6. REMINISCÊNCIAS

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Hosana, sentada em sua poltrona favorita, recorda Gerald Champoudry. As reviravoltas da vida deles deixaram-na perdida. Lembra-se daquele homem, contando sobre sua infância. Parecia falar de um personagem e não dele próprio.

O garoto subia o morro. Em volta dele, gente boa, gente má, sujeira, piolhos, andrajos, moscas, diversidade de toda espécie, do que há de pior, e de poucas coisas aproveitáveis.

O sol esquentava as costas. Com onze anos levava a pipa na mão. Pés descalços. Short jeans, esfiapado, resto de alguma calça ganha de alguém.

Do alto do morro viam-se inúmeras antenas parabólicas e telhas de amianto sobre os barracos. Lixo não faltava.

O vento sempre forte. Assobiava por todo o morro e o garoto se recostava no mirante, empinava sua pipa para mandar o aviso.

Nunca entendeu porque meninos do morro faziam a mesma coisa por diversão.

Qual a beleza da pipa no céu? Para ele, nenhuma. Isso era seu trabalho. Se fosse brincar, escolhia outra coisa. Sonhava com carrinho de rolimã. Ao crescer, gostaria de possuir um veículo para transportar gente elegante dos bairros da zona Sul do Rio de Janeiro. Adorava as praias, os perfumes, as mulheres brancas, usando saltos altos, de pernas cruzadas, lábios carnudos e pintados. Fechava os olhos, acelerava seu carro imaginário, entrava em Copacabana, na Avenida Atlântica, e tudo passava por ele. O branco ainda imaculado da areia da praia, o verde, o negro do asfalto, corria, o azul do céu, corria, desviando dos postes que pareciam entrar na sua frente. De repente, bloqueando o caminho, um homem alto, barba por fazer, que um dia fora bem apessoado. Pelas fotos que mantinha escondidas, ele foi bonito em alguma época. Não sabia. A mãe o largou na mão dele e seguido para Paris.

Aimée era o nome dela. Bonita, elegante, cheirando gostoso. Ficou um tempo com o pai, mas a aventura de morar no alto do morro, com a vista de todo o Rio, um dia a cansou. Voltou para Paris.

Gerald sonhava com Paris. Lembrava-se da mãe falando sobre aquela cidade. Muitas vezes, naqueles sete anos em que eles tiveram a presença dela no barraco, ela fugia para a cidade de seu coração, mas o amor pelo pai a fazia voltar sempre. Um dia ela foi e não mais voltou.

— O Sena é a alma de Paris — dizia Aimée.

Nas suas margens, sentimos a cidade como em nenhum outro ponto. As proporções de Paris são fenomenais, graças às dimensões humanas do Sena, que corre tranquilamente no coração da cidade. Impossível viver em Paris e não mergulhar no passado da cidade. Mas não se trata de um mausoléu, ela é também viva e contemporânea. O Café Progrès, no Marais. Ela se lembrava dele, de seus tempos nos anos setenta. E ele não mudou em nada, dizia. Alguns amigos que vieram de lá disseram a ela que continua o mesmo.

— Fico fascinada também com o secreto Palais Royal, com o Museu Carnavalet, impregnado pela história de Paris, com o Museu de Paleontologia e seus mistérios, com o Marais e seus verdadeiros cafés.

Morei treze anos no Marais e durante esse período frequentei todos os seus cafés e fui uma verdadeira ratinha da biblioteca Forney. Posso dizer que foi lá que começaram minhas intermináveis leituras e pesquisas.

Ela continuava com suas histórias.

— Quando eu o levar até Paris, vamos dar uma volta na praça Madeleine e olhar vitrines deliciosas do Fauchon, da Hédiard, da Maison de la Truffe, dos maravilhosos lustres Baccarat e dos trench coats Burberry. Depois, seguiremos o boulevard des Malesherbes até o Parque Monceau. É uma avenida elegante, com seus prédios datando da época do Barão Haussmann, do seu comércio clássico e com ares de tempos passados. Entrar na loja de chás Betjeman & Barton ou na Mettez, a marca especializada em roupas para caça, é retornar acelerado ao século XIX. Aliás, os impermeáveis Mettez são maravilhosos e me lembram personagens da literatura inglesa.

PARIS VERMELHAWhere stories live. Discover now