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When you grow up, your heart dies.

                                        - Breakfast Club

A primeira vez em que eu a vi, ela estava usando um vestido azul. Tão pequena que poderia imaginá-la nas pontas dos pés para entregar moedas em trocas de balas, em qualquer loja de conveniência. Ou na ponta dos pés enquanto troca uma nota amassada pelos cigarros que o pai mandou comprar.

Não que eu tivesse qualquer moral para falar de alguém que não fosse alto o suficiente. Com sete anos, não é esperado que sejamos enormes. Sendo assim, naquele momento todas as cabeças estavam levemente inclinadas para infiltrar olhares piedosos em mim.

Eu estava me distraindo entre um olhar e outro, quando vi, de relance, o primeiro borrão azul. Quis ter aquela liberdade e correr junto dela. Brincarmos de pique-esconde, ignorando o fato de que sobre nossos pés, milhares de corpos se decompunham, afinal estávamos em um cemitério. Nós só correríamos e eu a encontraria facilmente, afinal o vestido dela era muito azul. Esbocei um leve sorriso até meu pai interromper meu segundo lúdico com um pigarro de censura.

Então, voltei à realidade.

Eu, Bernardo Almeida, de sete anos, estava no velório de minha mãe. Ao meu lado, meu pai mantinha a melhor postura possível, mas eu sabia que ele estava se contendo para não tirar o celular do bolso e atualizar a caixa de e-mails.

Várias senhoras estavam enfileiradas, usando vestidos pretos e limpando os narizes com lenços chiques. Olhavam para mim com dó. O pobre garotinho dos cabelos loiros em formato de tigela, a cara do pai, estava se despedindo da mãe.
Não concordo. Não era justo eu estar me despedindo da minha mãe em um cemitério onde nós nunca estivemos juntos. Por que não poderia me despedir dela na praia onde ela me levava todas as manhãs das minhas férias e ressaltava sempre que eu entrava na água: "água no umbigo, sinal de perigo"? Por que não poderia me despedir dela na loja de cosméticos para onde ela me arrastava toda semana e se arrependia logo em seguida?

Mas, afinal, por que tinha uma garota correndo entre os túmulos com um maldito vestido azul na despedida da minha mãe? Aquela menina, metida à Alice no País das Maravilhas também estava se despedindo da minha mãe? Pois ela que ache um maldito coelho branco para correr atrás e não venha me atrapalhar.

Quando o padre disse "amém", o caixão sumiu em um buraco escuro, a garota de azul não estava mais lá e o meu pai finalmente checou as notificações no celular.

DEZ ANOS DEPOIS —

— Você não está ansioso para viver em um colégio interno? — apesar de ouvir a pergunta, não tirei os fones do ouvido. Eu e meu pai parecíamos infiltrados em uma disputa de quem encarava o celular por mais tempo, enquanto a namorada dele tentava puxar assunto.

— Bernardo, a Cat te fez uma pergunta. — advertiu meu pai. Julio Almeida, o rei das advertências. — Responda.

Respirei fundo e olhei aquela mulher. Cabelos compridos, peitos siliconados, maquiagem carregada e lábios inchados. Aparentemente meu pai enterrara o bom senso junto com a minha mãe e passara a se apaixonar por mulheres com aparência de prostituta barata.

— Bernardo?! — meu pai perguntou mais uma vez. Bufei e calculei minha resposta mais ácida possível.

— Estou. — sorri. — E você, Catarina, está ansiosa para transar com o meu pai por todos os cômodos da casa e poder gritar sem ficar preocupada se eu vou estar escutando ou não?

— Bernardo Almeida! — meu pai guardou o celular. Ponto para mim! — Você sabe que não estaríamos te matriculando no colégio interno se o senhor não tivesse se metido na merda de um crime no mês passado. Você poderia estar na cadeia. Quer ir para a cadeia? Posso pedir para o motorista dar a volta com o carro e deixamos você lá! Então deixe de ser mal agradecido, garoto, e agradeça que está sendo levado para um colégio de qualidade ao invés de fazer companhia para o seu primo atrás das celas. — e lá estava o celular de volta na mão dele. Catarina – que prefere ser chamada de Cat, apenas – sorria.

— Farei o que for solicitado, senhor. — respondeu Walter, nosso motorista. Eu era a única pessoa da casa que sabia que o nome dele era Walter, tinha uma esposa, duas filhas gêmeas e estava passando por uma fase complicada, já que uma delas decidira ser torcedora do São Paulo, enquanto ele era corinthiano roxo.

Voltamos para o silêncio de antes por dois motivos: o primeiro, não adiantava forçar a barra. Ninguém queria conversar. Segundo, nós estávamos diante de uma fachada gigantesca com os dizeres "Colégio Interno São Dimas".

Depois que passamos por um departamento de segurança, tenho que admitir: eu estava em um lugar foda. Minha mão tocou a janela do carro, enquanto passávamos por uma grande área arborizada, com um rio no meio. Notei algumas garrafas de bebidas caídas entre a grama e verifiquei se meu pai também tinha percebido. Mais uma vez, ele estava ocupado demais com o aparelho celular.

Em seguida, avistei vários prédios, onde deveriam ser os dormitórios, salas de aula e as demais variedades que o colégio oferece. Passamos por um grupo de jovens e fiquei imaginando quais os motivos para que os pais desistissem deles e os enviassem para um colégio no meio do nada. Toda aquela mini-cidade criada em volta de mim me encantava, mas eu sabia que era tudo um grande truque para que nós, supostos "adolescentes-problemas", não voltássemos para casa infernizar a vida dos nossos pais.

Foda-se. Eu não sabia mais como encarar o mundo fora daquele colégio.

Não depois do que acontecera um mês atrás.

Meu olhar se perdeu nas horríveis lembranças do mês anterior. Quando minhas mãos foram até minha testa e voltaram ensopadas de sangue. Quando meu primo apareceu com a calça mijada e os olhos arregalados, perguntando "Nós a matamos?", e eu respondi "Sim". Nós a matamos. Ela estava morta. Morta. Nossas digitais estavam naquela maldita mulher morta. Lucas, meu primo, chorava e vomitava no asfalto. O que vamos fazer agora?

— O que vamos fazer agora? — sussurrei, a mão deslizando pelo vidro, de volta ao meu colo.

— Descer do carro, garoto. — disse meu pai, esperando que Walter abrisse as portas. Saí do carro antes, esticando as pernas enquanto o devaneio se esvaía. 

Uma mulher gorda e baixinha, com um grande crucifixo no peito, nos recebeu. Catarina foi a primeira a cumprimentá-la, ela sempre era receptiva com mulheres não tão atraentes quanto ela. Ela considerava isso como uma ação de solidariedade. A mulher correu os olhos pelos peitos de Catarina com reprovação, cumprimentou meu pai, Walter e depois olhou para mim.

— Você deve ser o nosso novo...

Bernardo. — estendi a mão.

— Já tivemos vários alunos chamados Bernardo, então não posso dizer que você é o nosso novo Bernardo. Eu ia dizer "aluno". Você deve ser o nosso novo aluno, não?

— Será um prazer ser um novo-aluno e um não-novo-Bernardo. — sorri enquanto Catarina demonstrava estar incomodada com minha súbita manifestação de simpatia excessiva — A senhora é...?

— Eu sou a Rose. Vou orientá-lo até o seu novo quarto e apresentá-lo para o seu colega. Ele mesmo se voluntariou para mostrar o resto do colégio a você, meu querido. O Felipe é um ótimo garoto. — ela suspirou e, um segundo depois, levou a mão ao crucifixo. Abaixei a cabeça com um sorriso levemente sarcástico. — E, quanto aos seus pais, eles já podem ir. Fiquem à vontade para se despedir. O filho de vocês será muito bem acolhido aqui no colégio São Dimas.

Meu pai arqueou as sobrancelhas, satisfeito. Abracei Walter antes dos outros, agradecendo por todas as vezes que ele me levara e buscara na escola. Depois, dei um beijo no rosto de Catarina, segurando a minha vontade de sussurrar "Puta" em seu ouvido.

Por fim, estendi a mão para meu pai, mas ele me puxou para um abraço. Quando escutei sua voz em meu ouvido, soube que aquele abraço não tinha qualquer relação com afeto.

— Neste lugar, você é a única pessoa que sabe o que fez. Pense bastante e ligue-me quando estiver arrependido

Minha cabeça viajou, mais uma vez, um mês atrás. O sangue. O desespero. A mulher morta. Fogo. Meu primo chorando. Meu dedo apontado para ele. Sangue. Meus dedos manchados. Meu primo vomitando no asfalto. Fogo.

Somente um detalhe foi capaz de me tirar do pesadelo: um borrão azul no meio das árvores.


A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora