RELATOS DA PEQUENA MORTE COTIDIANA

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CAPÍTULO 1 : deveres e mortificações

as caras que as pessoas fazem

Sou bem menos interessante do que a moça que acompanho.

Ela sim, já de cara a correr pela rua metida numa capa de chuva, cabelo claro e reto abrindo num rosto que nada tem a esconder, ainda por cima encarna um romance trágico: o homem que ama, devido a misterioso acidente, é vítima de amnésia e esqueceu-se dela.

(estou convencida de que em algum lugar exista uma fábrica dessas loiras, que se encarrega de produzi-las em série, de forma que nunca se possa escapar delas.)

Mas isso em nada diminui minha admiração por ela. Dessa moça sou mera serviçal, estou em função de suas necessidades, esse é meu papel, meu dever e meu destino, que acato sem contestar.

Estamos indo ao encontro dele, o que se esqueceu, pois como não poderia deixar de ser a moça apresenta fortes tendências heróicas e está decidida a reacender a memória do rapaz com a força do seu amor.

Ele é da mesma estúpida perfeição. A amnésia não o abateu, apenas o deixou melancólico. De torso nu, se recolhe em seu infortúnio debruçado sobre o piso branco talvez mármore de um imponente terraço sem parede nenhuma, devassado pela fria escuridão.

Ela se acerca com sussurros, explicações, lembranças.

Ele a recebe calado, manifestando-se apenas com uns olhares chateados para o chão, sereno e galante como se espera de alguém de torso tão esplêndido.

Mas não se lembra dela, aquela a quem amava. Logo nada resta a fazer a não ser beijá-lo. Mesmo que sua consciência não a identifique, talvez seus corpos se reconheçam. Ele fecha os olhos, em completa disposição. A falta de memória o atormenta, ou talvez, como perfeito cavalheiro, não se permita recusar.

Mas então ela não está mais lá. Não sei onde foi.

Me distraí um instante, um instante só, e ela se foi. Foi um lapso, reconheço.

Era responsabilidade minha cuidar para que nada se desviasse. E na verdade o que me distraiu foi um confuso pensamento justo sobre meus deveres. Porque a moça já tinha começado a aproximar a boca do rosto do rapaz. Eu deveria fazer o mesmo? Eu poderia fazer o mesmo, eu queria fazer o mesmo, mas deveria fazer o mesmo? Só a noção de dever me justificaria a uma atitude que seria proveitosa apenas para mim mesma, já que seria improvável que tal homem desejasse ser tocado por alguém tão menos que a outra, e mais improvável ainda que meu toque fosse necessário para a recuperação da sua memória.

Foi muito azar bem essa atitude nobre da minha parte acabar desvirtuada pelo sumiço da moça, mas pelo menos o sumiço me desempata, pois uma vez que ela, que por mérito e direito teria merecimento aos beijos, estava ausente, cabia a mim, serviçal dedicada, levar a cabo a tarefa, mesmo sem direito nem mérito nenhum.

E nesse espírito cumpridor, avanço numa aproximação trêmula e cautelosa do moço, que para minha surpresa não só tem boa aceitação, como é favorecida por ele, e de favorecimento em favorecimento nos deitamos um sobre o outro, até nada restar a ser feito entre nós.

E no decorrer disso, me transformo na moça loira.

Sem mais, sem menos, quando vejo estou ela, apesar de por dentro me manter eu mesma, com a diferença de me sentir bem mais culpada que antes.

Se já vinha numa conduta meio duvidosa aceitando favores que não me pertenciam, pelo menos me mostrava como era, mas agora me faço passar por mais jovem, mais bonita e mais loira do que sou.

Para alguém tão bem intencionada, não poderia ter descido mais baixo. Só posso alegar que, se acabei tal impostora, foi algo que não busquei nem pedi, Deus é testemunha aliás, nem mesmo cheguei a sonhar com tanto, inclusive aguardo ser desmascarada a qualquer momento, coisa que eu mesma faria, se já não admitisse certa dúvida secreta de que, se o poder de ser a moça loira me foi atribuído a minha revelia, talvez na verdade tenha sido ela que eu sempre fui.

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