Prólogo

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O inverno tinha começado a duas semanas e eu já sentia com muita força o frio que este ano prometia. Minha mãe tinha aparecido a alguns minutos na minha porta avisando que tinha que ir com ela em um aniversário hoje. Eu quase neguei, não estava animada para me arrumar sozinha, meus cabelos estavam despenteados, como sempre, e dava muito trabalho para lavar e desembaraçar. Mas ao olhar para aqueles olhos gélidos me encarando pela soleira da porta desisti, percebi pelo seu tom de voz que ela não queria me levar para a festa tanto quanto eu não queria ir, mas era infantil e seria muito esquisito se simplesmente aparecesse lá sem mim.

Eu já estava acostumada a me retrair diante das vontades dela. É simples assim, às vezes algo se torna tão natural para você que nem se dá conta de que existe uma opção diferente.

Estava sonolenta e indisposta, mas como questionar não era opção, me levantei e comecei a me preparar.

Desisti da ideia de lavar os cabelos para pentear, de acordo com minha mãe estávamos atrasadas e essa tarefa requeria extrema paciência. Revirei o caixote velho onde ficavam minhas roupas e peguei no fundo um vestido florido azul que era o menos surrado que eu tinha, amarrei meu cabelo num coque extremamente bagunçado (eu não era boa nisso), calcei uma sapatilha verde que eu detestava, era a única usável que tinha, e fiquei sentada na sala silenciosa esperando por minha mãe.

Ela sempre demora muito para se arrumar e se já estávamos atrasadas como ela fez questão de falar enquanto me apressava, seu humor estaria péssimo, era sempre muito ruim quando a única festa no fim de semana a qual ela tinha sido convidada era infantil já que detesta crianças e estar num ambiente cercado delas sempre a deixava muito irritada.

Sabia e esperava que seu humor azedo iria se virar contra mim a qualquer momento então já ativei o meu "modo neutro" e fiquei ali sentada me tornando praticamente parte da mobília enquanto a esperava.

Um tempo depois minha mãe aparece resmungando, me gritando, e praguejando. Eu suspiro e permaneço onde estou em silêncio, sei que o som da minha voz só pioraria tudo.

Ela chega na sala e quando me vê para e me inspeciona com aqueles olhos frios aos quais já me habituara, ela analisa tudo atentamente e silenciosa, sei que está procurando por alguma coisa fora do lugar para me bater e reclamar.

— Que droga de cabelo é esse? — perguntou ela, pegando um cigarro e acendendo.
Eu passei a mão pelos cabelos na tentativa de assenta-los um pouquinho, em vão obviamente.

Ela se aproximou de mim e estremeci, achando que já fosse me bater, mas ao invés disso agarrou minha mão e me arrastou porta a fora, fumando e reclamando entredentes.

Quando chegamos à festa todos adultos olhavam para a gente, era sempre assim com minha mãe, ela sempre gostava de ser o centro das atenções.
Estava usando seu vestido vermelho muito justo, deixando os seios saltarem um pouco pelo decote exagerado, com maquiagem forte, batom vermelho e o inconfundível salto agulha e seu sonoro toc toc enquanto caminhava.
Ela se abaixou e sussurrou ao meu ouvido para comer o quanto pudesse porque hoje não teríamos nada em casa. E me mandou sumir da frente dela.

Era sempre assim, nos finais de semana íamos a alguma festa ou velório para comer. E por mais que detestasse ter que socializar e estar cercada por desconhecidos, esses dias vinham se tornando os meus favoritos. Porque ao menos nesses dias sabia, comeria sem que minha mãe me socasse reclamando do quanto comia, comeria até me fartar e ainda por cima não estaria sozinha trancada naquela casa com ela.

Antes que me acomodasse olhei e ela estava flertando com o solteirão mais bonito da festa então eu me acomodei numa mesa próxima aos doces e salgados e me servia abundantemente, comendo e me escondendo de possíveis conhecidos da escola.
Isso era outra coisa que odiava na minha vida, ter que ir para a escola todos os dias, não tinha amigos e sofria bullying desde sempre por ter a mãe mais espalhafatosa dentre todas.
Certamente se alguém de lá me visse aqui, faria mais de suas piadas de mal gosto, e tudo que eu queria nesse momento era comer até passar mal, na companhia de ninguém além de mim mesma.

Só que muitas vezes a vida prega certas peças na gente e geralmente quando menos esperado.

— Olá. — Alguém falou atrás de mim.

Já estava me preparando para ignorar a piada idiota que viria a seguir, mas não foi o que aconteceu, somente silencio se seguiu depois do cumprimento. Então por mais que estivesse receosa levantei meu rosto e dei de cara com uma garota que nunca tinha visto antes, loirinha, num vestido rosa rodado sentada numa cadeira perto de mim.

— Olá, sou Ana — falou ela.

— Maya.

Ela estendeu a mão e nos cumprimentamos. Um longo silêncio seguiu-se. E eu quis me levantar e fugir dali, mas a menina parecendo notar meu nervosismo pegou uma batata frita e começou a falar que amava batata. E o assunto simplesmente não parou mais, ficamos comparando nossos gostos por comida, música, livros, filmes, garotos. E em poucos minutos éramos melhores amigas de infância.

Pela primeira vez na vida me senti solta, não tive medo de ser eu mesma perto de alguém, sabia que ali do lado de Ana não precisava me armar de defensiva, poderia falar o que pensava e ela não me julgaria, porquê éramos muito parecidas, tínhamos nascido para ser amigas acabei por conclui.

A hora passou tão rápido que mal percebi minha mãe se aproximando, quando me dei conta ela já estava me arrastando para sair, bêbada e cambaleante indo em direção do solteirão com quem flertara toda a festa que com certeza nos levaria para casa.

Com muita tristeza me despedi de Ana, mas antes de sair pela porta ela cochichou no meu ouvido seu endereço e fiquei sabendo que teríamos aula juntas, sai da festa sorrindo, porque parecia que pela primeira vez em dez anos a vida resolveu sorrir para mim de volta.

De Tal Maneira (Degustação)Where stories live. Discover now