Saudades

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Sinto saudades. 

Do toque, do afeto, da intimidade.

Há quanto tempo não abraço? há quanto tempo não me apaixono perdidamente? Vou-me esquecendo aos poucos, sem saber mais como era. 

Penso que há algo errado comigo, porque todos conseguem e eu não? Quero me apaixonar, sentir o coração pulsar freneticamente de novo, sentir o calor e o desejo de novo, mas me falta alguém (ou algo?).

Todos os dias martelando na cabeça: há algo errado comigo, há algo errado comigo, há algo errado comigo.

2020 foi um ano de muitas mudanças, mas este problema já existia antes, não foi culpa de 2020. A distância já existia aqui dentro, de alguma maneira. Seja homem ou mulher, nada muda. O vazio está dentro do meu ser.

E ainda assim sinto saudades, do toque, do afeto, da intimidade.

Saudades de deitar na cama e abraçar alguém, sentindo nossos corações pulsarem juntos, sentindo o calor humano da pessoa que eu amo. Saudades de entrelaçar as mãos e escutar a outra pessoa reclamar que eu suo bastante nelas. Saudades da intimidade do dia-a-dia, de ver aquele que você ama sonolento após acordar ou preocupado com os problemas do cotidiano. 

Saudades...

E ao mesmo tempo sinto aversão à esta saudade. No dia-a-dia mantenho distância de todos, solitária em meu canto e sem contato social humano. Como posso desejar algo que nem eu mesma procuro? Como posso ter saudades de algo que eu evito? Esta dicotomia me enlouquece, me sufoca até não poder mais. Horas e horas que perco me debruçando em lágrimas, sentindo o salgado queimar meu rosto e alcançar meus lábios, solitária. 

A quem recorrer, se me sinto só neste mundo? Por que é tão difícil ser humano?

Nós, com nossas futilidades cotidianas e ao mesmo com nossas complexidades internas. Existir é resistir. Existir é sofrer. Nosso maior inimigo somos nós mesmos e ao mesmo tempo nosso melhor amigo. 

E ao mesmo tempo, não posso depender de mim para existir. O ser humano é naturalmente sociável, mas qual o meu problema? Por que não me encaixo?

Aquele sentimento de ser sempre uma pessoa à parte, de ser sempre um deslocado em qualquer meio social, mesmo o próprio meio social que se pensa que seja o seu meio me sufoca e me consome lentamente por dentro. Mas ainda assim tenho saudades.

Saudades... de ser amado e amar. de ser único na vida de outra pessoa e também tê-la como única para si. O amor é mágico e autodestrutivo, mas isso só o torna mais empolgante. 

O que sinto neste momento é ódio. 

Odeio o fato de não conseguir me forçar a amar, odeio o fato de não conseguir ser amada. As pessoas ao meu redor me parecem vazias, vagas, como corpos translúcidos que você não consegue enxergar os detalhes. A superfície é difusa, não consigo mergulhar pois tenho medo. Como vou mergulhar se não conheço o que há do outro lado?

O outro lado é sombrio, desconhecido. Tenho medo de me machucar. E nesse medo me conformo a estar sempre sozinha, sonhando com um futuro platônico ao lado de alguém que jamais irei conhecer. 

Mas pensando bem, não é apenas no conformismo que reside minha inércia, mas também na falta de curiosidade. Não tenho vontade de me aventurar, de explorar, estou bem onde estou e não estou bem ao mesmo tempo. Prefiro a ilusão onírica do que me ferir no mar de rosas espinhentas da realidade. 

Ou talvez eu apenas precise de óculos. Se enxergo o mundo difuso e borrado, preciso do objeto que me faça enxergar com clareza, que me desperte. Mas onde encontrá-lo se não no próprio mar sombrio cuja superfície não consigo atravessar? Até que ponto estou disposta a meu sacrifício interno da minha complexa luta do desvendar do meu ser para que eu me torne lúcida em meu próprio conhecimento? Nem esta resposta eu tenho.

Às vezes me imagino deitada acariciando o rosto de alguém que ainda não tem nome, forma ou cheiro, que ainda não tem voz, cor ou consistência, que ainda é um borrão translúcido como qualquer outro. O que esta pessoa diria? Qual seria sua reação ao meu toque quente e suado? E como ela me tocaria o rosto ou se tocaria? A imaginação que vicia e me prende à inércia, sem muito esforço. 

Talvez... assim seja melhor.

Com novos entrelaçamentos humanos surgem novas dificuldades. Talvez seja melhor abdicar destes íntimos sonhos porém complexos em prol do que eu sonho para mim. Talvez... talvez se eu construir uma estrutura sólida com alguém não terei tempo para minhas próprias concepções egoístas e individuais do que se deve acontecer e quando. Lembrando de meus relacionamentos anteriores, até que não faz mal abdicar de relações humanas para que se possa focar em algo funcional e menos sentimentalmente complexo.

Talvez o preço de se conseguir viver plenamente seja não sentir nada por ninguém e ao mesmo tempo se sentir um grande ponto fora da curva normal humana. Todos se apaixonam, todos sentem atração por alguém mas não você. Você é único e especial. Você está livre de todos os intempéries que levam o ser humano à maior loucura de suas vidas, em qualquer época, em qualquer ciclo. Se alegre ao invés de se lamentar! Você nasceu com essa bênção divina. Agora pode tocar o barquinho em busca de sua vida, sem se preocupar com os agouros dos infortúnios humanos.

Realmente.... realmente faz sentido, ou será que não?

Você vai se acostumar, sei que vai. Este eterno rio da vida vai ser regado pelo afluente da angústia do deslocamento social, mas está tudo bem, você vai se acostumar. Faz parte. 

É, acho que ainda não encontrei a resposta e sim criei mais perguntas. Mas afinal, esta é a graça de ser humano. Perguntas e mais perguntas e poucas respostas e morte. 

Mas ainda assim, sinto saudades... do toque, do afeto e da intimidade.  

Saudades.Where stories live. Discover now