Capítulo Único

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  Ela estava lá. Atrás do piano. Conheço essa música. É a nossa música. Nós fizemos ela. Eu também quero tocar. Quero tocar a música que nós fizemos.


    O feixe de luz atravessava lentamente minha visão, do preto para o branco. Eu morri? Pensei, mas não, a luz era artificial. Cheiro de borracha e sangue. Estava em um hospital. Minha cabeça doía tanto que dava sono. Com esforço virei o pescoço para a direita. Em um sofá quase invisível por ser da mesma coloração das paredes, uma figura de cabelos negros da altura do ombro. Parada, quieta, me concentrei para ouvir sua respiração calma e compassada, dormia tranquilamente. Mãe. Minha garganta estava seca e os lábios colados. Um som de ranger me impediu de voltar à inconsciência. Uma figura de branco entrou na sala despertando a outra. "Ele acordou" ouvi baixo. Minha mãe se abaixou na cama e pude ver seu rosto mais claramente. Se não fosse por seus olhos cor de mel, era a cópia de Mari.


    - Filho? - Balançou meu braço e senti os tubos colados a ele. - Tente falar.


    Murmurei algo que nem eu mesmo pude distinguir, mas foi o suficiente para minha mãe cair em lágrimas de alívio. A enfermeira pediu para ela sair enquanto faria mais alguns exames. Só então percebi que enxergava tudo com um olho.


    Dez minutos de check-up, entre testar meus reflexos, que conseguiram se despertar depois de tomar o que supus ser algum xarope ou remédio para dores musculares, também desfecharam minha cabeça, mas o olho direito continuava tampado com um grande curativo. Em nenhum momento me perguntaram se lembrava o que houve antes de parar aqui, esse foi trabalho de minha mãe. Apenas balancei a cabeça em negativo. Ela passou a mão em meu cabelo e deu um leve sorriso.


    - Eles virão amanhã para visitar você e Basil, tente dormir um pouco.


    Voltou ao sofá e fechou os olhos, mais relaxada. Não consegui fazer o mesmo. As memórias do que aconteceu começaram a ressurgir como um filme antigo na minha cabeça.


...


    Lembro de estar no quarto de Basil, todos dormindo em sacos no chão. Eu estava no meio dos dois irmãos, Aubrey estava ao lado da cama. Esta estava vazia. Mesmo com os roncos de Kel ao pé do meu ouvido consegui ouvir passos leves no corredor, indo na direção do banheiro. A sensação ruim que senti nesses últimos seis dias voltou com força. Devagar, levantei do meu saco de dormir e me pus de pé indo até a porta, usava meias então não fazia barulho. A porta do banheiro social estava entreaberta. A única fonte de luz era a lua que atravessava a pequena janelinha alta à esquerda, que refletia sobre o espelho e dava uma melhor visão do cômodo. A figura loira estava à frente da pia, de costas para mim, se olhasse no vidro poderia me notar, mas ele estava ocupado, chorando. A sensação estranha aumentou se tornando presença. Em determinado momento ouvi uma voz, um cochicho perto de Basil.


"Você é o culpado"

"Você ajudou"

"Você ajudou a matá-la"


    Um frio correu a espinha. Basil se sufocava para abafar o choro que piorava a cada som. Eu via. A presença negra ao lado do meu amigo, seu único olho brilhante. Minha respiração descompassou, pânico tomou todas as células do meu corpo, não queria ficar parado ali, e fazer aquilo foi a primeira coisa que me veio a cabeça cheia de adrenalina. Abri a porta e corri, mas a cada passo sentia que ficava mais distante, como se estivesse em uma esteira de academia. Tomei coragem e flexionei os joelhos, me lançando na direção da bancada de mármore. Se Basil não tivesse puxado o braço no susto, eu teria batido a cabeça na quina da pedra. Levei-nos ao chão no ato de tentar tirar a faca de cozinha das mãos do mais baixo.

Omori - The Good EndWhere stories live. Discover now