Capítulo 2 - O Porto de Boa-Esperança

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Tudo começou no dia em que Éster morreu.

Não havia indício algum sobre o que iria acontecer. A manhã foi agradável, com um lindo sol de primavera que demorou um bom tempo para aparecer. Aparentemente todos os moradores do pequeno porto estavam com o humor alegre, algo difícil de se encontrar tão longe das festas de fim de ano.

Na rua principal, o padeiro mais ranzinza da cidade cantava audaciosamente uma música italiana com notas muito mais agudas do que ele conseguia alcançar, o que não significava que ele não continuaria tentando. Lurdes, a dona, retirava uma nova fornada de pães perfeitamente dourados, encontrando uma desculpa perfeita para deixar a cozinha por alguns minutos.

Do outro lado da rua, Lúcio e seus filhos brincavam em frente a uma antiga loja de joias, onde a dona, a velha senhora Nunes, bebericava uma grande xícara de chá – que cheirava a Whisky - parecendo não se importar em ver seu comércio à mercê de uma bola desgovernada. Em qualquer outro dia do ano, ela sairia correndo atrás deles com uma vassoura - ela era incrivelmente ágil para sua idade.

Em uma das centenas de ruas de pedra, estreitas como se tivessem sido colocadas às pressas na cidade, e no meio de pessoas que pareciam ser pagas para passar o dia caminhando nas ruas - se fosse o caso, deveriam receber um extra, por andar devagar - Aura caminhava como uma sombra, tentando desviar daquela multidão que a empurrava com uma frequência assustadora.

Ela morava há tanto tempo no Porto da Boa Esperança, que já havia se acostumado com aquela agitação e impaciência tanto quanto alguém se acostuma com o frio ou calor. Por mais que evitasse a rua principal como se fosse uma doença contagiosa, era como evitar poças de água depois de uma grande chuva: às vezes não vale a pena. Precisaria caminhar duas vezes mais se usasse outro caminho, e estava com saudades o suficiente da própria cama para ignorar os panfleteiros, vendedores empolgados e o pior, animadores fantasiados, que eram um combo horripilante dos dois anteriores.

A cidade parecia estacionada no tempo. Por mais que a maioria das pessoas andasse com um smartphone no bolso, as casas ainda lembravam a arquitetura de quinhentos anos atrás, com arabescos demais e várias estátuas que um dia deveriam ter sido bonitas, mas agora estavam desgastadas e sujas. Quase todos os cantos tinham o cheiro salgado da água do mar, e quanto mais perto das docas, mais intenso ele ficava, misturando-se com o odor dos pescados e de alguns que passavam mais tempo sem banho do que deveriam.

Boa Esperança ficava no meio de uma das rotas mais movimentadas do oceano Atlântico sul. Cada dia, mais pessoas de diversos países desembarcavam para buscar mantimentos e seguir viagem, tornando o lugar uma espécie de Pit stop para os navios.

Era raro uma embarcação ficar por mais de um dia, ou seja, sempre havia algo ou alguém novo, diversos idiomas, culturas, fragrâncias e estilos. Na maioria das vezes a rua principal estava tão repleta de idiomas e etnias diferentes, que era praticamente impossível diferenciar em qual lugar do mundo estavam.

Mas, quando se passa a vida inteira em um lugar assim, a miscelânea torna-se algo irritante, e não motivo para deslumbre. Como era o caso de Aura, que deixou de apreciar aos doze anos de idade, quando percebeu que até a mudança constante é enjoativa.

Ela não havia mudado muito desde a infância - o que para ela não era motivo de orgulho - seu rosto era arredondado, com traços que a faziam parecer uma antiga estátua grega. O cabelo curto e loiro-claro estava preso de qualquer jeito. Usava roupas simples. O jeans tinha mais rasgos do que deveria e a tintura da blusa estava um pouco gasta.

Ela voltava de sua cafeteria preferida, onde encontrava seu padrinho Henrique ao menos uma vez na semana. Era um lugar relativamente calmo, um pouco afastado do centro, com vários tipos de comida, livros de todos os gêneros e origamis de pássaros presos no teto. A dona insistia para que cada cliente fizesse o próprio origami, e havia entrado em uma guerra silenciosa contra Henrique, que sempre se negava, e ainda tentava convencê-la a aderir as comidas veganas. Também a chamava de alguns adjetivos nada educados quando tinha certeza de que ela não estava ouvindo. Ainda assim era divertido. Ia tantas vezes lá, que já a tratavam pelo nome e sempre deixavam que tomasse uma xícara de achocolatado por conta da casa.

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⏰ Last updated: Oct 30, 2023 ⏰

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