Capítulo 2 | Seher

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O som de uma gaivota ao longe foi responsável pelo despertar repentino de Seher. Ainda eram 2 da manhã, mas ela não se surpreendeu com a súbita falta de sono alguns segundos após abrir seus olhos. Ela não conseguia lembrar da última vez que conseguiu dormir por mais de 3 horas ininterruptas. Provavelmente em algum momento antes de todo o pesadelo que viveu alguns meses antes.

Já faziam 3 meses que ela se mudou para uma cidade portuária na costa do mar Egeu. Era longe o suficiente de Istambul para despistar Yaman e seus homens, mas ela sabia que cedo ou tarde teria que escolher uma outra cidade. Construir raízes ali facilitaria para eles. E pela honra da memoria de sua irmã, ela não poderia fazer isso.

Com um suspiro cansado e uma leve dor no pescoço, ela levantou-se e silenciosamente foi até a janela. Da pequena casa que alugara não dava para ver o mar, mas dava para sentir a brisa fria que vinha dele e os barulhos das gaivotas ao longe.

Quase que automaticamente, seus olhos procuraram por um ponto em específico no céu. Era inevitável não lembrar de seu marido quando ela olhava para a estrela do norte. As lembranças vinham com um amontoado de lágrimas. Ela se odiava por ainda se permitir chorar por ele, pelos bons momentos que viveram juntos. Se odiava por ter atirado nele naquele maldito dia, mas também se odiava por voltar e chamar por ajuda. Ele não merecia a misericórdia dela, mas ainda assim a teve.

Mesmo depois de tantas semanas, ela ainda sentia a traição de Yaman como se tivesse descoberto naquele mesmo dia. Se ela fechasse os olhos, ainda podia sentir as mãos fortes de seu marido agarrando-lhe os braços enquanto gritava que era o assassino de sua irmã.

No momento que Firat lhe contou que a morte de Kevser foi intencional, ela sentiu na mesma hora um ódio extremo pelo assassino dela, mesmo não sabendo quem era na época, mas quando Yaman confessara o crime, ela sentiu algo ainda mais forte do que aquele ódio inicial.

O peso da traição foi mais do que ela podia aguentar. A mistura de ódio, mágoa, nojo e... bem, amor, fizera ela chegar ao próprio limite, o que desencadeou o maldito tiro em Yaman.

Um barulho atrás dela a assustou, tirando-a de seus devaneios. Yusuf havia deixado seu urso cair no chão.

Olhando para seu sobrinho adormecido em sua cama, ela deu um fraco sorriso. Ele foi o maior afetado em toda essa história, mas aos poucos estava se acostumando. Os primeiros dias de adaptação foram horríveis, ele chorava pedindo por seu tio todas as noites. Chegou até a evitá-la. Doía ver a rejeição de seu sobrinho, mas ela sabia que era o melhor para ele. Nunca seria capaz de deixar a criança crescer sob o mesmo teto do assassino de sua mãe.

Atualmente ele parecia melhor. Ela sabia que ainda sentia falta do tio, afinal, dormia todas as noites abraçado com um urso que nomeara Yaman. Era quase cômico o quão parecido a pelúcia era com Yaman, por causa de uma mancha semelhante a um bigode. Yusuf dizia que iria abraçar o pequeno urso enquanto não podia abraçar o tio. De alguma forma, o menino ainda tinha esperanças de revê-lo.

Seher evitava o assunto, não sabia como diria ao sobrinho que nunca mais iria ver o tio. Talvez o silêncio dela fosse o responsável pela esperança da criança.

Ela soltou outro suspiro. Tudo isso era exaustivo, mas era o melhor para ambos. Uma vida tranquila em cidades do interior os aguardava, eles só precisavam se adaptar melhor. Talvez com o tempo Yaman desistisse de tentar encontrá-los. Talvez ela até consiga superar a dor que é amar o assassino de sua irmã.

xxx

­— Aqui estão as chaves do restaurante, caso minha estadia em Izmir dure mais do que o esperado — diz o Sr. Ömer — se eu não voltar amanhã à noite, você abre novamente no dia seguinte.

