O Livro

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Já não era moça casadoira, mas também ainda não podia ser considerada velha. Seria difícil  lhe precisar a idade correta, visto que isto ela escondia como seu segredo mais bem guardado. Mas a julgar-se por sua tez, podia-se dizer estar ela entre seus trinta e poucos anos, ou seja, ainda bastante jovem e com muitas histórias a viver pelos salões da vida. E a sua, até que não era nada má. Filha mais moça de abastado senhor, herdara com sua morte considerável fortuna, a qual não hesitava em esbanjar em festas e saraus que enchiam os cômodos de sua mansão, sendo famosa por sua boemia, mas também por sua alegria e afabilidade.

Um dia, enquanto encontrava-se ainda sob os lençóis de seda de sua cama de dossel, reparou ao lado desta, na baixela de prata onde os criados lhe traziam sua correspondência, uma carta que lhe pareceu peculiar. De pronto, imaginou reconhecer o brasão de sua família. O que para ela era estranho, já que a maioria dos tios e primos que ainda lhe restavam, evitavam estreitar com ela relações, por desaprovarem a vida que levava.

Assim, foi com curiosidade que pegou o envelope e rasgou-lhe a lateral, para descobrir em seu interior uma única carta, lacônica e intrigante. A carta fora escrita por um seu tio-avô que, estando às portas da morte, resolvera lhe deixar uma pequena herança. No entanto, a carta não se referia ao que fosse essa herança, nem como ou quando havia se dado a passagem para o outro mundo deste ilustre senhor.

Dando de ombros, deixou de lado a carta e a informação que a mesma continha, indo ver com suas criadas que vestido usaria no sarau da próxima noite. Pretendia inteirar-se, com as amigas, das novas intrigas e escândalos da corte. Essa era sua vida, e esses eram seus divertimentos: as festas, os amigos, os piqueniques à beira do lago nos dias primaveris. O tempo passou, e ela não havia mais pensado na estranha missiva e em seu conteúdo. Até o dia em que recebeu a visita de um senhor, semanas depois, dizendo estar de posse de objeto que lhe pertencia.

Era este o responsável por executar as disposições testamentárias do tio-avô esquecido, e que dizia vir apresentar-lhe – no semblante que nada revelava de seus reais sentimentos e emoções – seus pêsames pelo falecimento de seu distante parente. Além disso, informava ter consigo a parte que lhe cabia das propriedades do falecido, conforme sua vontade, lida em testamento. Ela não deu maiores importâncias à formalidade quanto a sua perda – se é que poderia ser assim chamada. Nem fazia ideia da existência de tal parente até ter em mãos sua missiva. Mas quanto a uma herança, bom, aí já era outro assunto.

A princípio ficou encantada em ter sido lembrada por tal parente, depois ansiosa e, por fim, decepcionada. Embalado em papel pardo, o que lhe deixara o tio tinha um formato quadrado e parecia pesado. Seria um pequeno cofre, com títulos a negociar? Ou quem sabe uma caixa de joias, passadas por sua família de geração em geração? O desapontamento veio do fato de, ao rasgar seu pacote, verificar que seu legado fora um livro.

Afinal, livros eram coisas que não lhe interessavam em absoluto. Não era dada a leituras. Percebia que, em sua época, ler para as mulheres nada mais era do que sonhar com os olhos abertos, com as aventuras que as páginas narravam. Mas ela gostava de pensar em si como uma mulher diferente, que preferia viver as suas próprias aventuras, a ficar suspirando pelos cantos imaginando situações impossíveis.

Deixou o embrulho de lado, enquanto voltava a se perder pelos salões, entre as sedas dos vestidos, as joias exuberantes, os beijos roubados e os casos com homens comprometidos. Sempre fora um tanto quanto volúvel, sendo conhecida entre os amigos, amantes e admiradores, como uma pessoa faceira e que não se atinha às coisas pequenas da vida. Ela aprendera desde cedo que não havia nada que o dinheiro não comprasse e isso, graças à herança que herdara de seu falecido pai, ela possuía de sobra.

Passaram-se ainda alguns meses até que voltasse novamente sua atenção para a inusitada herança que recebera. Era uma tarde chuvosa, e o piquenique que havia combinado com outro par de amigas, todas com acompanhantes adequados, havia sido cancelado. Estava sentada em sua sala suntuosa, sentindo-se completamente enfadada. Seu mais novo amante já não lhe despertava o mesmo desejo do começo e pensava em pedir-lhe que se afastasse de seu círculo de amigos mais íntimos. Estava assim perdida em devaneios quando reparou no embrulho, deixado por ela, de forma descuidada, em um de seus móveis estilo Luís XV.

Sangue na Lua e outros contosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora