Parte XII

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Parte XII

Jantei com Wes naquela noite, após a briga, e em todas as outras que se seguiram. Era evidente para ele (e para todos na cidade) que eu não tinha mais condições de me virar sozinha com comida. Não havia mais suprimentos ou dinheiro em minha casa, e com meu noivado com Wes era só uma questão de tempo até eu me mudar de vez para a enorme casa dele.

Eu continuava insistindo que queria passar mais alguns dias em casa, precisava me despedir, me acostumar à mudança. Às vezes, ao me deixar em meu lar após o jantar na nobre residência dele, Wes decidia entrar, caía no sofá e acabava passando a noite ali mesmo. Estava tão apaixonado que não se importava, só queria me manter à sua vista. Talvez tivesse medo de que eu fosse sair e me encontrar com o marinheiro que ele odiava.

Eu tinha sentimentos contraditórios por Wes. Ao mesmo tempo em que sua presença me incomodava, uma parte de mim queria simpatizar com ele, com a ideia do casamento, talvez com esperança de que minha vida não tivesse de ser ruim. O problema é que Loran nunca deixava meu pensamento, nem por um minuto, assim como o arrependimento por ter aprisionado Wes e a mim mesma naquela situação.

Porque eu sabia que nada disso estaria acontecendo se eu não tivesse oferecido a ele a trufa com a poção do amor. Nós talvez passássemos a vida sem nunca termos falado um com o outro, e eu poderia ter uma chance com Loran, talvez conhecê-lo em outra situação. E o pior, e mais importante: se eu não tivesse roubado aquela poção, para começar, não estaria me tornando uma sereia maldita.

Eu tinha sido duplamente amaldiçoada pelas minhas escolhas.

No jantar daquela noite, como nos dos dias anteriores, só nós dois ocupávamos a grande mesa, ele tinha me bajulado e flertado comigo sem parar, e os criados haviam servido uma enorme quantidade de comida que poderia alimentar toda a minha vizinhança. Eu me perguntava para quem eles davam as sobras, mas Wes não se importava com isso.

A cada noite eu descobria um fato novo sobre ele e seu falecido pai, mas eram normalmente coisas que não me causavam nenhum interesse. Eu me sentia morta por dentro. Ele também não parecia ter interesse genuíno na minha complexidade interior, só o que bastava para me amar era minha "estonteante beleza" e o quanto eu era "bondosa" e "educada". No fim, era quase como se eu não mais lamentasse estar me transformando em uma criatura aquática. Talvez fosse me sentir livre no mar. Eu, com toda certeza, não pertencia ao lugar onde estava.

Era uma amarga ironia eu ter achado por tantos anos que obter a atenção de Wes realizaria todos os meus sonhos. Agora eu estava vendo que a verdade se encontrava muito longe disso, e algo me dizia que mesmo se ele tivesse se apaixonado por mim espontaneamente eu não estaria feliz. Os presentes que me dava eram lindos e a antiga Agnes ficaria mais do que satisfeita por usar coisas tão refinadas. A Agnes de agora, contudo, não conseguia encontrar graça em nada.

A transformação parecia ter dado um tempo, mas eu tomava minhas precauções e evitava contato com água a todo custo. Tentava ficar a no mínimo cem metros do mar e era cautelosa até mesmo com banhos. Eu não me importava se não cheiraria muito bem. Não me arriscava a mergulhar numa banheira – minhas limpezas passaram a ser feitas com panos úmidos e boas doses de perfume.

A rotina se tornou: dormir em casa, sair para o centro com Wes pela manhã e o acompanhar em seus negócios. Depois eu ia para a casa dele fazer as refeições e à noite retornava ao meu humilde casebre. Eu sabia que ele não aguentaria muito tempo minha exigência de dormir em casa, mas eu continuaria insistindo nisso até quando não pudesse mais.

Estar em casa era bom para pensar e decidir o que fazer com meu futuro. Enquanto ele cochilava no sofá eu conseguia me sentir como eu mesma de novo, o que era difícil no luxo da mansão. Eu criava tarefas domésticas e apreciava minha cama de solteiro. Olhava para o rosto adormecido dele e pensava em como me livrar daquele estranho antes que fosse irreversível.

Naquela noite em específico, minha mente trabalhava mais. Eu tinha ouvido mais cedo que Loran havia partido de vez de Rasminn naquela tarde. Antes ele estivera navegando nas redondezas para concluir um negócio com um mercador, mas agora que tudo estava finalizado ele ficou livre para seguir seu rumo e cumprir o que disse a mim.

Deitada em minha cama, olhando para o teto capenga de madeira, ao som dos roncos de um Wes estirado no sofá, sentia-me sufocar. Havia sempre um copo de água por perto agora, pois essa sensação tinha se tornado recorrente, e quando eu irrigava meu corpo por dentro sempre melhorava. Mas desta vez, desde que voltei da cidade naquela tarde, não importava quantos litros eu havia bebido, continuava sufocando. Meu peito se apertava de angústia e eu sabia que tinha deixado passar a última chance de mudar minha história.

Enquanto caminhava para a mansão mais cedo naquele dia, reprimi vários impulsos de ir até o porto e entrar naquele barco. Se fôssemos para longe o bastante, Wes talvez não conseguisse nos seguir. Eu preferia morrer tentando essa fuga a continuar enterrada na atual realidade massacrante, mas em todas as vezes que pensei que faria, que correria, a coragem não veio. Não era justo eu acorrentar Wes a mim como fiz e depois largá-lo amargurado. Não era justo colocar Loran em risco, e principalmente, não era justo dar a ele a chance de me ter, se eu não seria humana mais em breve e poderia eu mesma machucá-lo.

Essa última consideração, porém, ficou na minha cabeça por mais tempo desta vez, ali, deitada na cama, e pensei nela por uma outra perspectiva.

Wes também vai ficar de coração partido quando eu me transformar. Não importa a escolha que eu faça, ele não pode me ter para sempre. Esse destino eu não posso mudar.

Loran podia não me amar tanto quanto Wes parecia me amar por causa da poção, mas Loran era um homem do mar e estava mais acostumado às lendas. Talvez ele pudesse descobrir um meio de reverter minha situação. O pai dele fazia magia, segundo me contou, e talvez o filho tivesse herdado algum conhecimento... Ou talvez, em último caso, eu pudesse ser uma sereia diferente das outras, e então seguir Loran e vigiá-lo, protegê-lo... amá-lo.

A angústia estava apertando minha garganta e a falta de ar se tornou muito real. Sentei no colchão e fiz esforço para inalar, mas continuava difícil demais. Meu corpo e minha alma pediam, imploravam que eu fosse para a água. Eu precisava mergulhar, precisava nadar, agora eu podia nadar... Ir atrás dele.

Ignorei tudo que não fosse o instinto louco, peguei minha capa e saí silenciosamente, tentando não acordar Wes.

Lá fora, corri como nunca. Ao chegar ao fim do píer, arranquei fora os sapatos e todas as peças de roupa e pulei nua no mar.

Continua...

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