XIX. Remorso

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Na vigésima terceira volta, a imagem do piso do quarto de Therasia começa a parecer difusa. Já é domingo à noite e ainda não fizemos nada com as lembranças que recebi. Sinto uma impaciência, uma ansiedade me corroendo minuto por minuto. Junto com as memórias, talvez tenham voltando meus hábitos de impaciência. Não consigo me manter parado desde a noite anterior. Therasia já disse umas três vezes como lhe é irritante eu caminhar nervosamente pelo quarto, mas não consigo me conter.

— O que o seu pai está ouvindo agora? — pronuncio meus pensamentos em voz alta, talvez deixando a irritação escapar no meu tom. Paro de andar. — Não consigo me concentrar!

Therasia está deitada na cama respondendo a algum questionário da escola, o simples barulho do grafite deslizando pelo papel me incomoda. Ela tira os olhos dos cadernos calmamente e, como se estivesse pensando, leva o lápis à boca.

— No jantar ele mencionou alguma coisa como Van Morrison e Richard Berry — reponde como se eu realmente estivesse interessado em saber, e ela sabe que não estou. Talvez na verdade ela só esteja se cansando das minhas preocupações constantes. Voltando a escrever, acrescenta: — Mas veja pelo lado positivo: ele não está cantarolando a mesma música por dias a fio bem alto como foi com I Will Follow Him. Pobre Peggy March!

— Dane-se Peggy March... e o seu pai também. Eu estou finalmente lembrando as coisas, mas não sei o que fazer com elas! E eu nem entendo mais. — E é verdade, enquanto o tempo passa, lembranças e mais lembranças vão aparecendo em minha mente. Mas o problema é que elas não surgem em ordem cronológica, e sim por associação, o que torna tudo mais confuso e já nem sei se são memórias ou apenas imaginação. A única coisa da qual tenho certeza é que foi a lembrança das minhas últimas horas de vida que desencadeou essa torrente de novas imagens. Quero dizer, mais ou menos. Mas o que mais poderia ter sido?

— Maldição, Ed, se acalme! — ela exclama ao fechar seu livro escolar. — Sei que isso é importante para você, mas paciência. Você não queria se lembrar da sua vida? Bem, isso está acontecendo. Mais cedo ou mais tarde você conseguirá seja lá o que você esteja esperando encontrar agora.

Talvez ela tenha razão, mas não admito. Na verdade não digo nada, apenas volto meu olhar para a noite escura do lado de fora atrás de mim, e continuo a refletir. Afinal, pelo que eu estou esperando, a tal luz branca como naqueles filmes idiotas? Deixar de existir? Ressuscitar?! Estou quase considerando conversar com o outro fantasma, apesar de meio louco e instável, ele pode saber de alguma coisa. Eu só me pergunto se a verdade é muito ruim e por isso ele continua aqui até hoje. Mas também há a possibilidade de ele não saber de nada. Eu não sei o que é pior.

Percebo que, exceto pela música, há um silêncio inquietante no quarto. A falta de alguma provocação ou qualquer coisa do gênero por parte de Therasia me faz voltar a olhar para ela, mas meio que me assusto por sua aparição súbita na minha frente. Felizmente não penso que ela tenha percebido isso ou senão estaria fazendo troça do fantasma que se assusta com vivos. Ela só está me encarando como se estivesse vendo algo muito mais esquisito do que um morto.

— Que estranho — diz tentando me tocar no ombro. Obviamente sua mão apenas atravessa o ar e não sinto nada.

— O quê?

— Lembra quando eu disse que você tinha perdido a nitidez? — Continua encarando meu ombro com o cenho franzido. — Agora você está como naquela vez no parque. Exatamente como se fosse tão sólido quanto eu... Hum-hum, muito curiosas essas "mudanças" na sua figura.

Ela se vira roendo a unha do polegar direito, pensando em como pode relacionar minha imagem instável aos demais fatos. Seus pensamentos me são claros o suficiente para ver que, em sua conclusão, acredita que as lembranças possam ter algum efeito sobre mim maior do que pensávamos. Mas apesar de tudo, eu ainda não entendo o porquê de tudo isso: a amnésia, a volta das memórias, a instabilidade na minha forma. Viver é complicado, e eu ainda diria que morrer foi a minha pior experiência.

EnsoulWhere stories live. Discover now