X. Aberrações

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É sábado.

É bem cedo e alguém toca bateria por aí. Eu poderia ir curiosamente checar a origem do som, mas estou esperando pelo momento em que Therasia acorda. Ela me prometeu ontem que iríamos tentar outro cemitério esta manhã, finalmente. Eu não sei no que isso pode ajudar, mas espero que a garota saiba o que está fazendo. É uma espera horrível.

E quanto à mulher de quinta-feira, não a encontrei desde aquela tarde. Mas eu ainda procuro por pessoas que possam me ver. Eu até tento conversar com vivos em sonhos, mas eles me ignoram quase sempre. Faz sentido me ignorarem, já que eu nem deveria estar ali na mente deles. A única pessoa que prestou atenção em mim só deu uma breve olhada. Depois de ter sido arremessado para fora do sonho foi que descobri estar na mente de Zoey, a vizinha de Therasia.

Eu não sei como entrar nos sonhos por minha decisão. É como se fosse magnético, simplesmente sou atraído por uma cena da mente mais próxima. Mas a parte mais estranha de hoje é que eu só consegui ficar por poucos segundos no sonho de Therasia. De novo ela disse ver estrelas, enquanto eu não via nada. Penso que ela parece ter adquirido algum controle sobre quem entra e quem sai de sua cabeça, o que não faz sentido. Como ela poderia desenvolver tal habilidade? Ou talvez seja algo comigo que se recusa a ficar naquele lugar hostil.

Ontem à noite eu tentei manipular mais coisas físicas, mas não obtive nenhum sucesso. Eu queria saber qual é o segredo, porque o caso da xícara não foi intencional. Na verdade, acho que nada do que eu faço parece estar sob meu controle. É como a TV: você vê as imagens, você ouve os sons, mas você não pode interferir nunca; não importa o quão alto você grite para os personagens ouvirem suas sugestões, não faz efeito.

Eu estou circulando pela casa — pelo telhado, mais precisamente. Daqui eu posso saber se alguém consegue me ver, porque ninguém são estaria no meu lugar. Então, sim, o objetivo é chamar atenção. A parte frustrante é que até o momento não houve nenhum sinal de que o plano está funcionado.

Posso ouvir barulhos furiosos vindos da casa ao lado, de um cômodo específico, mas não tenho a curiosidade de ver o que está acontecendo. Ou as pessoas por aqui amam a raiva, ou eu é que nunca prestei muita atenção a esse tipo de coisa. Pela forma que agem, só consigo pensar uma coisa: a raiva vai destruí-los.

— Eu espero que você saiba voar, garoto.

A voz me assusta, fazendo-me automaticamente procurar por seu dono — e esperando ansiosamente que ele esteja vivo. Procuro pela pessoa por vários segundos até que vejo quem está aqui, e ele não está vivo. Por que eu não consegui me recordar da voz dele? Eu não deveria esperar uma explicação, essa não é a única coisa da qual não me lembro. Mas seria bom lembrar, seria mais fácil ignorá-lo.

— O que você está fazendo? — pergunto, finalmente. Ouço vozes de crianças ao longe e, por alguma razão, isso chama minha atenção, mas decido deixar esse interesse para mais tarde.

Primeiramente, a figura instável se aproxima. Ela não responde de imediato, apenas me observa por um tempo indeterminado.

— Eu acho que não gosto de você — diz como se a frase fizesse parte do contexto. — Você parece que vai estragar meus planos. Na verdade, você já me fez isso.

— Planos?

Ele começa a perambular pelo telhado, cuidadosamente, como se corresse o risco de cair.

— Aquele dia — menciona — eu estava tendo meu divertimento, mas você me impediu. E eu não entendo por que só consigo que você me ouça às vezes. O que você faz?

— Divertimento? — decido por ignorar suas perguntas da mesma forma que ele ignora as minhas. — Por quê?

Parece que um resquício de lucidez atravessa o fantasma, e como se usasse até outro tom — como se fosse outra pessoa —, responde-me:

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