Parte I

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Era início de março, o dia foi longo e quente. Quando escureceu, por volta das sete horas, resolvi dar um passeio rápido com meu cachorro. Assim que coloquei o pé na rua ouvi trovoadas fortes.

"Vem chuva aí" o velho e simpático porteiro disse.

"Volto antes dela" respondi brincando e segui meu trajeto usual.

Estava no meio do caminho e a chuva caiu intensa, com relâmpagos e muitas trovoadas. Peguei Matisse no colo. Com medo de escorregar e acabar caindo, comecei a andar devagar e cautelosamente em direção ao meu prédio. Curvei o corpo na intenção de proteger o cãozinho. Em poucos minutos a rua encheu. Eu não via um metro à minha frente e percebi que estava completamente sozinha. A água já havia alcançado meu calcanhar e me deixado encharcada.

"Ei!" alguém gritou e virei em direção a voz. "Menina! Venha!"

Enxuguei os olhos e forcei a vista para ver quem me chamava. Um homem, na casa dos 50 anos, estava de pé diante de um portão branco, no outro lado da rua e gesticulava para que eu entrasse.

"Saia dessa chuva. Entre. Não vamos te fazer mal" a esposa do homem falou aparecendo do seu lado. Lembrei de tê-la visto no mercado outro dia, quando estava com a minha mãe. Elas haviam trocado algumas palavras em uma rápida e amigável conversa.

Se minha mãe a conhece, então não deve ter problema, certo?, pensei.

O homem saiu com o guarda-chuva e atravessou a rua para me buscar. Antes de começar a andar, dei uma olhada na esquina inundada. Não havia jeito de voltar para casa naquele momento.

Sem ao menos perceber, estava entrando na casa verde. A mulher, Vera, me recebeu com uma toalha. Eu tirava o excesso de água do corpo enquanto Matisse se sacudia para secar também. O homem se apresentou como José, mas insistiu em ser chamado de Zé.

"Você é a Emília, não é? Eu conheço seu pai, o Pedrão, frequentamos a mesma academia" contou Zé.

"Sim, e esse é meu cachorro, Matisse. Obrigada por me acolherem" falei.

O casal sorriu.

"Vamos entrando." Vera me convidou.

Estávamos na garagem, uma área coberta onde cabia confortavelmente dois carros, mas apenas um estava estacionado. Dois bancos de madeira e muitas plantas tornavam o ambiente mais confortável e acolhedor. Enquanto me deixava ser guiada para dentro por Vera, reparei no adesivo azul com o símbolo de uma pessoa em cadeira de rodas na traseira do carro. Uma pequena, porém larga rampa dava acesso ao interior da casa. Passamos pela rampa e pela porta de madeira. A sala de estar e a cozinha estavam divididas por uma bancada baixa para refeições.

"Fique à vontade. Quer algo?" Vera perguntou.

"Queria avisar aos meus pais que estou bem. " falei.

"Claro." ela me entregou o telefone residencial "Aqui, pode usar."

"Obrigada."

Liguei para casa, avisei onde estava e disse que estava bem. Devolvi o telefone e agradeci novamente. Matisse latiu da varanda.

"Fique aí. Quietinho."

Naquela hora a energia acabou. Em um instante Vera me deu uma lanterna e pediu para que eu levasse para o seu filho. Então lembrei do jovem que sempre estava sentado na sacada quando eu passava pela rua. Ele não deve ser muito mais velho que eu. O que está fazendo que não pode buscar a lanterna sozinho?

"Subindo a escada é o segundo quarto à esquerda. Fique um pouco lá por favor, eu já subo" Vera me puxa dos meus pensamentos com tom de urgência na voz.

"Tudo bem" respondi e subi rapidamente os pequenos degraus.

Bati na porta antes de entrar.

"Com licença" pedi.

"Tá aberta!"

Empurrei a porta e vi o rapaz deitado na cama se espantar com a minha presença.

"Oi, trouxe luz" disse segurando a lanterna como se fosse um sabre de luz. Deveria ser uma piada, mas pareceu estranho. De qualquer forma, ele expressou um sorriso tímido. Era estranho  vê-lo de perto, estava acostumada a vê-lo rapidamente pela varanda durante meus passeios com Matisse ou enquanto esperava o ônibus passar.

Ele parecia ter me reconhecido, se ajeitou na cama, com certo esforço, e sinalizou para eu entrar.

"Onde está seu cachorro?" ele perguntou.

"Lá embaixo, na garagem. Seus pais me abrigaram aqui...Sabe, por causa da chuva." Falei sem jeito. O que estava acontecendo comigo? Sentia como se mil borboletas voassem no meu estômago.

"Qual é mesmo o nome dele?" o rapaz perguntou.

"Do meu cachorro?" Ele assentiu. "É Matisse."

"Como o pintor?" Era a primeira vez que alguém além dos meus pais acertava a referência.

"Exatamente como o pintor." sorri.

"Pode abaixar seu sabre, por favor?" ele pediu e percebi que apontava a lanterna diretamente para seu rosto.

"Claro, desculpa." desviei o facho de luz para a parede e coloquei a lanterna em cima de um móvel de modo que deixasse o ambiente em uma leve penumbra. Sentia-o observando meus movimentos. "A sua mãe disse que já ia subir."

"Ah, tudo bem. Pode sentar aí, se quiser." então me apoiei na borda da cama e um silêncio ensurdecedor se instalou no ambiente.

Um toca disco antigo chamou a minha atenção em meio ao quarto escuro.

"Curte vinil?" perguntei.

"Sim, bastante." Ele fez uma pausa e então percebeu o que eu estava fazendo; puxando assunto, já que ficaria lá até a chuva passar.

"Eu geralmente compro pela internet. Acaba sendo mais fácil de encontrar, sabe?"

"Sim, eu costumava ouvir muito vinil na casa da minha avó quando era menor. Um dia, meu pai deu um rádio que tocava CD pra ela e o vinil sumiu. "

"Seu pai deveria ser preso por isso" ele brincou.

"Concordo. Depois disso, eu passei a colecionar CDs de todas as bandas e artistas que estivessem na promoção de 3 por 15 na feira."

"Todos?"

"Bem, todos que eu gostasse."

Rimos e a conversa fluiu de forma divertida e leve. Infelizmente, fomos interrompidos pela mãe dele que foi perguntar se estava tudo bem, logo em seguida ela desceu e voltamos a conversar sobre família. Ele disse que a mãe sempre foi muito protetora, eu falei dos meus pais também. Tínhamos muitas coisas em comum, nos dávamos bem. Lá fora chovia como num apocalipse, mas ali dentro...eu nunca havia me sentido tão segura e confortável.

Fiquei cerca de duas horas conversando com o rapaz até a luz voltar e nos lançar de volta para a realidade.

Olhei pela janela e disse:

"Olha, a chuva já passou."

Ele não pareceu muito contente com aquilo. E, parte de mim também não gostou de ter que ir embora.

Vera subiu para avisar que meu pai estava lá embaixo conversando com Zé e me esperando para irmos para casa. Levantei e me despedi.

"Foi legal conversar com você" sorri para o rapaz.

 "Igualmente" ele disse abrindo um sorriso galante fazendo meu coração tropeçar e borboletas voarem no meu estômago.

Eu me virei para sair do quarto com Vera, mas me detive na porta quando ouvi:

"Eu não sei seu nome."

"Emília."

"Emília..." ele repetiu e deu um tom aveludado ao meu nome.

"E o seu?"

"Pode me chamar de Leo." 

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