Deuses americanos

702 16 0
                                    

ADVERTÊNCIA E AVISO AOS VIAJANTES Esta é uma obra de ficção, não um guia. Como, nesta história, a geografia dos Estados Unidos não é completamente imaginária — muitas das localidades citadas neste livro podem ser visitadas, trilhas podem ser seguidas, caminhos podem ser mapeados —, tomei certas liberdades. Em número menor do que você possa imaginar, mas, ainda assim, liberdades. Não foi pedida nem dada permissão para usar os lugares verdadeiros que aparecem nesta história. Eu espero que os donos da Cidade de Pedra, da Casa na Pedra e os caçadores proprietários do hotel, no centro dos Estados Unidos, fiquem tão perplexos quanto qualquer outra pessoa ao encontrar suas propriedades aqui. Deixei vaga a localização de vários lugares: a cidade de Lakeside, por exemplo, e a fazenda com o freixo, uma hora ao sul de Blacksburg. Você pode procurá-los, se quiser... e até mesmo encontrá-los. Fora isso, nem é preciso dizer que todas as personagens, vivas, mortas ou mortas-vivas, utilizadas nesta história, são fictícias ou foram usadas em um contexto fictício. Só os deuses são reais. Uma questão que sempre me intrigou é o que acontece com os seres demoníacos quando os imigrantes se mudam de sua terra natal. Americanos de ascendência irlandesa lembram-se das fadas, americanos de ascendência norueguesa, das nisser, americanos de ascendência grega, das vrykólakas, mas só no que diz respeito a eventos acontecidos no Velho Continente. Certa vez, quando perguntei por que (ais demônios não são vistos nos Estados Unidos, meus informantes riram confusos e disseram "Eles têm medo de cruzar o oceano, é muito longe", chamando atenção para o falo de que Cristo e os apóstolos nunca estiveram na América.

Richard Dorson, "A Theory for American Folclore", American Folklore and the Historian

PARTE UM: SOMBRAS CAPÍTULO UM As fronteiras do nosso país, senhor? Como assim, senhor? Pelo norte, fazemos fronteira com a Aurora Boreal; pelo leste, com o sol nascente; pelo sul, com a procissão dos Equinócios; e, pelo oeste, com o Dia do julgamento Final. O livro de piadas americanas, de Joe Miller Shadow havia cumprido três anos de prisão. Era bem grande e tinha uma cara de "não-se-meta-comigo", por isso seu maior problema era como fazer o tempo passar. Assim, mantinha o corpo em forma, treinava alguns truques com moedas e pensava no quanto amava sua mulher. Na opinião de Shadow, a única coisa boa no fato de estar na prisão era um sentimento de alívio. O sentimento de ter mergulhado o máximo possível e atingido o fundo. Não se preocupava mais se o homem iria pegá-lo, porque já o havia pegado. Não tinha mais medo do que o amanhã traria, porque o ontem já trouxera o que estava reservado para ele. Shadow resolveu que não fazia a mínima diferença se você havia mesmo feito aquilo pelo que fora condenado. Todo mundo que ele conheceu na prisão fora injustiçado em algum momento: sempre existia algo que as autoridades entenderam errado, algo que disseram que você fez quando, na verdade, não fez — ou que você não fez bem do jeito que eles falaram que você fez. O que importava é que tinham pegado você.

Percebeu isso logo nos primeiros dias, quando tudo, desde a gíria até a comida ruim, era novo. Apesar do sofrimento e da profunda sensação arrepiante de estar encarcerado, ele respirava aliviado. Shadow tentava não falar muito. Por volta do seu segundo ano de prisão, mencionou algo sobre sua teoria a Low Key Lyesmith, seu companheiro de cela. Low Key, um golpista de Minnesota, mostrou seu sorriso de cicatriz. — É — disse. — É verdade. É até melhor se você for condenado à morte. É quando se lembra das piadas sobre os caras que chutaram as botas pra longe, quando sentiram o laço apertar o pescoço, porque os amigos sempre falavam que ele ia morrer de botas. — Isso é uma piada? — perguntou Shadow. — Claro que sim. Piada de enforcado. O melhor tipo que existe. — Quando foi que enforcaram o último homem neste Estado? — Como é que eu vou saber? Lyesmith mantinha seus cabelos ruivo-alaranjados bem aparados. Dava para ver as marcas de seu crânio. — Vou dizer uma coisa pra você. Este país começou a ir pro inferno quando pararam de enforcar os caras. Não tem mais a sujeira da forca. Não tem mais o negócio da forca. Shadow deu de ombros. Não conseguia ver nada de romântico em uma sentença de morte. Resolveu que, se você não está condenado à morte, a prisão é algo como uma suspensão temporária da vida. Por dois motivos. Primeiro, a vida se esgueira de volta para a prisão. Sempre há lugares mais baixos para se ir. A vida continua. E,

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Apr 26, 2011 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Deuses americanosWhere stories live. Discover now