Prólogo

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Narrador:

Em uma certa cidade, existia um garotinho que possuía um dom herdado da avó. Esse poder proporcionava a capacidade de ver youkais e espíritos, permitindo-lhe interagir com eles a seu bel-prazer.

Os youkais são criaturas sobrenaturais, alguns apresentando características animais, como o Kappa, semelhante a uma tartaruga, e o Tengu, conhecidos como cães do paraíso que possuem asas.

Geralmente dotados de poderes sobrenaturais ou espirituais, os youkais tornam os encontros com humanos perigosos. Por serem mais poderosos que os homens, possuem valores distintos, muitos agindo com arrogância em relação aos mortais. São, em sua maioria, invulneráveis a ataques humanos, mas podem ser derrotados por exterminadores qualificados, como caçadores de youkais e monges budistas com poderes espirituais e as bênçãos de Buda.

O garoto os via, sendo a grande maioria aparentemente temerosa da mulher que o acompanhava. Para o garotinho, isso fazia sua avó ser superior às outras avós de seus colegas, afinal, os espíritos a temiam.

Era uma mulher com cabelos castanhos e pontas brancas, semelhantes à lua, e olhos que brilhavam quando se voltava para os espíritos, desafiando-os. Ela lia um livro de capa dura decorado com pedras vermelhas e brancas.

O garoto ouviu sua avó chamar o livro de grimório várias vezes. Grimórios são itens mágicos que aumentam significativamente a habilidade mágica de seu usuário, além de servirem como registro escrito para todos os feitiços do usuário. A maioria das páginas de um grimório está vazia no início; conforme o proprietário cresce e se desenvolve, o grimório também evolui, com novos feitiços sendo inscritos para preencher as páginas em branco.

No entanto, o grimório da mulher era especial, contendo uma mistura de feitiços com nomes que deixavam o garoto confuso. Sua avó sempre o tranquilizava, dizendo-lhe para não se preocupar.

Ela era sua confidente e sua única família, então deviam confiar um no outro até o final de tudo, sem nunca desistir.

— Me prometa que sempre vai ficar longe dos espíritos — dizia sua avó. — Nunca faça amizade com eles, são perigosos demais para confiar. Só deve fazer contratos se souber como enganar cada espírito.

O garoto balançava a cabeça, como se essas palavras fossem a coisa mais fiel para seu mundo. Na verdade, era como um mantra, sempre que avistava um espírito acenando em sua direção e pedia para se aproximar, apenas para virar-se e fugir.

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Mas era uma mentira; o garoto já havia quebrado essa regra muito tempo antes. Este era o único segredo dele que sua avó não conhecia: ele fez amizade com um espírito.

Em suas memórias, lembrava de como conheceu seu amigo, que até o momento nunca revelou seu verdadeiro nome e era simplesmente chamado de "Kit". Toda vez que era possível, o garoto tocava sua música para um garotinho na floresta.

Um era pequeno, com cabelo escuro, e o outro era alto. Os dois faziam um par de fantasia enquanto dançavam juntos, seguindo a música em suas mentes. Ouvia a voz da avó dizendo para tomar cuidado com as criaturas que rondavam a floresta, com os espíritos que ali habitavam. No entanto, o menino sabia que o garotinho não era perigoso, mesmo sendo um membro do reino das scrapbooks.

O reino dos espíritos mais profundo do mundo espiritual, governado por um rei complementarmente sábio por milênios.

Era isso que a avó de Theodoro dizia nas horas de estudo.

A única revelação que o garoto alto havia feito sobre sua existência era nunca dar um único pio sobre mais nada, mesmo que Theodoro perguntasse.

— Sempre ficará ao meu lado? — Theodoro perguntava todas as vezes que tinha que ir embora.

— Vou sempre esperar até que você se lembre de nossa amizade. — O mais alto falava.

E Theodoro ria enquanto dançava, o garotinho que estava sempre um pouco mais velho, um pouco fora de alcance. À medida que as estações mudavam e os anos passavam, Theodoro envelhecia, mas seu amigo permanecia o mesmo, só com algumas diferenças em sua aparência, bem sutis.

Espíritos não envelhecem, mas os youkais envelheciam de uma maneira diferente até que parasse de envelhecer.

Sempre indo para a floresta para encontrar seu velho amigo no bosque. Seus jogos diferiam agora, verdades, desafios e ousadia.

Então, em determinado dia, o amigo não apareceu. Dias passavam e nada, até que o próprio Theodoro começou a esquecer de sua própria aparência e das palavras que trocaram anos atrás.

Seu amigo se tornou mais do que uma lembrança distante. O que Theodoro pensava ser apenas um amigo imaginário, criado para preencher a solidão que sempre sentiu, afinal, em sua cidade, ele era o garoto estranho que frequentemente falava sozinho, na medida do possível. Contudo, ele deixou isso para trás, pois não havia muito o que fazer quando se via espíritos o tempo todo. Se olhasse para eles e fossem percebidos, seria quase como trazer o pior castigo possível para sua vida.

Alguns espíritos nunca compreendem que estão mortos, muito menos que ninguém pode vê-los. O pior é quando os youkais se aproximam, desejando fazer suas travessuras e percebem que Theodoro pode ver e sentir sua presença, o que os anima ainda mais.

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Em certo dia, sua avó começou a adoecer e se recusou a ir ao médico, murmurando que finalmente chegara a sua hora. Isso fez com que youkais e espíritos se aproximassem ainda mais perigosamente, como se isso tivesse liberado a passagem deles para atacar.

Os olhos que antes brilhavam cheios de vida começaram a se apagar a cada dia que passava, deixando Theodoro cada vez mais desesperado.

— Em breve vou morrer — dizia a avó. — Devo dizer que, além disso, foram tempos muito bons para estar viva. Milênios antes de me tornar mortal.

Em vez de responder ou pensar que sua avó enlouquecera, Theodoro começou a pentear seus cabelos.

— Entendo. Eu não quero muito mais. É injusto que eu não possa viver o suficiente para ver você no futuro e o que se tornaram, mas eu odeio estar doente. — Sua voz estava calma. — Mas sei que será algo grandioso quando chegar o momento.

Houve um som alto do lado de fora. Seu corpo inteiro estava debilitado, mas seu cabelo ainda brilhava e os olhos também.

— Não diga essas coisas, vai se recuperar dessa doença — o menino falou, tentando soar animador.

A mulher olhou para o neto, percebendo que a decisão que tomara era a melhor no momento, pegou o pulso do garoto.

— Pode ir em um lugar para mim! — pediu. — Tudo só está certo se disser seu nome.

Confuso, o garoto assentiu e saiu para comprar os remédios. A mulher viu seu neto se afastando e, usando seu último suspiro, lançou uma magia para protegê-lo dos espíritos por um tempo.

Esse foi o último presente que deixou para seu neto. A proteção e, ao mesmo tempo, uma chance de fazer sua nova vida sem estar no meio daquele mundo.

Esse seria o último presente: a proteção da lua para que seu neto ficasse longe dos espíritos até o momento certo chegar. Ela olhou para o grimório e murmurou palavras calmas até que o livro desapareceu no ar.

Ophelia Vinro morreu no final da primavera, perto do verão, entre os espíritos que a amaldiçoaram ao sofrimento eterno. Morreu sem nenhum remorso no coração, além da alegria de ter tido uma família e se apaixonado por cada segundo que teve ao lado das pessoas que amava.

Alegre por ter permitido que o neto encontrasse um jeito de ser comum, mesmo que por pouco tempo, esquecendo seu passado nesse mundo até que escutasse seu chamado.

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Até a próxima 😘

Livro dos ocultosWhere stories live. Discover now