenas balancei a cabeça. Aerys nos acompanhou logo atrás.
— Não temos tempo para doces, irmãos. Temos que seguir o mais rápido possível, Amber não gosta de esperar.

    Não discordamos e nem concordamos. Nosso olhar já dizia tudo: ela não gosta de esperar? E enquanto a nós? Desde quando gostamos?

Havia certos momentos em que eu queria me transformar em uma bomba relógio e ficar bem perto de Amber, até ela virar uma uma pilha de ossos. Infelizmente, não dominei essa arte ainda.
— É só um doce, Aerys! Já, já nós alcançamos você! - Consegui sorrir e acenar, como aquele desenho famoso.
— Sim! Só um doce! - Caleb seguiu meu encalço, acenando e sorrindo. - Além do mais, saímos mais cedo hoje, temos tempo para muitas coisas!

    Meu irmão do meio não disse nada, apenas parou ao nosso lado e colocou o capuz sobre a cabeça, selecionando seus doces desejados. Enquanto eles caminhavam ao caixa, tive tempo o suficiente para tirar aquele velho livro daquela história sem fim e reler. Reler. Reler. Reler. É uma das coisas que eu mais tenho feito depois de terminar o ensino fundamental. Mesmo que eu queira esquecer tudo isso (e quero mesmo), eu não consigo. É um típico drama de adolescente apaixonada, que você ama quem nunca vai poder te amar de volta. A cada dois meses eu era obrigada a ler livros que não se comparavam aos contos de fadas tradicionais. Mamãe comprava daqueles em que as outras garotas com minha idade costumavam amar, chorar e gritar. Eu não gostava. Não via sentido em nada. Por que ele morreu, sendo que era ela quem tinha o câncer mais perigoso? Se o ataque nos órgãos aconteceu com ele, por que ela não tentou ao máximo solucionar os problemas, como ele fez? Tudo bem, eu entendo que ele conseguiu ter a proeza de todos os seus sistemas pararem de funcionar, mas... Não faz sentido!

    Mesmo não gostando tanto, sempre leio esses tipos de livro. Tento me apaixonar por outro romance que não envolva duas crianças, sendo que uma delas recusa ficar no melhor lugar do mundo.

— Ei! Ei! Terra chamando Nancy! - Fui solta de meus pensamentos por Aerys, cutucando meu ombro tão forte que eu pensei que ele ia afundar.

— Peter Pan não está disposto no momento, deixe seu recado após o bip! Biiiiiiiip.

    Depois de ouvir as reclamações dos dois e esperar a namorada chegar, caminhamos na pressa para o colégio, no caso, eu estava andando mais rápido do que o necessário. Meu trabalho era levar meus irmãos mais novos para a escola e, em seguida ir para a minha. Não era tão complicado, já que era apenas para subir alguns quarteirões, mas hoje era segunda-feira, o que indicava ser um dia bem movimentado para os executivos e os comerciantes que viviam gritando pelas ruas de nossa cidade, o que não deixava de ser uma música para meus ouvidos irritados. Hoje também era meu primeiro dia de aula, mas não era em uma escola nova, e eu também não era a aluna que não mantinha contato físico com outros humanos de minha espécie (falando assim, me sinto um alien visitando esse planeta novo). Estava esperando ser bombardeada de perguntas de amigos sobre como foram minhas férias, mas nada disso aconteceu. Minha melhor amiga apenas passou um braço ao redor de meu pescoço e estalou um beijo na minha bochecha, caminhando junto comigo.

— Esse ano não vou deixar você ter fantasias de Peter Palito! Vamos ser as Meninas Perdidas!

Pingos de TintaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora