IX. Louca

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Como Therasia está querendo me desintegrar novamente, decido que não vou incomodá-la mais por hoje. Na verdade, eu resolvi desfazer uma dúvida que possuo guardada desde segunda-feira — e já estamos na quarta à noite. Eu estou invadindo a casa dos vizinhos da garota dos cabelos azuis. Estou atrás daquele cara que parecia ter me visto. Se ele pudesse mesmo me ver, eu poderia evitar deixar Therasia ainda mais irritada comigo.

Eu estou passando pelos cômodos de sua residência, vagando na tentativa de encontrar o homem. Até o momento só havia visto uma mulher lendo no sofá — consegui ter um vislumbre de sua imaginação sobre o que lê; ela está lendo um clássico francês do qual já ouvi falar por aí. Por eu conseguir captar parte das cenas, penso que ela está mesmo apreciando a história.

O barulho da porta se abrindo é o que acaba com o silêncio da casa, e por ela passam o homem, Kyle e um cachorro.

— Pensei que nunca mais voltaria, Kyle. — A mulher diz sem largar as letras a sua frente.

— Não precisava mandá-lo atrás de mim. Eu sei o caminho de casa. — O garoto retruca, mandando pensamentos de ódio para o pai — que não parece ter me visto.

Olhando Kyle mais de perto, noto que ele tem um corte recente no canto do lábio inferior. No entanto, o que chama minha atenção não é o sangue no canto da boca, e sim os olhos cor de avelã tão tristes. Talvez eu tenha alguma coisa com os olhos dos vivos, mas é incrível como eles podem expressar o interior de uma pessoa. De acordo com o que vi na televisão de algum lugar há um tempo, os olhos das pessoas serviam para enxergar e nada mais. Eu não entendo, já que outra vez também ouvi dizer que você consegue encontrar até a personalidade nos olhos de alguém.

Se eu realmente tivesse olhos, o que Therasia poderia ver neles? Confusão? Medo? Morte?

— Achei que você estivesse se livrando do cachorro — o homem responde, com os olhos voltados para o animal. — Cuida tão mal dele.

— Eu cuido dele, pai. Você é que não vê; está sempre cego em seus planos em ultrapassar o sr. North desde sempre. — E então se retira com o cachorro.

O pai do garoto apenas suspira e se direciona para a cozinha com o objetivo de — segundo seus pensamentos predominantes — conseguir um pouco de água. Vejo o momento como uma oportunidade de comprovar minha tese e sigo-o, assistindo-lhe pegar um copo e enchê-lo.

— Você pode me ver? — pergunto, próximo o suficiente para ser ouvido. — Você pode me ouvir?

O cara não parece ter ouvido nada, ele simplesmente continua a beber sua água sem demonstrar nada de diferente. Isso me decepciona um pouco, eu tinha esperança de que poderia ter mais pessoas que pudessem me ver — talvez eu estivesse enganado.

Tento mais uma vez chamar sua atenção, mas obtenho a mesma resposta e então desisto. Ele só é mais um vivo qualquer que não pode me enxergar. Nada de mais.

Pela noite, decido passar pelas casas dos vizinhos na tentativa de encontrar alguém que posso me ajudar — eu posso ter sorte agora. Quem sabe eu até seja sugado para os sonhos deles e viva uma experiência interessante — muito sonhos são divertidos de se estar.

***

Therasia e eu estamos — ou talvez apenas ela esteja — sentados nas escadas da entrada da casa dela. Quinta-feira depois da escola, e a garota não está mais querendo me bater. Eu não sei se isso é bom. Na verdade, eu não sei mais o que pensar a respeito dela. Às vezes bom humor e, de repente, raiva. É confuso. E talvez tenha sido vantajoso morrer.

— Zoey Belshee é uma garota tão sortuda — Therasia comenta, observando uma vizinha de idade aproximada a dela deixando a casa. — Pena que é dramática demais. Você já viu que a mãe dela faz tudo o que ela pede?

EnsoulWhere stories live. Discover now