A porta

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Estava frio, mas não era noite. A neve caia em flocos, cobrindo de branco a terra vermelha e dura por onde seus pés tinham caminhado tantas e tantas vezes nos últimos anos. Mesmo assim ele sentia medo. E a culpa era da porta. A maldita porta do galpão! Ele tinha certeza de tê-la trancado. Ou será que a tinha deixado aberta? Ele realmente não sabia. Aliás, com a passagem dos anos, parece que havia sempre mais uma coisa da qual não conseguia se lembrar de forma clara.

  A voz da mãe, chamando-o para o café, à tarde. O rosto do pai. O gosto do primeiro beijo, roubado furtivamente à sombra de uma árvore.  A areia escorrendo pelos seus dedos. A visão do oceano – ah, o oceano! Quanto tempo fazia? Infelizmente, parecia que essa era mais uma das coisas de que ele já não conseguia se lembrar.  Qual seria a explicação para que cores, sons imagens, se esvaíssem desta forma? Será que, assim como determinados produtos, as lembranças teriam uma espécie de prazo de validade? Ele não saberia dizer.

A maldita porta, batendo mais uma vez, o faz deixar de lado os devaneios e voltar ao momento presente. Teria ou não a fechado? Na verdade, não importava muito a resposta.  Sabia que teria de vestir as botas e o casaco e ir fechá-la. Afinal, outrora já encontrara animais buscando abrigo no velho galpão. E o resultado fora uma grande bagunça que, é claro, ele teve de limpar depois. Mas a dúvida o corroía. Sempre que algo assim acontecia, a dúvida – essa companheira irascível dos últimos muitos anos – mais uma vez se insinuava e, junto com ela, o pavor da resposta.

Não, não poderia ser. Já haviam se passado tantos anos... Nas primeiras semanas, meses, ainda tinha se mantido alerta ao menor barulho, alteração na paisagem, farfalhar das árvores. Qualquer ruído era capaz de despertá-lo: fosse ao raiar do dia ou altas horas da noite, do seu cochilo ao sono profundo. Aliás, nos primeiros tempos ele mal dormia. Como conseguir fechar os olhos sabendo o que rondava lá fora? Seria uma maluquice, e outras já haviam sofrido por sua falta de zelo e excesso de confiança – ou de bondade, que ele via como pura estupidez - mas não ele.

Logo que a infecção começou, pensava que nada tinha a ver com isso. O governo que desse um jeito. Contratasse mais policiais e trancafiasse essa gente em algum hospital. E, se a polícia não conseguisse dar conta, sempre se poderia chamar o exército. Fosse ou não ironia, o que se acabou descobrindo é que talvez o próprio exército tenha sido o responsável por toda a infecção – ou pelo menos pelo seu princípio. E que ele não estava tão seguro quanto imaginava.

Depois de um tempo do descobrimento da doença, descobriu-se que qualquer contato com um infectado: um abraço, um aperto de mão, até mesmo respirar muito tempo em uma sala fechada com alguém portador do vírus, já seria o suficiente para se ver condenado para o resto da vida – um resto lento e miserável diga-se de passagem.

Ele fugira. É claro que fugira. O que poderia ter feito pela mãe? A última vez em que lhe entregou, usando o cabo da vassoura, um prato de comida, pode ver parte de sua mão e braços – ou o que restava deles. Isso o apavorou mais do que tudo. Só conseguiu pensar em juntar seus poucos pertences e sumir dali. Iria para as montanhas – sim! Essa era uma ideia magnífica. É claro, como não havia pensado nisso antes? A neve, a distância da cabana da família de qualquer outro lugar habitado, isso o poria seguro do caos que se instaurara até que alguém tomasse alguma providência e ele pudesse voltar.

Agora, pensando bem, quão grande fora seu engano. Os saques já haviam começado, então foi fácil conseguir as coisas que precisaria para se isolar por um bom tempo. Mas as notícias vindas pelo rádio que levara não eram animadoras. Até o dia em que não houve mais notícia nenhuma. Só estática.  O que fazer? De suprimentos não precisava. A floresta lhe dava lenha, peixes, caça, tudo de que precisava. Resolveu esperar. E esperar. Tinha tudo de que precisava por enquanto.

Não, não era verdade, uma coisa ele não tinha. Paz. Ele nunca teria paz. E a culpa era da batida incessante daquela maldita porta. Teria ou não esquecido de fechá-la? Quantas balas ainda teria na arma, caso precisasse usá-la em algo lá dentro? E será que ele conseguiria? Nunca havia matado um ser humano antes. Apenas fugira.

Continuando em suas divagações, lembrou que, por fim, o vírus não havia sido como nenhum daqueles descritos nos livros medíocres de batalhas pós-apocalípticas que vira nas bancas – quando estas ainda existiam.  Ninguém virou zumbi e saiu devorando semelhantes, ou ficou agressivo, fora de si, ou nada do tipo. As pessoas só ficavam muito doentes e então ... Bem elas se desfaziam.  Como se apodrecessem, lentamente, de dentro para fora. E não era algo agradável de ver. 

Um dos primeiros sintomas era a febre, seguida de cansaço e leves tremores.  Depois, vinha a sensibilidade a luz, a fadiga extrema, a perda dos dentes e cabelo. Era como a lepra, ou morte por radiação, mas muito pior e muito mais rápido e letal. Logo, foi com o máximo de cautela que ele resolveu ir verificar a porta do galpão – Sabe Deus o que encontraria lá dentro! Na melhor das hipóteses, mais caça para o inverno. Na pior ... Bom, ele preferia não pensar nisso.

Na neve que caia, caminhou até o galpão, sentindo o vento lhe golpear o rosto sem piedade. Abriu alguns centímetros da porta, sempre com o cano da arma à frente. Como não havia eletricidade, levava na mão trêmula um velho lampião, que lançava sombras bruxuleantes pelas paredes de madeira repletas de quinquilharias do velho galpão. Deu a volt nas quatro paredes com a luz débil de que dispunha, à espreita da visão medonha de seu pior pesadelo.

Mas não havia nada lá. Soltou a respiração, perguntando-se quando é que a havia segurado, sendo tomado pelo alívio. Sim, ele era apenas um homem ficando velho e caduco, com uma cabeleira já branca e mãos trêmulas, que esquecia-se de coisas simples como fechar uma porta. Ainda perpassou o olhar pelo galpão, repleto de ferramentas, lenha e outras bugigangas. Riu de si mesmo, e estendeu a mão para puxar a porta atrás de si e trancá-la.

Mas então veio a mão. E a mão era muito, muito branca, e muito, muito pequena. E só então ouviu os soluços. E o choro - ah, como era dorido! - vertia de pequenos olhos. Ainda lembrava deles. Negros. Tão negros quanto o cabelo, desgrenhado, do pequeno ser que o fitava. Agora, pensando bem, passado um tempo do acontecimento, ele não consegue pensar no que lhe veio à cabeça. Sua reação foi rápida e instantânea. Atirou na garota, bem no meio da testa. Depois correu.

A casa. Precisava voltar para dentro da casa. Lá sim estaria seguro, sentado em sua cadeira e espiando a neve que caia lá fora. Isso tudo acontecera há dias, quase duas semanas talvez. Desde então, não entrava mais no galpão. A lenha há muito havia acabado, ele tem começado a sofrer de tremores e se sentir entorpecido, mas certamente isso deveria ser do frio. A casa ficara gelada com seu racionamento de lenha. E a porta, a maldita porta! Bom, essa terá que continuar a bater ...

Sangue na Lua e outros contosWhere stories live. Discover now