Cap.10

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Mike cozinhou o espaguete e fez o molho vermelho com carne moída. A receita sofisticadaenvolvia dourar a carne, acrescentar molho de tomate Barilla e mexer. A comida foiservida com ketchup e queijo parmesão. Sanna se serviu de Coca-Cola, já que era sextafeira,e Mike, de uma taça de vinho tinto, porque estava com vontade.— Como foi a escola hoje?— Bem.— O que você fez?— Não sei, um monte de coisas.Sanna colocou uma garfada na boca.— Mas você gosta da escola, não gosta?Ela fez que sim enquanto mastigava, cuidando para manter a boca fechada.— Isso é bom — disse Mike. — Você diria se não estivesse feliz, não é?Mal acabou de perguntar e se arrependeu. Era uma pergunta idiota. Ansiedade excessivada parte dos pais que poderia terminar como uma profecia autorrealizada. Felizmente, ospensamentos de Sanna estavam em outro lugar. Pelo menos dessa vez, ela estavacomendo rápido e se mexendo ansiosamente na cadeira.— Terminei — anunciou e ficou de pé.Ela colocou o prato na pia e voltou para a TV.Mike arrumou a cozinha e foi atingido pela culpa dos pais em relação à TV. Então foiaté a sala de estar e se sentou ao lado da filha no sofá. Era o DVD de um desenhoanimado que eles haviam comprado. Sanna já tinha visto o filme uma centena de vezes eo conhecia de cor e salteado. Por alguma razão, ela gostava de rever filmes. Como se seumaior prazer fosse saber o que ia acontecer.— Essa parte é boa — disse antecipadamente, recostando-se em Mike.E então riu de algo engraçado que ela sabia que estava por vir. Mike sorriu do luxo depoder se sentar ao lado da filha e assistir a um filme idiota que, de outra maneira,simplesmente passaria despercebido por ele.— Vamos jogar? — perguntou Sanna, enquanto os créditos passavam.— Claro.Ela foi e voltou com uma pilha de produtos derivados de vários sucessos do cinema. Asregras eram difíceis de compreender, e o valor de entretenimento, zero.— Vamos construir uma torre em vez disso?— Você sempre quer construir torres.— Eu gosto de torres.— Ah, tudo bem.Sanna suspirou enquanto ia até as caixas de jogos e voltava com uma bandeja cheia deblocos de construção em vários formatos e tamanhos.O objetivo era construir uma torre o mais alta possível. Cada um colocava um blocopor vez, e quem derrubasse a torre perdia. Mike era cuidadoso para perder de modoconvincente. Ele não tinha paciência com pais que competiam com os filhos.Isso foi motivo de discussão com alguns colegas Um deles se recusava a deixar osfilhos ganharem. E era a coisa certa a ser feita, argumentava o colega, porque um de seusfilhos havia sido selecionado recentemente para a equipe nacional júnior de handebol.Mike não compreendia essa lógica. Com a melhor boa vontade do mundo, ele nãoconseguia entender o sentido de jogar handebol para a equipe nacional júnior.Ele e Sanna fizeram torres com blocos de construção até a hora de ir para cama.— Quando a mamãe vai chegar? — perguntou Sanna, enquanto se ajeitava debaixo dacoberta acolchoada.— Logo — disse Mike.— Logo quando?— Logo mesmo.— Quero ficar acordada até ela chegar.— Pena, mas não vai dar.— Por quê?— Porque eu não sei exatamente a que horas ela vai chegar. Quando você acordaramanhã de manhã, ela vai estar na cama, eu prometo. E você vai ter que fazer silêncio,porque a mamãe vai estar cansada, não é?* * *Ylva ainda estava deitada na cama. Ela não conseguia se levantar. Algumas horas atrás,ela havia desejado aos colegas de trabalho um bom fim de semana e descera a ladeirapara pegar o ônibus para casa. O homem e a mulher estavam esperando por ela e lheofereceram carona. Ylva não pôde recusar. Você realmente não pode, não é?, quandovizinhos novos que se mudaram há pouco lhe oferecem carona.Tudo havia sido planejado, inclusive o estupro. O porão em que ela estava havia sidoconstruído especialmente para ela.Ylva estava a apenas cem metros da própria casa, onde seu marido e sua filhaesperavam por ela.Ou talvez não. Ylva tinha mencionado que talvez saísse para tomar uma taça de vinhocom os colegas depois do trabalho. Mike teria coragem de ligar? Provavelmente não. Elenão iria querer parecer fraco. Quando ele perceberia que algo estava errado?Ylva rolou de lado com alguma dificuldade. O corpo estava dolorido, e era difícil semexer. Ela precisou de toda a energia apenas para tentar, e ficou deitada ali, respirandocom dificuldade.A TV estava ligada.Estava escuro na rua, as luzes dos postes brilhavam em uma espécie de halo brancoque tornava o resto do quadro escuro e cinzento. Era difícil ver a silhueta da sua casa,mas Ylva viu que a luz no quarto de Sanna ainda estava acesa.Quanto tempo levaria para Mike ligar para a polícia?Será que a soltariam antes disso? Eles não podiam mantê-la ali.Podiam?O pensamento era demais para ser assimilado. É claro que ela o denunciaria. Ylvadenunciaria a ambos. O que havia acontecido vinte anos atrás não importava realmente.Eles não conseguiam entender que aquilo a atormentava também? Não da mesmamaneira, obviamente. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis. De certa forma, astornava piores. Eles não tinham o peso da culpa, nunca precisaram pensar no que poderiamter feito.Não se passara um dia sequer sem que Ylva tivesse culpado a si mesma. Ela passarapor todos os estágios de negação e desprezo por si mesma, sem encontrar paz. Ylvasimplesmente teria de conviver com isso.Ela conseguiu se levantar da cama, caminhou tropegamente até a porta, girou amaçaneta e puxou. Estava trancada. Havia um olho mágico na porta. Ylva tentou olharatravés dele, mas percebeu que fora instalado ao contrário. Para que eles pudessem olharde fora para dentro.Ela chutou a porta, mas apenas machucou o pé, então começou a bater com as mãosabertas, na esperança de que o som fosse ouvido do outro lado. Parou para ouvir passos,mas só escutou o próprio choro. Terminou batendo na porta histericamente e gritando omais alto que podia.Ylva não saberia dizer por quanto tempo fez isso, mas, quando finalmente virou decostas para a porta e despencou no chão, não conseguia sentir as mãos.Chorou sem parar, até que olhou para cima e descobriu que o porão havia sidoreformado como um apartamento conjugado.Ela se apoiou com as mãos abertas no chão e se levantou com grande dificuldade. Foiaté a pequena cozinha e abriu a geladeira. Estava vazia, exceto por meio tubo de queijocremoso Primula.Havia uma porta na parede oposta à cozinha. Ylva a abriu. Um banheiro com privada,chuveiro e pia. Nenhuma janela, apenas um exaustor, alto na parede.Ela fechou a porta e olhou em volta. As paredes eram feitas de blocos de concretorebocados. O quarto tinha no máximo uns vinte metros quadrados, apenas um cantinho doporão.Ela se lembrou de todas as caixas de materiais de construção que haviam sidodeixadas do lado de fora da casa, esperando pelos novos proprietários. Os poloneses, quefalavam muito pouco sueco, haviam tentado responder às perguntas dos vizinhos curiosos.O porão. Eles estavam fazendo algo no porão. Construindo um estúdio de música, elesachavam.* * *Quando ele terminou a história, Sanna ficou ali deitada, traçando o desenho do papel deparede com o dedo, como fazia normalmente. Ela perguntara de novo quando sua mãechegaria, e Mike se sentira quase culpado.