Capítulo dois, sobre os humanos

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São chatos e esquisitos.

E eu poderia parar por aqui.

Mas não.

 Às vezes eles eram realmente um bom passatempo. Principalmente quando eu me enchia com o pessoal lá de cima.

Na maioria das vezes, eu descia para a Terra com uma freqüência um pouco maior que a aceitável. Mas funcionava, aquilo costumava me distrair um pouco.

Quando eu precisava de uma dose extra de elogios para aumentar meu ego, eu preferia me transfigurar em humana. Embora não fosse exatamente confortável, compensava bem na parte do ego.

Mas não naquele dia.

 Por algum motivo eu quis descer imperceptível. Andar nas ruas sem ser notada.

Uma sombra.

Um fantasma.

 Olhei para o relógio da praça, ainda era cedo. Eu tinha pelo menos duas horas até o humano infeliz resolver pegar a moto e sair para uma viagem sem volta.

Para ele, claro.

Eu ainda teria que levar sua alma desprezível lá para cima.

 Conformada com o meu destino desanimador, eu decidi vagar pelas ruas sem nenhum objetivo específico.

Péssima idéia, como eu ia descobrir mais tarde.

 As ruas estavam apinhadas de gente. Era sexta-feira, horário de pico. Os humanos mais felizes faziam o que eles chamavam de "Happy Hour".

O que, na maioria das vezes, consistia em beber até atingir um estado deturpado de euforia e depois falar mal da vida alheia.

Desprezível.

 Mas ainda assim, era melhor do que ouvir provocações do Jason.

Na verdade, qualquer coisa era.

Entrei em um barzinho lotado. Normalmente aconteciam coisas interessantes ali e quase todos os rostos me eram familiares.

Havia o dono do bar que era corpulento e tinha um bigode grisalho do qual 

nenhuma pessoa sensata ousaria chegar perto. Ele era irritantemente agradável com os clientes, embora a história fosse um pouco diferente quando ele estava em casa.

A alma dele seria minha, eu tinha feito questão de reivindicá-la pessoalmente. E se não fosse pela menininha de quatro anos que o chamava de pai, eu já teria a arrancado dele com as próprias mãos.

 Havia a garçonete.

Embora ela tentasse e se esforçasse em parecer feliz, ela não era. Por anos ela havia nutrido uma paixão secreta pelo seu primo mais velho, mas nunca conseguiu explicitar o sentimento.

Humanos e seus medos idiotas, seus pudores irracionais. Até o dia em que eu chego e então eles lamentam tudo o que deixaram de fazer.

 Recado, queridos: Aí já é tarde.

 Tinha também o grupinho de universitários que ocupava a maior mesa do fundo. Eu conhecia todos eles, alguns já tinham me escapado por pouco.

O mais moreno tinha sérios problemas de auto afirmação. Ele era inseguro e sofria em silêncio. Por fora, pose de mau. Ele sabia ser rude como ninguém e isso mantinha as pessoas certas afastadas. Ou era o que ele pensava.

O branquinho de cabelos dourados era curioso. Em primeiro lugar ele era lindo – e sou obrigada a admitir, porque era um fato. Até o nome dele eu sabia. Henry. Mas ele era esquisito. Era quieto demais, reservado demais. Um nerd como os humanos costumam rotular.

 Aliás, humanos adoram rótulos.

Estereótipos.

Qualquer coisa que possam usar para separar as coisas ou eles mesmos e depois brigar para descobrir quem é o melhor.

Desprezível, e por um motivo simples:

Eles  são  todos  feitos  das  mesmas  coisas,  são  criados  do  mesmo  jeito,  e desaparecem desse mundo da mesma forma.

Ah, claro. São teimosos.

Vão continuar fazendo isso até os rótulos chegarem a um número tão grande que não vão mais conseguir juntar dois deles com uma palavra só.

Uma declaração: Meus pêsames.

Tinha também a menininha de cabelinhos pretos e espetados. E eu a chamo assim, não porque ela efetivamente fosse uma menininha, mas porque se parecia com uma. No tamanho, no rostinho delicado.

Irritantemente infantil, descontraidamente sorridente. Sorridente demais. Até onde eu sabia, ela era a única ali que era feliz de verdade, embora eu não soubesse exatamente o porquê.

Mas não creio que isso importasse.

Olhei para o relógio sujo dentro do bar, era nove e quinze. O tempo e suas propriedades interessantes, sempre correndo contra nós.

Eu devia ir para a via expressa, o infeliz da moto já devia estar para chegar.

Quando lancei um último olhar à mesa dos universitários, o humano chamado Henry puxava o celular do bolso. Por algum motivo, eu parei.Ele acenou umas duas vezes com a cabeça, abriu um sorriso de lado e se levantou com uma frase curta.

 -Meu primo chegou.

 Aquele foi o primeiro dia que eu vi o homem que me chamava de anjo.

O homem que me chamava de anjo [FINALIZADA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora