IV - Sinais

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Despi a blusa fina de alças e a pequena cueca que vestia. Entrei na banheira depois de abrir a torneira de bronze antiga que mais parecia um telefone com o auscultador apoiado em dois braços encaracolados nas pontas. Ao meio, uma pega cerâmica, neutralizava a temperatura do metal. O vapor de água começou a subir e deixei a água cair sobre o meu corpo. Estava mesmo a precisar de um banho para me lavar a alma e o pensamento embrulhados!

Enquanto ensaboava o corpo, senti um leve toque na porta e respondi:

- Estou a tomar banho, Tomé. – de fora ninguém respondeu nem insistiu.

Terminado o meu banho, enxuguei o corpo e coloquei o meu creme de sempre e vesti o roupão. De novo ao espelho, escovei o meu cabelo longo, castanho claro. Passei o creme das pontas, lavei os dentes e quando me preparava para sair, a porta estava trancada.

Rodei com força a maçaneta fria, de cerâmica inglesa de efeito estalado, e nada. Chamei o Tomé e ninguém respondeu. Com mais calma, para me certificar que a maçaneta não tinha um jeito secreto de abrir, rodei para um lado e para o outro, mas nada... Um calor começou a invadir-me o corpo. Voltei a chamar o Tomé, desta vez com mais força, bem mais alto. Ouço do outro lado uma gargalhada. Só podia estar a brincar! Furiosa disse;

- Tomé, abre a porta por favor! – ele só se ria.

- Tomé o que se passa? Não brinques comigo! Sabes que eu não gosto de ficar fechada, fico ansiosa, desesperada! – implorei, justificando, e nova gargalhada se ouviu.

Aguardei com a certeza que não demoraria a abrir, mas isso não aconteceu. Voltei a chamá-lo, já furiosa, e ele por fim abriu. Encarei-o com ódio de morte e disse-lhe, amuada, retirando a roupa para vestir de uma das gavetas que me fora destinada, no enorme armário de madeira, perfeitamente entalhado:

- Que saibas que não dormirei aqui muito mais tempo! Bem sabes que esta casa me assusta e não gostei da brincadeira. – ele voltou a rir da minha expressão desorientada e aquilo enfureceu-me ainda mais.

-Não sei do que te estás a rir! Bem sabes que durmo algumas noites aqui sozinha, quando estás de turno e isso não me tranquiliza. A casa é muito bonita, espetacular até, mas é grande demais, tudo está muito disperso, faz eco por todo o lado, os móveis, esta cama... não sei! São muitos aspetos. - disse por fim para que ele entendesse.

Então, Tomé veio ter comigo, abraçou-me e tentando serenar disse-me:

- Calma! Bem sabes que são só mais uns dias. Assim que fizermos a escritura... Penso que não demorará mais do que três semanas e isso é o quanto baste para nos casarmos, entretanto, e passarmos a estar na nossa casa de vez.

Imaginar-nos na nossa casa deixava-me bem mais tranquila, na verdade. Tínhamos imensas coisas embaladas, os meus livros, as minhas pastas, alguns artigos que tinha para rever e, quem sabe, publicar em breve, as roupas que, entretanto, começavam a fazer falta, as memórias... os planos... tantos planos!