— Eu não sirvo? — ele disse isso como uma piada, mas, por trás das palavras, haviamágoa. — A mamãe vai voltar logo. Ela só saiu com alguns amigos. Os adultos tambémprecisam se divertir com os amigos às vezes.Mike achou que soou falso quando disse isso, mas Sanna não pareceu reagir.Quinze minutos depois, ele acordou e viu que ela estava dormindo. Ele esperava que elativesse adormecido antes dele, mas tinha suas dúvidas. Cuidadosamente se levantou sobreum cotovelo. As molas da cama rangeram e gemeram sob seu peso, mas Sanna continuoudormindo.Mike deixou a porta do quarto aberta. Ele se lembrava do sentimento de horror quandoera criança e acordava na escuridão total, sem fazer a menor ideia de onde estava. Nãoqueria que Sanna passasse pela mesma coisa.Ele desceu até a cozinha, abriu a geladeira e não encontrou nada tentador. Procurou nosarmários e ficou contente ao descobrir um saco meio cheio de amendoins, atrás da caixade cereal. Achou que os merecia, como um bravo pai solteiro por algumas horas, e seserviu de um uísque para acompanhá-los.Mike levou os amendoins e a bebida para a sala de estar, ligou a TV e assistiu ao fimde um filme que já vira. Era melhor do que ele se lembrava e lhe deu uma pista de porque sua filha sempre queria ver o mesmo desenho.Quando o filme terminou, ele passou pelos canais sem encontrar nada mais paraassistir. Então desligou a TV. Não havia cortinas na sala de estar, e o brilho azul datelevisão àquela hora da noite poderia ser mal interpretado.Pegou o celular, mas não havia chamadas perdidas nem mensagens pedindo desculpas.Não era justo que ela não tivesse feito contato. Afinal de contas, ela não havia dadocerteza de que sairia à noite. Ela deveria ter ligado para dizer se voltaria para jantar ounão.Por fim, Mike decidiu ligar para ela. Oficialmente para ter certeza de que estava tudobem e para insistir que ela pegasse um táxi para voltar para casa. Um simples cuidado,ele se convenceu, e nada mais. Ele não estava ligando porque estava de algum modopreocupado que ela pudesse estar piscando para alguém, ou mordendo o lábio daquele jeitodeliberadamente provocativo.Mike repetiu para si mesmo exatamente o que iria dizer antes de pegar o telefone.Só fiquei um pouco preocupado. Achei que você ia ligar para dizer se vinha jantar ounão. Não, não, ela dormiu faz tempo. Tivemos uma noite divertida, construindo torres. Semproblema algum. Vou para a cama agora. Você pode fazer silêncio quando chegar? Aí euacordo cedo e vou à padaria pegar uns pãezinhos frescos. Divirta-se. E não esqueça depegar um táxi para voltar para casa.Mas, em vez de vários toques e então finalmente a voz de sua mulher, com músicaalta, risadas e gritos felizes ao fundo, a chamada foi direto para o correio de voz. Umavoz automatizada lhe informou o número para o qual ele havia ligado, e Mike seconcentrou.— Oi, sou eu — disse. — Seu marido. Só pensei em checar como você estava. Presumoque tenha saído com o pessoal do trabalho. Enfim, vou para a cama agora. Pegue um táxipara voltar, por favor. Eu tomei um drinque e não posso dirigir. A Sanna está dormindo.Grande abraço.Ele desligou e imediatamente se arrependeu da mensagem. Não soou natural, e dizer"seu marido" pareceu inseguro, como se ele estivesse nervoso e dando uma indireta paraela, do tipo "não faça nada estúpido".Mike ficou ali sentado, olhando para a imagem exibida na tela do celular. Era uma fotode Sanna e Ylva no cais de natação em Hamnplan, pingando água, sorrindo alegrementepara a câmera, com o litoral dinamarquês ao fundo.Oi, sou eu. Seu marido..  

Não Voltarás (Hans Koppel)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora