Capítulo 26 - Miguel

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A dor de cabeça que estou sentindo é o menor dos meus problemas hoje. Passei a madrugada em claro, pensando no que fazer, sem chegar a nenhuma conclusão. Só me dou conta que já é de manhã porque ouço a movimentação do lado de fora do quarto, deve ser Mabel ou Bárbara.

A mala está aberta em cima da cama. A indecisão é minha única companheira agora, ao perceber que estou novamente sozinho, já que Clara deve me odiar do mesmo jeito — ou até mais — que me odiava ao me dar aquela bolada na primeira vez que nos encontramos. Nunca foi minha intenção magoá-la, mas sabia que era um dos possíveis efeitos colaterais da minha escolha. De um lado, as únicas pessoas que sempre estiveram comigo e a empresa que fundei, que fiz crescer, meu trabalho iniciado ao lado de Fernanda e de todos os nossos projetos. Do outro, a mulher que me devolveu a vida, que me fez acreditar de novo no amor, e com quem, depois de muito tempo, consegui ser eu mesmo outra vez. Como posso escolher? Quem vou arriscar?

Duas batidas na porta me despertam dos questionamentos. Mabel entra, com cuidado, olhando-me com uma expressão curiosa no rosto.

— Você chegou cedo... — fala, deixando a porta entreaberta e vindo se sentar ao meu lado.

— Foi um fiasco. — Faço uma careta e levanto os ombros, e ela espera que eu explique o que houve.

Conto todos os últimos acontecimentos, todas as minhas dúvidas e angústias. Ela me escuta com atenção, e não consigo decifrar sua expressão conforme narro os últimos dias. Quando termino, ela segura minha mão, e me fita com firmeza.

— Você não tem que ir com a gente, Miguel.

— Essa não é uma opção. Eu vou. Estou apenas chateado com o rumo que as coisas tomaram. Não queria magoá-la daquele jeito, Mabel, ela não merece — desabafo, segurando-me para não chorar, porque até sinto meus olhos arderem de pânico ao rememorar a cena do dia anterior.

— Eu sei, mas a partir do momento que você decide algo por si só, impulsivamente, e não a prepara para isso, você está correndo esse risco.

— Mas eu não tive tempo! Seu tratamento é para ontem, vocês vão viajar logo, vão mudar de país... Eu não tive tempo de me preparar, como poderia fazer isso com ela? — concluo, porque é exatamente assim que me sinto, sem saída.

— Miguel, meu tratamento é imediato. A sua mudança, não. Você poderia ter esperado, pensado, conversado com ela e falado sobre as possibilidades. A agenda da Clara vai apertar ainda mais, tenho certeza de que aqui ou nos Estados Unidos, vocês poderiam dar um jeito — explica, com paciência. — O problema é que você se precipitou, fez isso na hora errada e da forma errada...

— Ela também não precisava ter falado a verdade daquele jeito, na frente da família, na véspera de Natal... — Tento me defender, mesmo sabendo que não tenho muito ao meu favor.

— Miguel, ela está frustrada, apavorada e se sentindo traída. A única coisa que ela tem como certeza é que a família dela sempre estará aqui. Da mesma forma que você largaria tudo para ficar com a sua, devia estar sendo horrível para ela sustentar essa mentira para as pessoas mais importantes da vida dela.

Penso por um segundo, assimilando as palavras de Mabel e sei que ela tem razão. Clara só reagiu daquela forma porque se sentiu acuada.

— Você está certa... — comento.

— Sempre estou. — Ela pisca para mim. — Mas e quanto ao patrocínio? Já sabe o que fazer?

Esse é o outro lado da moeda. O patrocínio está diretamente ligado à minha escolha profissional, e prometi para Enrico que jamais deixaria minhas emoções interferirem na empresa. E não posso deixar.

— Preciso decidir qual opção é mais rentável para a LifeSports. E, talvez isso signifique abrir mão do contrato de patrocínio com a Clara. Acho que de todas as notícias ruins que dei ontem, essa foi a pior. Ela não entendeu que eu ainda não decidi. Mas só de saber que estou ponderando, ficou chateada.

— Faltou um pouco de sensibilidade da sua parte, né, meu irmão? Um combo de notícias ruins na véspera de uma data como o Natal. — Ela revira os olhos.

Dou um meio sorriso, desanimado.

— Que babaca que eu fui! — resmungo.

— Babaca, não. Burro mesmo... — A voz de Bárbara nos surpreende, ela entra no quarto devagarinho, com a cara de sono e de pijama de bolinha.

— Bárb? — Mabel chama sua atenção. — Isso é jeito de falar com seu tio?

Ela se aproxima e me dá um beijo na bochecha. Finjo que vou fazer cócegas nela, mas ela revida, apertando meu nariz. Bárbara para de pé na minha frente, encarando-me quase sem piscar:

— Desculpa, dindo, mas preciso falar. 

Faço sinal para que ela continue.

— Eu ouvi sua conversa com a mamãe, e o que você fez foi a pior coisa que poderia ter feito com a Clara...

Arregalo os olhos, focado na minha sobrinha que, de repente, passou a ser a dona da verdade.

— No dia que dormi na casa da Clara, ela falou que depois da morte do pai dela, ela foi magoada e abandonada pelo ex-namorado, e que essa ferida demorou muito para cicatrizar. — Bárbara parece até gente grande falando. — Então, dindo, acho que ela se sentiu abandonada por você dessa vez.

Recurvo a sobrancelhas, na tentativa de focar o suficiente para acompanhar seu raciocínio evoluído demais para uma garotinha tão pequena.

— O seu trabalho é importante para você. Mas o dela também é... — Bárbara conclui.

— O problema é que o dela depende um pouco do seu, Miguel. Esse é o ponto — Mabel responde, puxando Bárbara para seus braços e beijando sua testa. — Essa é minha garota! Inteligente igual a mãe!

Sorrio para as duas, mas só então minha ficha cai. Só agora consigo perceber o que não consegui ver ontem nos olhos de Clara, ou até no tom da sua voz. Ela foi abandonada algumas vezes, e a minha escolha pode fazê-la frustrar seu maior sonho, ou ao menos ter que adiá-lo. Encaro a mala outra vez. Embora a conversa tenha esclarecido algumas coisas, continuo sem saber o que fazer.

— Pensa direitinho, Miguel. O que você está disposto a perder?

A pergunta de Mabel ecoa na minha cabeça como um eco desesperado. Ela e Bárbara saem do quarto, deixando-me sozinho com meus pensamentos atordoados. Vejo os papéis do contrato sobre a escrivaninha e, não sei se é o destino ou apenas o costume, mas o nome de Enrico aparece na tela do meu celular.

Não posso adiar mais.

Jogo de sorte: um romance por contratoWhere stories live. Discover now