Saí do meu quarto e segui em direção a porta ao lado, silenciosamente girei a maçaneta com a intenção de pegar os sapatos sem acordar a Cecília. Mas o quarto estava iluminado por algumas velas quando a porta abriu o suficiente para a minha passagem, deixando a silhueta da minha dama visível. Ela estava em pé de costas para mim, nua da cintura para cima com apenas uma calçola de seda cobrindo suas nádegas, os cachos espessos estavam soltos, livres das costumeiras tranças caíam livremente pela extensão das costas. Pensei em sair do quarto antes que minha presença fosse notada, principalmente quando ela era tão reservada.

Eu estava prestes a me retirar completamente quando ela se virou de lado expondo parcialmente seu peito e barriga. Em outras circunstâncias esse movimento jamais teria me chamado a atenção ou me feito parar, mas ali estava a filha do Visconde Bremner com marcas no corpo que uma dama jamais deveria ter. Ali estava em sua pele abençoada pelo sol, evidências de um passado que ela tentava esconder, e talvez... esquecer.

Fechei a porta novamente em silêncio e voltei para o meu quarto, abraçando a Drystan quando voltei a me deitar...

— Parece estar cansada Mabel, não dormiu bem a noite? — Cecília perguntou depois de me avaliar por um tempo.

— Realmente, os uivos me tiram a paz — ela e Drystan me encararam confusos.

Ambos estavam se distraindo com um jogo de quebra-cabeças, inclinados sobre as peças enquanto avaliavam atentamente os formatos e os desenhos gravados, enquanto eu me concentro no trabalho de derreter pequenas porções de cola para prensar o sapato de Cecília.

— A que se refere? — Ela voltou a analisar as peças em sua frente.

— Muito me inveja a qualidade do sono de vocês — disse com risada na voz. — Como é possível que não tenham acordado nenhuma vez? Se bem que Drystan sempre dormiu profundamente, nem mesmo desperta quando me levanto. Mas você sempre me pareceu ser do tipo que tem o sono leve — indiquei Cecília apontando para ela o sapato já devidamente colado.

— Do que está falando, Bel? — Drystan perguntou enquanto encaixava uma peça no jogo quase completo. Ergui a cabeça para expiar a imagem, reconhecendo como uma pintura da praça Estrela de Neve durante a chuva de estrelas. Um jogo popular para os turistas mais entusiasmados.

— Dos uivos, se é que se pode chamar algo como aquilo de uivos — disse, com a lembrança do barulho gutural me causando arrepios — Realmente nunca escutaram?

— Até onde fui informada não existem lobos por essa região — Cecília disse confusa.

— Não de lobos — balancei a cabeça em negativa —, mas das bestas.

As sobrancelhas da Cecília arquearam com genuína surpresa enquanto que meu irmão largou a peça que estava preparando para encaixar. Nenhum dos dois parecia ter imaginado essa possibilidade até então.

— Desde quando consegue ouvir? — perguntou, sinalizando para Drystan encaixar a pecinha deformada, enquanto ela encaixava outra em seguida.

— Logo que nos mudamos, mas agora tem sido com mais frequência — disse, depois de pensar um pouco no assunto. — Por que?

— Ah! — ela disse parecendo um pouco desconfortável — Por nada, eu apenas me perguntei se era uma coisa recente para ter passado despercebido. Mas imagino que esteja relacionada a qualidade do meu sono. — Ela sorriu amarelo.

Não me pareceu, nem por um segundo que ela acreditava nas próprias palavras. E talvez sejam suposições tolas da minha parte alimentadas pelos acontecimentos perturbadores dos últimos dias, mas algo primitivo em mim gritava que ninguém mais era capaz de ouvir as bestas enfurecidas e novamente eu era a única que não sabia o motivo.

Persona - A Maldição de AmbroseWhere stories live. Discover now