Vestidos, descemos para nos juntarmos à família do Tomé e tomarmos juntos o pequeno almoço. Ele estaria de folga e poderíamos tratar de uns pormenores finais do casamento. Quando chegámos à enorme sala de jantar, onde uma mesa repleta de opções gastronómicas se estendia por quase toda a divisão, reparo que só faltávamos nós. O pai do Tomé, o senhor Virgílio de Assis Bettencourt, era um senhor alto, meio calvo e assumia a cabeceira da mesa, entretido a ler o Diário Insular cuja capa denunciava problemas na execução das obras da requalificação da nova marina de Ponta Delgada. Pensei de imediato que também ia ler o jornal, logo que terminasse. A mãe do Tomé, D. Esmeralda, estava logo ao seu lado, seguida pela irmã mais velha do Tomé, Conceição, que nunca casara e dedicava a sua vida à conservação das relíquias do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Eram quase replica uma da outra, mas com as devidas diferenças impostas pelo tempo. A mãe tinha o cabelo loiro escuro , muito bem-apanhado na nuca, a evidenciar umas pérolas ligeiramente exageradas nas suas orelhas. Na cara, os seus óculos madrepérola disfarçavam uns olhos azuis profundos. A filha apenas tinha o cabelo solto a contrastar, de resto ambas vestiam um conjunto rosa suave, muito parecido. Depois da irmã mais velha do Tomé, estava o irmão do meio e que tinha a minha idade, o Vicente, de ar muito descontraído com a sua t-shirt de padrão bem colorido com representações Arte Nova. Via-se que era um tipo aberto e menos conservador. Logo a seguir, um protótipo do seu pai, estava o irmão mais novo do Tomé, o Jeremias. Sentámo-nos os dois do outro lado da mesa, depois de os cumprimentarmos. Tomé ainda pediu a bênção aos seus pais.

Eu sentia-me perfeitamente desenquadrada do contexto e o Tomé sabia perfeitamente do meu constrangimento, por isso para me descontrair perguntou-me o que gostaria que ele me servisse. Respondi-lhe que aceitaria um pedaço de bolo de laranja e um pouco de chá verde. O meu chá verde que eu adorava e me sabia a casa! Aguardamos que os pais do Tomé se servissem e o Tomé lá me entregou a chávena de chá e um pedaço bem generoso do maravilhoso bolo da Linda, a empregada da família há longos anos. Aliás, a Sra. Olinda era da casa, apesar de ser ela que cumpria todas as tarefas, mas digo que era da casa porque mais do que ninguém conhecia aquela família, tinha acompanhado o crescimento dos filhos daqueles senhores, tinha assistido às confusões daquele casal, às revoltas da D. Esmeralda, à saída para estudar do Tomé e depois do rebelde do Vicente. Era uma senhora baixinha, de cara redonda e muito generosa. Nunca tinha formado família, tendo dedicado a sua vida àquela casa.

Ao terminarmos, o pai do Tomé pediu-lhe que o acompanhasse ao escritório, assim como aos outros dois irmãos rapazes, onde tiveram um bom tempo. Tempo esse que dediquei à leitura do jornal. A notícia falava da requalificação da marina antiga e da procura crescente da marina nova, recentemente construída. Percebi, pois, o interesse e preocupação do pai do Tomé. Afinal, a família possuía dois veleiros que estavam, atualmente, na marina de Vila Franca, devido às tais obras. Deveria ser esse o assunto para a conversa urgente entre homens.

Nas duas semanas seguintes, ocupei-me de ultimar os preparativos para o casamento. Tinha combinado com a Francisca, que ela e as minhas irmãs seriam as minhas damas de honor e, por isso, faríamos a prova do meu vestido, e dos vestidos delas, todas juntas.

No dia acordado pela modista, passei na casa dela e seguimos para onde morava a senhora. As minhas irmãs iam lá ter. Ficámos deslumbradas com tamanha precisão e profissionalismo e, apesar de eu não ser nada dada a estas cerimónias, adorei sentir-me dentro daquele vestido. Elas não ficaram atrás.

O meu telemóvel começa a tocar e apercebo-me que era o Tomé e a sua mania de fazer videochamadas. Não atendi. Não podia denunciar o meu vestido e escrevi depressa "Agora não posso". Ele não respondeu e eu sabia bem o que isso queria dizer...

Desde que tínhamos decidido viver juntos, o Tomé tinha revelado uma certa possessão excessiva, o que a princípio achei graça e entendia como afeto, amor... Contudo, um episódio ou outro que não consegui atender geraram alguns momentos menos bons na nossa relação. Tentei abstrair-me e viver aquele momento que antecedia um outro que marcaria a minha vida, assim eu achava. 

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**Se chegaram até aqui, eu já fico super contente! Vamos colocar um gosto?

Dos Açores (Portugal) para o mundo em plena Quarentena!**

Um Olhar Preso no HorizonteWhere stories live. Discover now