Carta para Ezarel [Nevra]

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O

lá irmão.  Já faz um bom tempo desde a última carta, um ano para ser mais exato.  Huh... eu realmente não sei como deveria iniciar essa carta.  Devo adivirtí-lo por ter parado de escrever ou começar com as novidades?  Acho que estou mesmo perdendo o jeito com essa coisa.  Peço desculpas.  Bom, se eu ainda o conheço bem, já sei o que vai pensar: "o que acha de fazer isso pelo começo, Nevra?".  Acho que é uma boa. Então, vamos tentar assim!

Hoje faz dois anos desde sua partida definitiva do Q.G e três anos desde o fim da guerra.  As coisas tem estado bem calmas por aqui e, sei que vai soar estranho o que falarei agora, mas, mesmo após tantos anos, ainda não estou acostumado com toda essa calmaria.  A Huang Hua tem sido uma líder exemplar, apesar de teimosa e persistente sobre algumas coisas.  Mesmo que muitos, incluindo você, não concordem com suas decisões, sei que ela está fazendo o que está em seu alcance para nos manter esperançosos, caminhando para uma nova era. E como seu conselheiro, estou fazendo o máximo para apoiá-la.  Eu sei o que vai pensar: "Nevra, braço direito da chefe da reluzente?  Se me contasse a alguns anos atrás, eu nunca acreditaria!".  Tenho que admitir, é um ótimo cargo, mesmo que sinta falta da guarda das sombras.  Mas... já teve a sensação de que, não importa o tempo que passe, ainda há aquele sentimento de que algo ruim está por vir? Sei que estou parecendo pessimista, mas é o que sinto atualmente. Quase parecemos soldados dispensados da guerra após a perca de todo o seu esquadrão ou algum membro do próprio corpo, ainda não acreditando em sua era de paz, pois já viu o verdadeiro inferno no campo de batalha.  Acho que isso define melhor o sentimento.

Às vezes eu ia ao túmulo do Valkyon e falava um pouco sobre como todo esse sentimento de pós guerra ainda atormenta aqueles que permaneceram vivos.  Acho que isso também já faz um longo tempo, mas o sentimento nunca foi tão atual.  Mesmo após tantos anos, ainda há pessoas que sofrem com as consequências da guerra causada por Lance e seus aliados. Como as crianças agora crescidas que perderam suas famílias, donas de casa que não consegue dar dois passos para fora do estabelecimento com medo do retorno da instabilidade do cristal ou de um novo ataque, os soldados que abandonaram o Q.G por não aguentarem mais viver lutando o tempo inteiro. Acredito que saiba do que estou falando.  Afinal, você mesmo não aguentou isso e decidiu partir.  Não é como se fosse sua culpa, faria o mesmo se Karenn não estivesse aqui comigo.  Não acho que conseguiria largá-la aqui simplesmente.  É, o mesmo papo de irmão mais velho de anos atrás.  E também sei o que está pensando, a essa altura, ela está seguindo sua vida e eu deveria fazer o mesmo.  E você está certo Ez, mas... tenho a impressão de ainda estou preso naqueles anos de guerra e eu me odeio por isso, gostaria de apenas seguir em frente e deixar o passado no passado.

Acho que estou sendo melancólico de novo, você já me advertiu quanto a isso na última carta.  Então vamos deixar isso um pouco de lado e vir com notícias melhores.  As árvores tem se tornado mais frutíferas do que nunca, já conseguimos produzir nosso próprio alimento no estabelecimento. Parece que o presente que Érika nos deu após sua partida está sendo mais apreciado do que nunca, posso até dizer que a transformaram em uma deusa ou algo assim, pois muitos se reunem para rezar por ela na sala do cristal.  Se continuar assim, é bem capaz de erguerem uma estátua em sua homenagem. Bem... não sei por que estou falando sobre a terra fértil, acho que você está vendo isso por conta própria aí no interior.  Em sua última carta, disse que Twylda havia encontrado um novo amor?  Isso é maravilhoso! Acho que ela também merece um pouco de felicidade após todo o trauma com a perca de seu marido e filho, Mery.  Talvez até mesmo ocorra um casamento? Aposto que Karuto adoraria fazer o banquete e bolo para os noivos.
Twylda nos avisou que você acabou deixando o vilarejo onde ela está, sua última localização, para seguir em frente com Mary-Anne.  Acredito que esteja procurando por um lugar onde aceitem humanos, não deve ser nada fácil.   Estou curioso do quão longe você está indo para atingir esse objetivo. Você tem dormido em alguma instalação em vilarejos? Tem tido problemas com Marie-Anne e sua fase de adolescência tardia? Talvez, quem sabe, agora você finalmente saiba como é a responsabilidade de ter uma irmã mais nova?  Acho que não poderá mais rir dos meus pequenos surtos com a Karenn e seus problemas adolescentes. Rá!

Bom. Não tenho certeza se você receberá essa carta estupidamente longa e sem muitas novidades além da melancolia de sempre que parece nunca ir embora. Espero que eu não o tenha feito ficar triste com essas palavras. Mesmo dizendo a todos o tempo inteiro o quanto odeia contato físico e se mostrando indiferente, eu sei a verdade sobre seu coração de manteiga derretida.  Inclusive, tenho mais do que certeza que está sentindo falta do abraço de seu amigão do peito.  Nos mande notícias quando puder, sei que terá uma boa história para contar dessas viagens.

Atenciosamente, Nevra.

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Com a finalização da carta, Ezarel abaixou a cabeça e a apertou o papiro contra seu peito. As lágrimas caíram antes mesmo que ele pensasse em contê-las. Hoje, sete anos após o fim da guerra e três anos desde a última carta de seu amigo, o elfo nunca se sentira tão mal.

Esta foi a penúltima carta enviada pelo vampiro, onde ainda reconhecia o Nevra que deixara para trás nos portões do QG. Se ele soubesse na época o que viria a seguir e em como teria se sentido com isso, talvez o elfo teria tentado ser mais presente na época de luto do amigo. Um ano após o envio, Nevra enviou apenas mais uma carta, onde se despediu de seu amigo. Ela era curta e direta.

Ele pedira perdão por não conseguir escrever mais nada além daquela última carta de despedida. Com as responsabilidades de conselheiro, não teria tanto tempo para perder escrevendo cartas que jamais seriam respondidas. Se quer sabia onde seu amigo havia ido. Sua última localização era a nova casa de Twylda, mas sabia que ele não morava mais lá. O passado seria deixado no passado. Esperava que o Elfo estivesse feliz, seja lá onde havia parado, e que, não importa quanto tempo passasse, ele sempre seria o seu irmão do peito.

Quando Ezarel decidiu deixar finalmente o Q.G, ele fez o que achou que era melhor para todos. Apesar de responder as primeiras cartas, uma parte de si ainda sentia que estava sendo um terrível lembrete dos arrependimentos e percas do amigo. Graças a isso, parou de responder com o tempo. Sabia que ele mesmo e o Nevra jamais seguiriam em frente se estivessem apegados ao seu passado. 
Viveu anos com o arrependimento de não ser tão presente no período de luto de seu melhor amigo como gostaria. Talvez fosse a hora de fazer o que Nevra disse: "Deixar o passado no passado".

Ezarel se reergueu do alto da colina, onde estava sentado lendo as cartas e remoendo suas culpas, e desceu de volta a sua casa. Quando a adentrou, foi direto para a lareira onde a acendeu e jogou cada uma das cartas dentro. Ficou sentado na frente do fogo, vendo as chamas consumir cada um dos papiros.

— Ez. — Marie-Anne, agora em sua forma humana com aparência normal, chamou a atenção do elfo na cozinha. — Está tudo bem mesmo fazer isso?

Ezarel parou por um momento, sentindo um pequeno aperto no peito com aquela pergunta. Realmente estava tudo bem queimar a última coisa que tinha de seu melhor amigo?

— Está. — Estranhamente, sua expressão de melancolia foi substituída por um vago sorriso de saudades. — Acho que... prefiro ficar apenas com as memórias dos bons tempos.

•Coletânea [Eldarya]•Where stories live. Discover now