Arco O - Capitulo I - É oficial, lascou!

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Alguém sabe a diferença entre mágica e sorte? Se procurar as semelhanças verão que ambos são supostamente ligados aos pensamentos. Mas apenas um pode ser controlado enquanto o outro é quase um dom ou privilégio. É interessante divagar a respeito, porém, por mais belo que seja, nada disso importou naquele momento. Bem, uma coisa era certa: sorte eu não tinha.


Aí, céus, será que matei ele? — Abaixei tocando sua garganta, desejando com todas as forças que o garoto estirado no chão, cujo nome eu não faço ideia, ainda estivesse respirando. Foi um choque e tanto, sempre há uma possibilidade de dar errado quando ocorre dessa forma.


Senti uma gota de suor gelado deslizar por meu rosto, puxei ar tentando me concentrar na pequena tarefa.


Ele está vivo! — Cheguei a quase a verbalizar soltando o ar dos pulmões, aliviada. Não serei presa e julgada por perturbar a paz e uma listinha comprida de delitos relacionados a essa noite pavorosa. Só preciso que ele não se lembre de nada! Isso mesmo, foi tudo um grande sonho maluco. Você nem saiu de casa... Coisinha! Será o nome do provisório dele até que saiba o verdadeiro.


Certo, então como eu carrego ele? Quer dizer, não é nada convincente o papo que ele dormiu a noite inteira se estiver em um beco nos fundos de um prédio suspeito.


Corri os olhos pelo ambiente tentando ter uma ideia brilhante que não correspondesse exatamente ao quesito. Me expor era o principal requisito do desastre completo. Foi uma felicidade só reparar no carrinho de mão encostado na parede com roda e tudo. Estava enferrujado, mas nada de fato perigoso.


Devem ter imaginado que colocá-lo dentro foi um esforço e tanto. Magrinho e pesado esse sujeito!


Por sorte, aquela hora a rua em questão estava vazia e pude rebocar o guri sem parecer que estou desovando um corpo. Ele estava vivo e inteiro, independente da possível primeira impressão.


Duas ruas adiante, já sentindo meus braços pedindo socorro, avistei um pequeno grupo de jovens. Pareciam universitários pelas feições e o porte escancarado de álcool. Nem preciso dizer que recebi muitos olhares quando passei, realizando a ilustre tarefa.


— Devagar nisso aí turma, podem acabar igual esse pateta aqui.


Notei trocas de olhares assustados, quando exercitava todo o meu sarcasmo disponível e sorria de nervoso. Ninguém, além de mim, conhece o grau de desespero presente no momento em questão, nem mesmo o quanto pedi em nome do Bibidi-Bobidi-Bu que tudo corresse bem.

Cheguei a casa dele após mais alguma caminhada e justificativas festeiras. Talvez devesse ter me preocupado com o quanto supostamente ser levado para casa bêbado afetaria a reputação do (coisinha), mas naquele momento haviam outras urgências — como arrombar a porta dele, por exemplo. Mais uma coisa a se anotar na minha lista de delitos à parte. Passei um sufoco deixando ele no sofá. O sujeito adormecido parecia ter ganho peso dormindo e isso com certeza aliviou parte do karma — assim espero.


— Certo, agora eu desapareço e ninguém vai saber ... Isso!— Disse enquanto me afastava empurrando o bendito carrinho pelo (carpete) cinza. Afobada como estava, acabei fazendo uma bela sujeira na casa, e isso me deixava realmente cismada, além do óbvio fato que, seja lá qual for o destino do rapaz adormecido, posso ter complicado um pouco as coisas.


Escutei sua respiração trepidar lá atrás e suspirei, antes de tomar a decisão arriscada, uma das mais loucas da noite.


— Ah, que seja! — Resmunguei alto e larguei "o ferrugem" no estreito quintal da frente, ao lado da lixeira. Voltei para casa e comecei a limpar a bagunça que fiz enquanto espiava se o dono da casa estava bem. Acabei com isso arrumando a cozinha, que tinha uma torre de louça, o mini-quarto dele e o banheiro. Havia tanta roupa jogada que poderia ou deveria ter sua permanência avaliada, que precisei arrumar para saber exatamente qual a cor do chão ali.


Uma faxina de consciência pesada depois, quando foi tudo enfiado em sacos e deixado no cantinho da sala, decidi jantar. É claro que estava faminta e precisaria de energias para dar o fora daqui sem ninguém me ver. Sentei no braço do sofá, tendo que me contentar com pão e ovo, porque o garoto da taz-mania não tem nada, além disso, naquela cozinha. E vou lhes falar, nem pão ele tinha uma quantidade boa...


Verifiquei uma última vez seus sinais, notando sua respiração tranquila, antes de largar aquele solitário prato na pia. Alcancei a corrente em meu pescoço, trazendo o amuleto nela para fora. Fechei a mão ao redor dele e me concentrei no meu quarto da pensão a duas paradas de ônibus adiante. A cama quentinha e cheirosa, o chuveiro do meu banheiro... Depois de uma noite maluca como essa, eu merecia muito ter um pouco de conforto. Após mexer no lixo, suar feito uma rã no sol e limpar esse lugar, precisava mesmo de um banho.

— Pela energia dos ventos e o andar da primavera, conduza-me ao ponto desejado dessa terra.

Olha, estava tudo fluindo, inclusive a energia do colar. Flocos de luz verde me rodeavam na cozinha agitando meu cabelos e aquecendo meus dedos. Nem acreditava que resolvera tudo, até porque não foi o que aconteceu.

No último instante da conjuração, um corpo passou pela porta e me encarou diretamente nos olhos.

— Mas que m...

— Fons ostium! — Disse em simultâneo.

E pronto, não terminei de escutar o que diria, e surgi exatamente onde deveria estar. De onde não deveria ter tirado meus pés hoje e talvez deva ser meu mundo todo por alguns dias. 

Entre tropeços e avessosWhere stories live. Discover now