01. Fiz o possível por mim

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Combinámos no jardim que frequentamos assiduamente. Algo em mim se aligeirou quando ele próprio sugeriu o local. Ao menos aqui, entre desportistas, agregados familiares alargados, amantes da natureza e transeuntes de circunstância, a decência limita as demonstrações públicas de afeto, salvaguardando-me e ao meu propósito para este encontro.

Sento-me no banco que ele sabe de cor como alcançar. Cheguei cedo, mas era essa a minha intenção. Queria acalmar a ansiedade e angariar coragem. Porém, em vez disso, vejo-me forçada a recordar como tudo começou, não sei se pela consciência pesada, se pela mania que tenho de repensar tudo o que aconteceu para ensaiar hipóteses e cenários das coisas que estou prestes a enfrentar. Escusado será dizer que nada do que acontece corre como eu idealizo. Ser confiante dentro da minha cabeça não me torna subitamente menos constrangida quando tenho de dar a cara para resolver os meus problemas.

Estávamos na mesma equipa, a trabalhar no mesmo projeto. Já nos conhecíamos antes disso porque tínhamos entrado na empresa ao mesmo tempo, mas até nos terem colocado a partilhar responsabilidades, só trocávamos cumprimentos cordiais e conversas de circunstância quando em grupo.

Naquele dia, partilhávamos tanto o ónus das nossas conquistas como dos nossos erros. Estávamos ambos igualmente aterrorizados com a nossa asneira conjunta num projeto de milhares de milhões, escarrapachado num relatório que tivemos a bela ideia de remediar em segredo antes de ser enviado para o CEO, a fim de tentar salvar a nossa posição na farmacêutica multinacional.

— O que é que estão a fazer aí? — perguntou-nos uma voz de súbito, num sotaque nortenho carregado, surpreendendo-nos a ambos.

Havia uma caça ao homem nas instalações naquele momento. Não tinha sido comunicado oficialmente, mas os rumores de corredor são sempre mais rápidos e persistentes que as novidades de altifalante: tínhamos um espião entre nós. Alguém vendia segredos internos à concorrência, roubando as cotas de mercado que julgávamos poder assegurar com os nossos projetos mais inovadores. Aquele projeto em particular tinha mais protocolos e rotinas de segurança que uma cebola. E nós tínhamos acabado de ser apanhados encavalitados um sobre o outro junto ao terminal de registos, a tentar não esfodaçar a hipótese multimilionária que se esperava tornar a nossa empresa líder de mercado uma vez mais.

Para um qualquer observador, tínhamos a culpa pintada na face.

— Dou-te 20 paus se seguires a minha deixa — sussurrou-me ele, demasiado perto do meu ouvido. O pedido saíra agressivo, não por algum tipo de hostilidade, mas por urgência e pânico.

Espionagem corporativa pode acarretar multas avultadas e pesados anos de prisão para os condenados. Mesmo que provassem a nossa inocência, certamente perderíamos aquele emprego e ficaríamos com a mancha da dúvida para sempre associada ao nosso nome. Provavelmente nunca mais poderíamos voltar a exercer numa farmacêutica em ambiente corporativo, o que arruinava as nossas carreiras de sonho.

Como lhe ofereci um silêncio confuso, ele apressou-se a preenchê-lo.

— Apanhaste-nos, Miriam — disse em voz alta, recuperando espaço entre nós para se aproximar da intrusa. Fosse a situação outra e eu teria ficado aliviada de já não o ter a respirar na minha nuca, mandando o ocasional bitaite sobre a forma como estava a violar protocolos pelo nosso couro. — Eu sei que não devíamos estar com preliminares no local de trabalho, especialmente no laboratório, mas não consegui tirar as mãos de cima da Samara...

Olhei-o, chocada. Ele não fez caso da minha reação, pelo que acabei a encarar a Miriam, que me estudava de cima a baixo. Estava a avaliar-me e à mentira que pairava no ar.

Engoli em seco o mais discretamente que consegui. Era tudo ou nada.

— Eu disse-te que nos apanhavam, amor!

Foi a vez dele se sobressaltar. Não estava à espera do termo carinhoso.

— Que vergonha, Miriam... — confessei, canalizando os nervos e a ansiedade de ter sido apanhada para dar fragilidade à minha voz. — Desculpa que nos tenhas apanhado assim. Eu disse-lhe... Céus, que vergonha!

— Vocês os dois?

Havia incredulidade na sua voz e na sua postura. Parecia que queríamos que acreditasse que o pedaço de céu que via pela janela atrás de nós era laranja e não azul.

Eu tinha-me afastado do terminal depois de guardar as alterações do relatório a coberto da mentira do Benjamin. Quando terminei de contornar a bancada para me juntar a eles na porta, senti o seu braço tonificado a puxar-me contra o seu corpo.

— Ela queria manter isto em segredo... Sabes como é a Samara, sempre low profile. Mas o que é que posso dizer? Não consegui resistir-lhe — terminou com um sorriso ladino, encolhendo os ombros, a mão a repousar na minha cintura, os nossos corpos quase tão colados como no momento em que tentámos comprar tempo para emendar o nosso erro.

Nasceu um silêncio constrangedor, que apenas contribuiu para os sorrisos insinceros. Depois, como que por deixa divina, o telemóvel dela tocou, obrigando-a a sair para atender com alguma privacidade.

Mortificados, estivemos um par de minutos apenas à escuta antes de respirar fundo para aliviar a tensão.

Foi ele o primeiro a dar um passo em frente, para que nos afastássemos do local do crime. Eu deixei que me guiasse para o lado de fora, a mão ainda na anca a conduzir o meu movimento.

— Achas que acredita?

— Se não te afastares — disse em surdina.

Ele tinha subido a mão da minha anca até às minhas omoplatas ao fechar a porta. Pareceu-me que iria mantê-la ali por mais algum tempo e, ciente do que estava em jogo, não objetei.

— Já agora: amor?

— Benjamin soa pouco íntimo — constatei.

— Benji serve? Todos os que me são chegados me chamam assim.

Parei e girei nos calcanhares para o encarar.

— Claro, Benji. Não te esqueças dos meus 20 paus — alfinetei, algo jocosa.

As mãos dele agarraram as golas da minha bata, mantendo-me no lugar.

— Acho que temos problemas maiores neste momento, amor.

Olhei sobre o ombro.

— Jantar? — sugeri ao ajeitar colarinho da sua camisa para entreter os olhos ávidos da Miriam e do séquito de curiosos que ela tinha reunido entretanto.

— Pago eu. — Ele sorriu-me, os dentes escondidos sob os lábios claros. — Pelos 20 paus.

[1042 palavras]

Até que o coração descubraWhere stories live. Discover now