Capítulo 07 - Como visualizar um futuro quando você está presa ao passado?

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Tenho muito pouco a fazer, acompanho os pacientes internados, dou algumas altas e encaminhamentos, e atendo casos simples na urgência. Tudo indicando que as coisas vão continuar tranquilas, mas não ficam. No meio do dia recebemos um telefonema: uma mulher em trabalho de parto num povoado de Novo Horizonte, mas houve um deslizamento de terra e não há como trazê-la para o hospital. O obstetra plantonista está realizando uma cesárea e já tem outra paciente em trabalho de parto aguardando.

Tento manter o estado de ânimo de personagem de filme, mas não dá. Tenho acompanhado um ou dois partos por semana, alguns naturais, outros por meio de cesárea, mas sempre no hospital, com todo aparato profissional e material necessário, incluindo assepsia. Como vou fazer isso fora do hospital nessas condições? Respiro fundo, me perguntando o motivo pelo qual não trouxeram a mulher assim que a primeira contração surgiu. Com o telefone ainda na mão a Clarice me explica tudo. Uma equipe precisa ir até lá.

– Como? Se a estrada está bloqueada? – Indago.

– De lancha. – É resposta.

– Muito bem. – Seja o que Deus quiser. – Providencia isso para mim. Vou mandar preparar o material e a equipe. – Dou as costas e então lembro. – E avisa o outro plantonista que ele vai ficar aqui sozinho.

Ainda bem que a Marília estava lá, não sei como faria isso sem sua presença. É ela quem escolhe os profissionais de plantão que tem mais experiência em obstetrícia, pediatria neonatal e situações de emergência e lidera a equipe que vai fazer esse atendimento.

Nosso objetivo é tentar conduzir o parto lá mesmo no povoado, mas se não houver condições teremos que trazer a parturiente na lancha. Em poucos minutos, estamos na ambulância que nos levará até o cais. A chuva está forte e o mar revolto. Rezo para chegar ao tal povoado viva.

Apesar das ondas fortes, alcançamos o lugar indicado. A mulher está em casa, mas o povoado é pequeno e rapidamente chegamos até ela. A situação é crítica, a bolsa já rompeu, ela está com dilatação, mas pelo exame clínico concluo que a criança não está na posição. Apesar de conduzir partos, não sou especialista, e não sei fazer a manobra para virar o bebê. Por que ninguém tinha visto isso na ultrassonografia e agendado uma cesárea ou encaminhado a mãe para um obstetra?

– Onde a senhora fez o pré-natal? – Indago.

– Não fiz, não, doutora.

– Como assim?

– Aqui a gente só vai para cidade na hora de parir. É muito longe, sai caro, tenho outra criança para cuidar.

Eu me sinto no interior do Nordeste, novamente. Eita, Brasil sem rumo. Olho para Marília, que entende minha decisão só com o olhar.

– Nós vamos ter que levá-la para o hospital conosco. Preciso fazer uma cesárea. – A mulher fica bastante nervosa. Peço para Marília acalmá-la e vou atrás de um telefone para contatar o hospital porque o meu celular está sem sinal.

Sou levada até a casa do vizinho, enquanto Marília mede a pressão arterial e os sinais vitais da parturiente. Apesar de tudo ela é nova, 27 anos, e aparentemente não tem nenhum problema de saúde. Ligo para o hospital e peço o centro cirúrgico, uma equipe e o anestesista preparados a nossa espera. A mulher é colocada na lancha e eu troco algumas palavras com o marido antes de entrar.

– Quantos filhos vocês já têm?

– Só um.

Mordi os lábios. A situação era pior do que eu pensava.

– É o seguinte, não vou mentir para o senhor, talvez o bebê não sobreviva à viagem, e a vida da sua esposa está em risco. – Ele faz uma cara de dor. – O senhor acredita em Deus?

Confissões de HeloísaWhere stories live. Discover now