1. Minha borboleta

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Eu só tinha sete anos quando vi minha mãe morrer. Eu não entendi na hora que ela estava morrendo. Achei que estivesse só dormindo.

Eu não notei nada de diferente naquele dia. Na verdade, até notei. Ela disse coisas confusas para mim, mas foi só isso. Ela me chamou carinhosamente até seu quarto pegou em minha mão e disse que me amava, que era uma péssima mãe e que não havia luz, só escuridão. Depois pegou os remédios que costumava tomar e colocou muitas pílulas de uma só vez na boca. Não estranhei. Ela sempre tomou muitos remédios, devia gostar muito. Imaginei que fossem para ela como as balinhas eram para mim. Eu me lembro que após isso ela ficou me olhando, apesar de pequeno eu senti em seu olhar uma agonia infinita que se dissolvia na medida em que seu olhar ia ficando distante e distante e ela, enfim, dormiu.

Deixei ela dormindo. Fui brincar com as minhas coisas. Eu era filho único, minha mãe dormia além do normal e meu pai nunca estava em casa, estava acostumado à solidão. Papai chegou mais cedo naquele dia. Eu ainda estava acordado. Ele deu um grito. Foi correndo até meu quarto e me abraçou como nunca antes tinha me abraçado. Depois não saiu mais do telefone. Alguma coisa tinha acontecido com minha mãe. Eu estava com medo. Fui quieto em direção ao seu quarto, cheguei lá e a encontrei dormindo, ela estava em paz, era assim que ficava quando dormia, linda. Eu me aproximei e a abracei. Ela estava gelada. Mamãe nunca era gelada. Soube imediatamente que estava morta. Meu pai assim que me viu, começou a chorar compulsivamente, me arrancou de perto dela. Essa foi a última vez que vi minha mãe.

Foi assim que tudo começou. De alguma forma que eu não sei explicar direito, aquele momento ficou marcado na minha memória. De olhos fechados, ela ficava sempre bem, em paz. Mamãe era dessas pessoas que foi feita para dormir. Ela tinha uma natureza linda, espontânea, pura e de certa forma frágil que não aguentava as cruezas da vida e, por isso, sempre que podia, se ausentava em seus lençóis em seu mundo de sono. Lá ela era feliz. Eu sei que tudo que mamãe quis naquele dia foi perpetuar seus sonhos e ir para algum lugar que pudesse se ver livre de tudo aquilo que lhe feria a alma.

Minha mãe foi muito julgada, eu sei. As pessoas não me falavam nada. Nunca falaram nada. Sem saber que esse silêncio doía ainda mais. Eles faziam de conta que ela não tinha existido, como se ela nunca tivesse sido a pessoa maravilhosa que foi. Eles nunca a entenderam como eu a entendi. Eles nunca descobriram o que eu soube naquele dia que a vi morta. Mamãe era pura demais para esse mundo e o propósito de toda sua vida foi encontrar algum meio de se livrar dessa existência de sofrimento, buscou anestesiar-se nos remédios, no sono, mas o único jeito que lhe pareceu realmente definitivo e certeiro foi a morte.

Eu vejo a vida exatamente como mamãe. Acho que a existência é sofrimento. São só os mais duros emocionalmente que resistem as dilacerações que sofremos ao longo do caminho. Não é todo coração rasgado que pode ser costurado. Há corações puros demais para isso.

Sei que há pessoas que dizem que suicídio é coisa de gente covarde demais. Não é nada disso. Essas pessoas simplesmente não enxergam. Não é uma questão de força, mas uma questão de saber o tamanho da escuridão que te habita e o tamanho da escuridão que você consegue enxergar. Toda vez que existe escuridão dentro ou fora, coisas ruins podem acontecer. Se existir escuridão dentro e fora, como no meu caso, só coisas ruins acontecem. É um pouco dessas coisas ruins que vou confidenciar a vocês nesse livro.

Eu mato pessoas que apelidei de corações puros, como a mamãe, pessoas que buscam desesperadamente uma saída. Eu não mato propriamente. Elas fazem isso por mim. Sempre morrem por mim depois de me conhecerem. É simples, na verdade. Tudo o que eu faço é esclarecer que não há luz no final do túnel e, então, lhes apresento a única saída que existe: a morte.

Não sou tão hipócrita a ponto de me nomear anjo da morte ou coisa do gênero. Eu tenho noção da escuridão que existe em mim e sei que não deveria influenciar as pessoas a tirarem sua própria vida. Sim, o livre-arbítrio é delas, eu sei disso. Mas eu não estou preocupado com sua opinião ou com a de ninguém. Faço o que eu faço, pois é quem eu sou ou quem me tornei. Tanto faz. Mas se quiserem saber, eu acho mesmo que existe alguma lei divina que não permite que indivíduos puros demais vivam muito nesse mundo de dor e sofrimento. Pessoas que têm a alma doce, pura e alegre como a de mamãe não duram por aqui, de um jeito ou de outro morrem. E querem saber? Eu cumpro essa lei toda vez que me deparo com alguém assim, eu simplesmente não resisto, e vocês verão como sou bom no que eu faço.

MORRA POR MIMOnde as histórias ganham vida. Descobre agora