II: Como possuís, assim possuais

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Por vezes Damen sonhou com a Batalha de Delpha. Por vezes os soldados veretianos que estripara nos corredores da fortaleza perseguiram-no em Ios, as estranhas riscando estrias carmesim no mármore do palácio, os olhos claros como novelos de sangue sobre o tecido fino das bochechas. Por vezes pensou que a carnificina que lhe dera fama assombraria-o como a maior barbaridade que presenciaria. Agora, imprensado na arquitetura do palácio de Arles, conhecia uma nova espécie de horror. 

Era horrendo. As arestas da abóbada sobre o dossel agigantado, os arabescos encaracolados nas paredes coloridas, as tapeçarias ilustradas sob a madeira dos móveis. O tamborete acolchoado com veludo índigo, a poltrona de seda de damasco, a mesa de descanso lastreada em ouro. Havia dois assentos para cada nádega no quarto horroroso, e Damen fantasiou atirar as almofadas de cetim pela janela e sentar-se no chão. Horrendo, sim. O palácio de Arles era horrendo.

Quis voltar para os salões de banho, no qual o silêncio escorria pelas paredes lisas e o vapor perfumado esclarecia a mente. A água quente limpou-o da sujeira da estrada, mas provou que à pobre carroça não cabia a culpa pela tensão nos ombros. Com esta Damianos teria de lidar enquanto permanecesse em Vere.

Tinha sequer capacidade para satisfazer os planos do Conselho? Kastor explicara-lhe o que tratados de paz exigiam, e, ao ouvi-lo, questionou se alguma vez guardou a arte da persuasão na sua coleção pessoal de qualidades. Quando pensava em convencer Vere a ceder Delpha, ouvia os Kyroi de Akielos rugirem nos portões da capital, com Nikandros e Makedon na dianteira. 

E os recursos que Akielos exigia? O litoral da fortaleza de Marlas, segundo Kastor, era deliciosamente protegido dos ventos. Que diria Vere quando descobrisse as intenções akielons de estabelecer um entreposto comercial há poucas milhas de Fortaine? Não precisaria dizer qualquer coisa, se a espada mediasse o diálogo.

Damen devia ser o diálogo, porém. Seu léxico, ele suspeitava, carecia da articulação fácil dos deuses da guerra.

— O rei Auguste o espera no salão de refeições, alteza — disse um criado atrás da porta, em veretiano.

No tempo do anúncio de seu nome, Damianos era o último da missão akielon a juntar-se à mesa. Nikandros, com os músculos rígidos e as feições contraídas, esculpia o retrato do desconforto. Tinha pedras no lugar dos olhos e espuma cobrindo a língua. A irreverência de Jokaste faria algum favor ao Kyros de Delpha, pensou ele, observando a mulher acompanhar a sua entrada com uma expressão de deleite.

Reparando-a mesclar-se tão bem à parte de Auguste, Damen lembrou-se de que Jokaste era veretiana. A origem provinciana da escrava era desconhecida, mas as características estavam ali. Se os criados do palácio a colocassem nas saias rodadas da moda de Arles e dissessem a um estranho que era irmã de Auguste, Damen não poderia culpá-lo por chamá-la de alteza. 

Jokaste sente-se em casa entre as víboras veretianas? Devo me preocupar com isso?

—  Damianos dá-nos a honra, afinal! Pensei que meus cozinheiros tivessem falhado com sua barriga.

Auguste, com uma cortesia desnecessária, levantou-se para cumprimentá-lo com um aperto de mãos.  

— Fui muito bem recebido, Vossa Excelência. 

O título derreteu na boca de Damen, que parecia mastigar uma folha amarga de almeirão. Como se não bastasse, também tinha que ignorar o arranho dos fonemas da língua inimiga na garganta. Terá de se acostumar com eles, alertara Kastor. Você é o embaixador desta empreitada. O fardo do idioma deve ser seu.

— Que modos são esses, akielon? — Auguste jogou-se na cadeira, fingindo afetação. 

Akielon. Damen não gostava do nome de seu povo na boca de Auguste, mas lembrava-se de como o rei era em batalha: cheio de floreios e teatralidades. A coroa não mudara muito sua natureza, ao que parecia.

Terras Raras (Uma Fanfic de Captive Prince)Where stories live. Discover now