A Colônia

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Ela estava com sono e muito cansada, mas não conseguia dormir. Já passavam das três horas do horário de descanso instituído pela Colônia, apenas quatro horas até ter de levantar-se novamente. Mas a ideia só a punha a cogitar sobre o dia que viria, não a ajudando a conciliar o sono. Talvez fosse a claridade artificial, perpetuamente mantida na Colônia, como uma maneira de pô-los a salvo do Mal que rondava lá fora. Seres sinistros e selvagens, que não hesitariam um milésimo de segundo em atacá-los e terminar com a ordem e a paz tão arduamente construída pelos primeiros Conselheiros.

Eram cinco, e foram os últimos andarilhos do tempo que se fora, último elo com o passado remoto e longínquo, do qual apenas alguns poucos ainda tinham acesso, por fragmentos de história que sobreviveram ao advento do escuro. Nas lendas, contava-se às crianças que, há muitas eras, o mundo não estava sempre escuro. Os humanos não precisavam se esconder por detrás de altas muralhas para poder sobreviver. Todos andavam livremente por aí, e o tempo não era marcado pelos toques das trombetas. As pessoas sabiam a hora de acordar, pois existia algo chamado Sol. E o tempo era dividido entre manhãs e noites. E o céu, este era azul de manhã, e de noite tinha luzes brilhantes, que os antigos chamavam de estrelas.

Agora, ao olhar para fora, tudo o que podiam divisar era o breu. Às vezes mais claro, às vezes mais escuro, mas sempre indiscernível. Havia os que afirmavam que o sol ainda existia, apenas que, através da espessa camada de nuvens e gases tóxicos, não era possível vê-lo, mas ela não acreditava nisso. Eram nada mais que histórias para fazer as criancinhas dormirem.

Crianças. Às vezes ela acreditava que era esse o motivo dela conseguir dormir tão pouco, mesmo depois de um dia exaustivo de trabalho. Na Colônia, a divisão dos trabalhos era muito fácil de entender, até porque não havia muitas opções: se você fosse homem poderia ser do Conselho, um cargo reservado aos mais velhos da Colônia. Eram homens também os lanceiros que guardavam as muralhas, os vigias, que mantinham a paz entre os moradores da colônia, os construtores e mecânicos que cuidavam da manutenção do espaço e das “bugigangas” que vinham do mundo lá fora, e que ela nunca entendera.

E havia os caçadores. A missão mais temida. Sair pelos portões afora, em busca de provisões para a sua coletividade, já que a minguada terra que tentavam cultivar não produzia alimento o suficiente para todas as famílias – mesmo a prole tendo sido alvo de redução gradativa desde o início da última Era, passando de dois para um filho por casal. Já estavam na quarta Era desde a construção da muralha, perfazendo 1876 anos desde a construção da Colônia.

Às mulheres, restava a confecção de roupas, a higienização e o cuidado com a prole, geralmente a sua própria. Sim, naquele tempo, ser mãe, dar a vida, era algo muito importante. Há muito tempo, diziam que também existiram mulheres que se intitulavam “professoras”, mas a grande maioria da Colônia aprovou por decreto que ler era uma tarefa dispensável naqueles dias, sendo esta função gradativamente extinguida.

Mas ela não aceitara nenhuma das posições – e não pudera uma em particular: ela não conseguia ser mãe. Foram várias e várias tentativas infrutíferas com seu marido, escolhido para ela pelo Conselho por ser um homem forte da construção, que teria pulso firme – não que ela acreditasse que precisasse, mas acabara recebendo isso em troca de duas ou três intromissões em deliberações do Conselho – e a conduziria com força, mas também docilidade no lar.

Algumas das suas crianças nem vieram ao mundo; outras vieram, mas disformes e sem o tamanho certo para sobreviverem, o que até não era assim tão incomum. Eram tempos difíceis e sombrios, o ar, a terra e a água estavam contaminados, já não se sabia bem pelo que, e cada nascimento era uma dádiva – mas que deveria ser controlada, já que não havia comida o suficiente para tantas dádivas juntas.

Sangue na Lua e outros contosWhere stories live. Discover now