O Último

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Momentos antes, a sala encontrava-se às escuras. Agora não. Uma luz vermelha entra pelas janelas a sul, pintando de sangue tudo o que banha. Pelas janelas a norte, entra uma outra, dourada, transformando cortinas e mobília em ouro, qual toque de Midas.

Onde as duas se encontram, no meio da sala, quebrando todas as leis da cromática, forma-se uma linha negra. Sob esta, sentado numa poltrona de couro, repousa o barão Ekkehard, os olhos fixos na lareira onde há mais de cinco séculos não arde fogo algum.

Ele recorda o dia em que descobriu a verdade sobre o Céu e o Inferno, quando, nesta mesma sala, recorrendo a uma bola de cristal, o velho mago lhe mostrou como eram os dois destinos que esperam todos os homens, depois do fim.

O Inferno não lhe agradou. A luz e o calor excessivos sempre o incomodaram. Isto para não falar da total e absoluta anarquia e dos tormentos que o Cornudo inflige a todos os que lá vão parar.

Todavia, o Céu não era melhor. Um reino excessivamente regrado, onde cada ato era regulamentado, numa tentativa de suprimir a individualidade e criar uma igualdade artificial e impossível.

Ekkehard decidiu, então, que iria fazer tudo o que pudesse para se manter na Terra. O mago aconselhou-o a procurar um homem de que tinha ouvido falar e que talvez o pudesse ajudar. Porém, também o avisou do Armagedão, do dia em que todos os seres, sem exceção, seriam levados para um dos reinos do pós-morte. O barão não prestou atenção ao aviso. Afinal, ainda estava distante.

Ekkehard leva à boca um copo de Bordeaux, o único vinho cujo sabor as suas papilas gustativas, atrofiadas com o passar dos séculos, podiam sentir.

O barão recorda-se da viagem à Transilvânia, das aventuras e desventuras. Lá, encontrou o homem que o mago lhe indicara. Se tal criatura podia ser chamada de homem. Um ser deformado e corcovado, careca e de pele arroxeada. Poucas palavras inteligíveis lhe saíam da boca, cheia de dentes tortos ou em falta, por entre os quais sobressaíam dois longos caninos.

Ekkehard percebeu o porquê de ter aquele aspeto quando viu o abrigo deste outrora homem: uma caverna no meio da floresta, perdida nos Cárpatos, sem mobílias ou ferramentas ou qualquer outro vestígio de civilização, pejada de ossos e carcaças de animais, cujo sangue lhe servira de alimento.

Com muito esforço, o barão conseguiu que a criatura o mordesse sem beber sangue. Apenas o suficiente para lhe passar a doença, para torná-lo num dos mortos-vivos eternos, aqueles com capacidade para durar até ao fim dos dias desta Terra.

Ekkehard levanta-se da poltrona e ajusta as placas da sua secular armadura, que manteve em boas condições precisamente para este momento. Calmamente, caminha até à lareira e pega na espada que repousa sobre ela.

Imagens dos séculos a seguir à sua transformação surgem-lhe na mente. Praticamente imortal e vendo o Armagedão ainda distante, dedicou-se àquilo que mais amava: a guerra. Deixando o castelo à guarda de serventes mortais, que o mantiveram em bom estado, participou em todas as guerras que conseguiu: as Guerras Turcas, a Guerra Anglo-Espanhola, a Guerra da Independência Americana, as Guerras Napoleónicas, a Guerra da Crimeia, entre muitas outras. E nelas supria, também, a sede de que sofrem todos os membros da sua raça não-morta – o sangue humano era bem mais nutritivo que o de qualquer animal.

Contudo, conforme o vampirismo lhe foi destruindo o paladar e o tato, também o prazer, a emoção que tirava das batalhas foi desaparecendo. Após a Grande Guerra, pousou as armas e começou à procura de algo para preencher o vazio que sentia agora no seu interior. Não demorou muito a encontrá-lo na literatura.

Sabendo que faltavam menos de cem anos para o Fim, procurou um género que o satisfizesse totalmente e concentrou-se nele, em detrimento de todo o resto. Foi no Fantástico que a sua escolha acabou por recair. Ficção Científica, Horror, História Alternativa, especialmente interessante para quem viveu a História como ela ocorreu, fascinavam-no. Mas era a Fantasia Heroica e Épica que o atraíam especialmente. As histórias de Howard e Tolkien, e seus sucessores: Brooks, Eddings, Gemmel, Feist, Cook, Abnet, Martin, para nomear apenas alguns. Demandas impossíveis, guerras épicas, heróis valorosos, mas nem sempre perfeitos, vilões cruéis, mas nem sempre maus, duelos incríveis. Todos eles semelhantes, mas não iguais, invocavam o prazer, a emoção que sentiu nos seus tempos de guerreiro, com acréscimos, até mesmo quando os heróis derrotavam criaturas em tudo semelhantes aquela em ele próprio se tornara.

Ekkehard abandona a sala. Conforme percorre o corredor, deita um último olhar para os vários quartos, todos eles cheios de estantes recheadas de livros. Ele lamenta já não ir aqui estar para ler futuras aventuras. Então, lembra-se que talvez não exista mais ninguém para escrevê-las, que talvez todos os outros seres humanos tenham sido mortos, enviados para os reinos do pós-morte pelos dois exércitos que se digladiam, numa tentativa de obter superioridade numérica na batalha final da Guerra Eterna. Quantos objetos ficarão por encontrar? Quantos vilões por derrotar? Quantos heróis por nascer? Quantas batalhas por travar?

O barão desce as escadas exteriores da torre de menagem, atravessa o pátio calcetado, transpõe o portão e, percorrendo a ponte de pedra construída sobre o fosso, chega aos campos que, em outros tempos, os seus servos trabalharam.

Olha em volta. Ainda no dia anterior o castelo se encontrava rodeado por montanhas. Agora não. Até onde a sua vista alcança, existem apenas planícies. Os dois exércitos destruíram tudo à sua passagem. E agora estão quase sobre ele.

A sul, encontram-se demónios, alguns enormes, com mais de dez metros de altura, outros minúsculos, que nem chegam aos dez centímetros. Alguns magros, outros gordos. Alguns voam, suportados por asas semelhantes às dos morcegos, outros arrastam os pés pelo chão e outros, ainda, caminham pelo ar como se de terra firme se tratasse. Porém, todos têm dois chifres a sair-lhes da testa e pele vermelha que irradia uma luminosidade da mesma cor.

Ao norte, encontram-se anjos, o seu aspeto muito mais consistente que o dos demónios, pois todos se assemelham a humanos. Apenas as asas, cobertas de penas brancas, os distingue uns dos outros, pois o seu tamanho varia, provavelmente conforme o status de cada um. Uma aura dourada envolve-os a todos, emanada pelas auréolas que pairam sobre as suas cabeças.

Apesar da quase imortalidade de todos os vampiros, que só podem ser mortos se lhes trespassarem o coração ou deceparem a cabeça, Ekkehard sabe que não tem qualquer hipótese contra os inúmeros e poderosos inimigos que se aproximam. Ainda assim, não se resigna. Não vai ser apenas mais um dano colateral da Guerra Eterna. Não se vai deixar derrubar por anjo ou demónio, não sem dar luta.

Segurando a espada com as duas mãos, Ekkehard toma uma pose de combate. O seu olhar dardeja entre o norte e o sul, esperando que os primeiros soldados de ambos os lados fiquem ao alcance da espada. Preparando-se para dificultar ao máximo o seu encarceramento nos reinos da pós-morte.

FIM

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