Capítulo 1

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À Cami, Cau, Cla, Cyz, Di, Ju, Kinha, Lau: porque Deus escreve certo por linhas tortas; escritores, não.

 

 

I

 

Somos desfeitos pela verdade. A vida é um sonho. É o despertar que nos mata

Virginia Woolf, Orlando – uma biografia

Caía a noite naquele começo de verão em Nilópolis e o dia na 57ª DP tinha sido muito tranquilo. Também, pudera, sem delegado fazia tempo – preso em um esquema de propina juntamente com outros dois policiais civis –, os trabalhos acumulavam e a burocracia ganhava de goleada da produtividade. Landim, policial mais antigo, fazia as vezes de auxiliar na ausência de um titular. Naquela semana, entretanto, as coisas iriam mudar. O comando da Polícia anunciou que chegaria um novo profissional para chefiar a delegacia, juntamente com três policiais designados para fechar a equipe. Destes, dois chegaram antes mesmo da chefia e do funcionário restante.

Francisco e Landim, policiais experientes, eram os únicos que sobraram após tantos entreveros e tinham sensações diferentes sobre a novidade. Landim, policial velho, useiro e vezeiro na arte sórdida das propinas, armações e esculachos, estava desconfortável. Não sabia quem viria para assumir a delegacia e isso não lhe deixava muito seguro. Já Francisco, popularmente chamado de Chico, queria trabalhar. Embora tivesse seu jeito pacato, era uma raposa felpuda na polícia. Religioso, tratava a Bíblia e a pistola com a mesma reverência, embora gostasse mais de sacar a primeira do que a segunda.

Pela manhã, Francisco e Landim já tinham sido apresentados a dois dos três policiais que complementariam a equipe. Novos, recém-saídos da Academia. Chico foi solícito, abriu um sorriso e apertou fortemente as mãos dos dois. Houve uma empatia imediata. Landim os tratou com desdém, sequer cumprimentou.

— Olha esses merdinhas, fedendo a leite! Esses caras não vão aguentar a pressão, Chico...

— Landim, você fala demais.

— Eu falo porque eu sou foda, Chico. Eu nunca fugi de tiroteio, confusão, essas porras. Vê se eu dou mole. Esses caras tem tudo cara de cuzão.

— Tá certo, Landim. Tá certo...

Chico não gostava de atritos desnecessários, mas nunca tinha visto Landim em um tiroteio de verdade. Ele era o tipo de cara que comia mortadela e arrotava presunto de Parma. A convivência entre eles era apenas no limite da obrigação, até porque o religioso policial recusava qualquer tipo de esquema, sendo sempre relegado a segundo plano naquela delegacia. Até aquela quinta-feira, ao menos.

* * *

Para alguém criado na Zona Sul, andar pela Baixada Fluminense tem um quê de exótico. Ao descer do carro, pisando firme com o sapato de salto alto em frente à delegacia, Luzia imaginava o tamanho de seu desafio. A vida para ela nunca foi fácil, desde o dia que passou para a faculdade de direito. O fato de ser bonita, no meio machista e misógino do direito, mais atrapalhou do que ajudou. Mesmo assim, ela nunca titubeou sobre qual carreira seguir. Queria ser policial. Delegada, para ser mais específica. Passou no concurso com louvor, fez todos os exames e a Academia. Foi enviada para Nilópolis, em uma delegacia completamente fraturada, sem estrutura e sequer funcionários.

Depois do escândalo ocorrido naquela DP, ela sabia que teria de lidar com uma equipe majoritariamente nova. A parte boa era poder imprimir sua identidade; a ruim era mais uma vez entrar em um meio que poderia rejeitá-la de pronto. Entretanto, com isso ela já estava acostumada e não se renderia.

Dezena, Centena e MilharWhere stories live. Discover now