Capítulo 1

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Foi uma viagem longa de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde eu morava, até a casa de praia dos meus pais em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro.

Eu estava sonhando algo divertido, tipo marshmallows, confetes e coisas coloridas, quando soou o alarme do meu celular.

— Bom dia! — Eu gritei assim que acordei, pulando em cima de Lucy.

— Anne, vai dormir! — Ela respondeu ainda de olhos fechados.

— Lucy! Levanta! — Eu já estava de pé batendo com meu travesseiro na minha amiga.

— Não sei para que fui inventar de viajar Carnaval contigo. — Ela me respondeu meio rabugenta, enfim abrindo os olhos, recebendo minha cara falsa de ofendida. — Aliás nem sei o que estou fazendo aqui. Eu odeio Carnaval!

Eu tive que rir.

Às vezes eu entendia por que Lucy não namorava ninguém. Ela era linda. Tinha cabelos lisos, compridos e loiros, além de olhos azuis enormes, mas com esse humor de uma velha de oitenta anos, que cara a aguentaria?

Porém, eu conhecia seu coração muito bem para saber que Lucy não era apenas um poço de amarguras que aparentava ser. Existiam muitas coisas boas ali dentro, e era por isso que eu gostava tanto dela.

Acho que intimidade faz a gente amar as pessoas.

Eu tive outras amigas ao longo da minha vida, mas a Lucy sempre foi a mais especial. Nós éramos amigas desde a alfabetização, sabíamos dos segredos uma da outra e nos amávamos nas nossas diferenças.

E ela foi rejeitada pelos pais quando nasceu e adotada pela mãe não-biológica, a tia Raquel, e o pai não-biológico, o Seu Estevão, que faleceu quando ela tinha sete anos. Lucy não teve sorte em relação a família. Então, desde sempre eu quis proteger a minha pequena Lucy, que de pequena não tinha nada, era quase um metro mais alta que eu — que exagero!

E lá estava ela, me acompanhando nessa viagem sem graça de Carnaval com minha família, que eu fui praticamente obrigada a fazer porque minha mãe como sempre fez um dramalhão quando eu disse que queria viajar para outro Estado com meus amigos novos da faculdade.

Assim, eu convenci Lucy a vir comigo e, mesmo que ela odeie o Rio de Janeiro nessa época do ano, ela veio, só para me acompanhar.

Depois que eu acordei Lucy, eu fiquei de frente para o enorme espelho do meu quarto e penteei meus cabelos, que, diferente dos de Lucy, eram um pouco ondulados e castanhos, quase pretos.

Eu tinha a pela bem branca e olhos verdes. Quanto ao meu corpo, eu era mais baixa do que Lucy. Ela era alta e magra, tipo modelo, e eu, no tamanho e no peso mediano.

— Animada? — Eu me virei para ela, que ainda estava deitada na cama.Ela apenas fez que não com o rosto, sem mover qualquer músculo do corpo.— Amiga! Praia, guris gatos... e tem os blocos que tem mais guris gatos ainda!

— A praia me basta, Anne.

— Eu preciso conhecer os gatinhos cariocas!

— Tu está muito animada nesse pouco tempo solteira. Precisa se apaixonar de novo, Anne!

— Jamais! Depois do Vitor nunca mais quero me apaixonar. Me mostre o lado bom de se apaixonar...

— O primeiro lado bom é que tu não precisa acompanhar uma amiga louca numa viagem de carnaval...

Eu precisei revirar os olhos. Lucy continuou:

— Tu deve estar com medo de ferir novamente seu coração.

— Não tenho medo de nada! Tu sabe disso! — Eu respondi.

Eu realmente não era de temer coisas, mas acho que Lucy estava um pouco certa, só que a palavra não era exatamente medo, era prevenção. Me prevenir da dor. Odiava sentir dor. Qualquer dor. E se apaixonar causava dor.

O Vitor foi o primeiro e único namorado que tive. E eu estava muito apaixonada até antes de descobrir sua traição. Eu sonhava em noivar, casar, ter filhos com ele, só que a traição dele doeu mais do que choque no cotovelo. Não, choque no cotovelo é pouco! Doeu mais que fazer uma cirurgia sem anestesia. É, eu nunca fiz uma cirurgia, quem dirá sem anestesia, mas imagina a dor. Então, foi mais do que isso aí. Então, por esse motivo, eu tinha definitivamente removido o Vitor da minha vida e chegado a conclusão de que nunca mais iria namorar alguém. Agora eu pensava em apenas aproveitar a vida e me amar.

— Eu duvido! — Lucy continuou a falar, enfim se levantando da cama.Eu dei de ombros, indiferente.

Do nada, minha mãe colocou o rosto por uma brecha da porta.

— Meninas, o café está na mesa. — Ela disse.

Aparentemente, minha mãe se parecia muito comigo. Seus olhos também eram verdes, branca, cabelos escuros. Ela também se parecia comigo no jeito espontâneo e alegre, mas eu não desejava ser como ela quando crescesse, afinal ela era dona de casa, serviçal, vivia em prol da família. Não era bem isso o que eu planejava para minha vida.

Cinco minutos depois do recado da minha mãe, desci para o café da manhã acompanhada de Lucy e me deparei com minha ilustre família na mesa do café.

— A Anne sempre aparece... — Ouvi um indivíduo insignificante denominado irmão comentar.

— Bom dia! — Eu e Lucy falamos como se fosse um coral.

Todos nos encararam como se fôssemos loucas. Não fizemos de propósito. Rimos.

— Sentiu minha falta, irmãozinho? — Dei um peteleco na cabeça do Bryan, meu irmão caçula. — Bom dia pra ti também!

Ele me deu um tapa na minha mão por eu ter feito isso. Mandei língua para ele, depois me sentei entre ele e meu pai.

— Até que enfim tu acordaste! — Papai disse virando para mim e dando um beijo estalado na minha bochecha.— Bom dia, minha princesa.

— Bom dia, pai. — Eu disse, manhosa.— O que esse ser humano insignificante falava a meu respeito?

— Nada demais, querida. Não esquente a cabeça com o Bryan. Ele ainda é um adolescente...

— Ei, eu tenho dezessete anos! — Meu irmão contestou.

Ele se achava adulto. Rá!

— A-d-o-l-e-s-c-e-n-t-e. — Rebati, soletrando letra por letra.— Adolescente. Uma casinha pra trás e se torna criança outra vez. Mas então, papai, o que ele disse?

— Nada, Anne. Já disse.

— Nós só estávamos achando muito divertido relembrar de tu ontem vomitando no pé do guarda no aeroporto. — Bryan acabou falando, com ar de graça.

Fiz cara de nojo para o meu "querido" irmão.

Não tinha gostado da recordação. Não era nada boa.

— Ninguém precisa ficar comentando isso. — Me defendi.— Só me senti mal.

Foi a vez dele fazer cara de nojo pra mim.

— E está na hora do café. — Completei.

— O problema é que é a vigésima vez em um mês que tu passas mal, minha filha. — Mamãe falou. Ela sorria, mas parecia preocupada.

— Mamãe, está tudo bem. E tu está exagerando. Não foram vinte vezes...

— O fato, meu anjo, é que tu precisas procurar um médico.

— Mãe, eu estou bem.

— Não acho, Anne. Alguma coisa está errada.

— Eu também acho, minha filha. — Meu pai falou.

— Deve está morrendo! — Meu irmão debochou.

Lucy ficou quieta e eu estava começando a ficar irritada.

Uma coisa eu não disse: eu odiava que cuidassem de mim e desde que eu comecei a passar mal — alguns enjoos, tonturas, labirintites — meus pais achavam que eu tinha que procurar um médico.

Mas eu achava que não iria.

Nunca.

Eu odiava hospitais.

A vez de Anne [Amostra]Where stories live. Discover now