Eram almas gêmeas

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Frio. Noite. Não sei há quanto tempo atrás ouvi a porta bater após ele sair. Mais frio. Será de toda essa umidade? Deve ser. Serão lágrimas? Ou é o sangue que ainda escorre? Não sei. Medo. Dor. Vergonha.  A culpa realmente é minha? Ele diz que sim, mas é difícil entender... Há um tempo eu ainda tentaria argumentar, explicar meu ponto de vista, talvez entender o porque. Mas não agora. Não, não agora. Noite. E se fosse dia, de que adiantaria? Ninguém para chamar, nenhum ouvido para escutar o grito que ameaça escapar da garganta – mas só ameaça. E se ele estiver lá fora? E se escutar? Não, melhor não. Melhor ficar atenta e evitar que a dor se repita.

Há quanto tempo isso começou? O primeiro empurrão... quando fora mesmo? Por mais que eu tente, já não consigo lembrar. Mas com certeza não foi muito antes do primeiro tapa. Claro, houveram pedidos de desculpas. Abraços, flores, bombons, declarações, juras de amor. Aceito o retorno e digo que isso não vai acontecer mais. Nunca mais.  Até o próximo tapa. Que virou duas luxações e um olho roxo. Que se tornaram fortes dores nas costas, e sangue ao urinar. Que se transformaram em contusões por todo o corpo, e me faziam vestir como uma freira sempre que precisava sair ao mercado, para esconder as marcas da minha humilhação.

 Não sei o que quebrou dessa vez. Não sei muito bem o que quebrou das outras, tão pouco. Ele nunca me deixa ir ao hospital. Ele nunca me deixa sair daqui. Mas ele é médico, e depois que a zanga passa, vem e cuida de mim. “Olha só o que você me aprontou”, ele diz. Eu baixo a cabeça e o deixo me afagar. Só ele me toca, então como não deixá-lo me consolar?

Hoje foi por causa do garfo. Estava à esquerda e não a direita do prato. Imbecil! Eu devia ter percebido. Tanto esmero em deixar a toalha na posição exata, em escolher a louça certa – há uma para cada dia da semana – preparar a comida com a quantidade exata de tempero e cozida sempre da mesma forma e no mesmo tempo cronometrado. Ele chega às seis. Os chinelos devem estar em frente à poltrona, a poltrona virada para o norte. Ele chega. Devo tirar seus calçados e colocar os chinelos, depois servir uma bebida. Nos dias de semana é uma taça de vinho branco seco. Nos fins de semana, uísque. Quando é sem gelo, eu devo me preocupar. Alguma coisa sempre acontece.

Foi isso que me deixou nervosa, creio eu. Foi por isso que troquei o lugar dos talheres, “sem gelo”, ele pediu. Não, que tolice a minha, ele não pede, ele manda. E eu, claro! Obedeço. Burra! Idiota! Eu talvez tenha merecido a surra. Bom, melhor acreditar nisso, do que na possibilidade de um mundo onde se possa apanhar até sentir os ossos gritarem por tão pouco...

Passos. É ele voltando. Encolho-me. Passa por mim para ir ao banheiro. Outro chute. Ainda não é hora de ser afagada. Abafo um gemido que teima em tentar se insinuar pelos lábios inchados e sanguinolentos. Ele chega a se virar. Vai bater. Encolho-me. Mas o outro chute não vem. Só quando o vejo passar para a sala e pegar as chaves do carro, percebo que estava segurando a respiração. Deixo o ar sair em um sopro barulhento, que mais parece um tufão. O medo volta a me cobrir. Terá ele ouvido? Espero, mas nada acontece, então relaxo. Ele passa por mim novamente. “Quer que eu lhe traga algo Ana?” ele pergunta, em uma voz casual, como se tivéssemos comido o jantar que esfria à mesa e eu não estivesse encolhida em posição fetal, chorando os machucados em meu corpo magro. Levo um tempo até me lembrar que Ana sou eu, e que preciso lhe responder alguma coisa. “Não querido, muito obrigada”, respondo. Assim que falo, entro em pânico novamente. Será esta a resposta certa? A que me livrará de mais alguns safanões?

Ele para ao meu lado, os pés perto da minha cabeça, as mãos na cintura. Não ouso olhar para cima e encará-lo. Um tremor começa a percorrer meu corpo, e tenho que rilhar os dentes para não começar a chorar, gritar e implorar para que ele por favor, por favor, POR FAVOR não me bata mais hoje. Mas ele só suspira, e fala no seu tom mais casual “Tudo bem então, volto em breve”. Agacha-se e me dá um beijo sonoro na testa. “Espero que, até eu voltar, você tenha dado um jeito nessa bagunça” diz ele, quase parecendo pesaroso, referindo-se a bagunça que ELE fez ao me bater pela cozinha, quebrando pratos e derrubando panelas. Nada me resta além de assentir com a cabeça, enquanto ele se afasta.

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