— Tudo bem, Sr. Ömer. Não precisa se preocupar. — Seher pega as chaves na mão do mais velho e o acompanha até a porta do restaurante.

O senhor de 67 anos era proprietário do restaurante e da casa que ela havia alugado. Apesar de terem se conhecido apenas há 3 meses, ambos formaram uma amizade muito valiosa. Provavelmente por serem conterrâneos de Antep e compartilharem lembranças da cidade natal.

— Se precisar de alguma coisa, você pode ligar para Secil. Ela só está indo me deixar, depois volta direto para cá.

Seher acena com a cabeça e dá um sorriso de lado para Secil, neta do Sr. Ömer, que estava colocando a mala de seu avô no porta-malas do carro.

Eles estavam indo a Izmir para que o Sr. Ömer pudesse visitar sua irmã, que estava com uma saúde frágil. Secil, sua neta, voltaria logo em seguida para cuidar de seu próprio negócio.

Como o restaurante era pequeno, só era necessário Seher e mais uma garçonete, Elif, uma adolescente que trabalhava lá por meio período.

Seher era responsável pela cozinha e atendimento aos clientes, quando o restaurante estava muito movimentado. Apesar de ser cansativo, ela adorava aquele lugar. Tinha esquecido o quão bom era cozinhar para mais do que duas pessoas. Por alguns momentos do dia, ela podia fingir que sua vida não estava virada de cabeça pra baixo. Mais de uma vez ela se pegou fechando os olhos e imaginando que estava na cozinha da mansão, com Yusuf sentado na mesa e Yaman a atrapalhando. Tais lembranças traziam um sorriso em seus lábios, mas rapidamente ela se repreendia. Havia prometido a si mesma que não iria lembrar do que viveu com aquele homem. Era um insulto a memória de sua irmã.

O dia de Seher começou como o de costume. Ela preparou a comida e ajudou Elif no atendimento. No meio da tarde ela teria que ir buscar Yusuf na escola e levá-lo ao restaurante. Lá, ele iria sentar e fazer suas atividades de casa enquanto ela continuava o trabalho. No começo da noite Secil assumiria o restaurante para que Seher e Yusuf voltassem pra casa.

Essa era a rotina de todos os dias, e seria exatamente assim naquele dia se uma visita inesperada não aparecesse.

Seher estava limpando uma das mesas do lado de fora quando notou a presença de Yaman. Ela não precisou vê-lo para saber que ele estava ali. Uma brisa marítima levou seu perfume amadeirado para ela. Parecia ridículo, mas ela podia até mesmo reconhecer o som de seus passos pesados.

Virando-se lentamente ela pôde finalmente vê-lo. Seu coração deu um pulo ao ver ele se aproximando lentamente. Ele parecia diferente, maior. O cabelo não tinha tanto gel como antes e sua barba parecia um pouco mais cheia, mas seu efeito era o mesmo. Ela reprimiu um suspiro enquanto obrigava a si mesma a se controlar.

Apesar do ódio que sentia por ele, ela também sentia amor. Ela tentou desfazer o nó que se formou no fundo de sua garganta, a última vez que o vira foi quando ela voltou naquela estrada e pegou o telefone dele para chamar ajuda. Depois disso, só teve a notícias através de Firat, que havia lhe dito que ele estava bem., apesar de ter passado por uma cirurgia delicada.

Doía vê-lo e não poder abraçá-lo. Doía amar e odiá-lo ao mesmo tempo. Ela havia passado esses últimos meses fazendo o possível e o impossível para tentar esquecê-lo, mas tudo o que conseguia eram mais lembranças em sua mente. E agora ele estava ali, parado em sua frente.

Seu semblante era de puro cansaço, mas havia algo mais ali. Seus olhos revelavam algo que ela só havia visto no hospital, logo após a prisão de Selim. Seria aquilo esperança? Ele realmente achava que era só aparecer que ela voltaria? Apesar de amá-lo, ela nunca voltaria para aquela mansão. Enquanto encarava seus olhos escuros, ela já estava pensando em como escapar da situação e fugir novamente, mas antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele falou.

— Precisamos conversar. É importante.

RedemptionWhere stories live. Discover now