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- « NA » comme « NA-vi-re », "VA" comme "VA-can-ces". Merci et bonne journée.

Já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha usado o mesmo subterfúgio para explicar meu sobrenome, mas sentia sempre a mesma mistura de satisfação e inquietação. Sentia orgulho por ter finalmente achado algo simpático e que, no mais, vinha com um sopro quente de férias estivas que sempre tiravam o interlocutor da jaula da sua rotina e o faziam um pouco mais solícito, mesmo que por uma fração de segundos. No passado já tinha usado outras palavras menos nobres como « Vache » ou « Variole », mas tinha finalmente achado a receita que convinha. Ao orgulho, uma incansável surpresa juntava-se à mistura. Como um sobrenome tão curto e simples, formado de quatro letras, sendo uma delas repetida, pudesse causar tanta confusão? Neves, Naves, Novas, Nova, Nada eram algumas das diversas variações que surgiam, mas eu era sempre capaz de me surpreender com a criatividade, ou talvez a falta dela, a cada nova variante. Eram tantas as variações que tinham virado tradição de família e, como não podia ser diferente, nasci assim, de uma variante no plural: Navas.

Para o não atreito a detalhes, o apêndice "s" só trazia vantagens. Em uma realidade ávida por quantidade, em que qualidade e significado eram reservados somente para as castas superiores, nada melhor que um adereço suplementar e, a começar, pelo nome com que assinaria meu crediário. Na família, no enteando, o "s" jazia como uma maldição havia ao menos duas gerações. Uma história contada e recontada com mais ou menos requintes de dramaturgia dependendo do narrador. Uma maldição de que, apesar do incomodo, ninguém era certo da origem e quem a teria lançado. Porém, ninguém ousava desafiar o destino de carregar o penduricalho serpentinos ao sobrenome, como se esse fosse, talvez na falta de uma melhor, a parte fundamental da história que a família conhecia.

O ingrediente final dessa iguaria de sentimentos que regurgitava a cada ocasião era a vergonha. A mesma vergonha do menino vestido para igreja que ao fim da missa percebe que a razão dos amigos rindo na calçada e o furo nos fundilhos da calca deixando ver a cueca amarela, presente da tia-avó no ultimo natal. Uma imperfeição à mostra, colada, no entanto, para sempre na minha cédula de identidade.

- Tiago Negrão.

- Presente.

- Tiago Navas.

"Professora, gostaria de lembrá-la que o "s" ao final do meu sobrenome fora erroneamente inserido e desqualifica sua origem italiana. Como deve bem saber, o sobrenome Navas é, por sua vez, de origem espanhola. Em toda Bauru, nós fazemos parte da única família Nava, vinda de Bergamo, na Itália" – pensava. Mas rapidamente me abstinha do comentário, ciente de que ele adicionaria pontos importantes na minha já longa lista de atributos não tão apreciados pelos meus contemporâneos. Nem o fato da cor da pele do meu colega de sobrenome "Negrão" ser mais clara que tapioca não me fazia sentir mais autêntico.

• Presente, professora – certamente era a resporta mais segura.

Já deveria ter meus vinte anos quando finalmente me liberei do apêndice indesejável, com uma cirurgia tão rápida quando indolor. O cartório de registro civil aceitou fazer a retificação gratuitamente, reconhecendo o erro do então jovem e inexperiente notário. Estava finalmente livre daquilo que acreditava ser a costura definitiva da minha calça de menino. 

Navegadores de IlusãoWhere stories live. Discover now