As três meninas na chuva

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 Ofélia nasceu em terras distantes, filha de pai e mãe islandeses, possuía sangue nórdico fervendo em suas veias. É uma longa história até entender por que veio morar no Reino Unido, mas chegaremos lá. Quando completou seus 20 anos de idade, largou a comunidade nômade com a qual vivia e construiu o seu próprio chalé em meio a uma floresta. O grupo lamentou sua partida, mas Ofélia era desapegada como ninguém. Consigo, guardou um caderninho antigo, uma muda de roupas e algumas sementes para plantio. Por sorte, conhecia bem aquela terra de viagens passadas, e o solo era muito fértil. Não demorou muito tempo até que algumas crianças de uma cidade vizinha a notassem, e começaram a surgir boatos sobre aquela misteriosa figura que habitava sozinha no meio da floresta.

Ela não ligava muito, aliás, dava risada da curiosidade dos transeuntes. Eram quase sempre crianças pequenas, em grupos de cinco ou meia dúzia. Iam à floresta buscar amoras e subir nas árvores. Eram raras as vezes em que seus caminhos se cruzavam, afinal as crianças só saíam na luz do Sol, com a permissão dos pais. Ofélia costumava sair ao entardecer para observar o nascer da Lua e os vagalumes. No verão e primavera, tomava algumas horas de sol pela manhã à beira da lagoa, nadava e brincava com os pássaros, mas depois tornava ao chalé e escrevia páginas e páginas em seu caderninho.

Em um dia ensolarado de verão nadou na lagoa por horas, até que sentiu uma gota d'água em sua testa já molhada. Em alguns segundos, a gota se transformou em milhões, e o céu começou a trovejar. Ela saiu depressa, cobriu-se com um grande retalho de tecido e foi em direção ao chalé. Parado em frente à sua porta, protegendo-se da chuva, estava um gato de pelos tão alvos como a neve. Colocou-o para dentro rapidamente e abriu uma lata de atum para lhe dar. Ofélia era encantada por animais, em especial felinos, e sentia que aquele encontro poderia talvez ser "coisa do destino". O nomeou: Gerônimo.

A apenas algumas árvores de distância, conseguiu ouvir um barulho de choro infantil. Vestiu uma capa e foi à floresta em busca daquele som. Encontrou, embaixo de um cinamomo, três meninas que aparentavam ter cerca de 8 ou 9 anos de idade. Uma delas chorava, agonizando, pois haviam se perdido e, além disso, suas roupas estavam encharcadas. A menina ruiva de menor estatura choramingava que levaria uma bela bronca dos pais por ter ido tão longe. As amigas tentavam reconfortá-la, dizendo que logo a chuva iria passar e elas encontrariam o caminho para casa. Ofélia pisou um galho e as três meninas assustadas, miraram rapidamente seus olhos arregalados naquela jovem excêntrica.

– Acalmem-se, gurias. Tenho um chalé aqui por perto e, se quiserem, posso abrigá-las enquanto esperam a chuva passar. Estava pensando em preparar uma torta de amoras... O que acham?

As três se entreolharam, desconfiadas, como se estivessem assimilando aqueles boatos que ouviram sobre uma tal jovem que morava na floresta. Uma delas, faminta, levantou e puxou as outras em direção a ela.

– Eu adoro torta de amoras! É a minha favorita! Minha vó sempre faz para mim no meu aniversário.

Ofélia esboçou um sorriso sincero, lembrando dos tempos de criança, quando sua mãe a fazia deliciosos doces de mirtilo. Sentia muita falta de sua figura materna, a qual aguardava todos os dias pelo retorno. Mas dentro de si, sentia que estava fazendo a coisa certa: não podia se apegar demais à terra natal ou à família, precisava se libertar. Ela segurou então a mão da menina que estava chorando e a disse que estava tudo bem, e logo estariam seguras em casa de novo. Pensou também em como foi fácil convencer as meninas a se abrigarem em seu chalé, e ficou um pouco preocupada. Essas crianças pareciam desavisadas...

– Escutem, queridas, é muito perigoso andarem sozinhas na floresta apenas vocês três. Da próxima vez, tragam uma criança mais velha... Decorem um atalho para casa, talvez uma bússola poderia ajudá-las. Há pessoas más nessa floresta, que não pensariam duas vezes em levá-las para ainda mais longe de suas famílias. Prometam que, da próxima vez, serão mais cautelosas?

As pequenas, se já estavam desconfiadas antes, agora estavam mais ainda. Ofélia rapidamente percebeu como soaram aquelas palavras e tentou desviar o foco.

– Vejam, tem um coelhinho ali! Gostam de coelhos?

– Eu adoro! Minha mãe sempre faz guisado de coelho aos domingos! – disse bem animada.

A chorona abriu ainda mais o berreiro, lembrando de sua mãe, e que ela tinha prometido fazer um delicioso prato de carne de porco naquele dia, mas ela não estaria em casa para provar... Ofélia não sabia muito bem como lidar com crianças, passou a vida rodeada por adultos. Ela observava muito, mas pouco falava. Tentar acalmar aquela menina era o maior desafio que havia enfrentado em tempos. Olhou com dor no coração para o coelho, pensando que já era sábado e o pai daquela menina poderia caçá-lo a qualquer momento.

Chegaram ao chalé. A lata de atum estava vazia e Gerônimo já havia escolhido um cantinho escuro para dormir. Ofélia alcançou um outro retalho de tecido para as meninas se secarem e uma manta para se esquentarem. Abriu um pote de biscoitos de aveia e colocou na mesa. Uma das meninas começou a comer e as outras seguiram seus passos, como quase sempre faziam. Aos poucos, a menina foi parando de chorar enquanto observava as paredes cheias de quadros e as prateleiras cheias de livros.

– Estes livros são todos seus?

– Sim, são. – respondeu Ofélia – Você gostaria de ler algum?

– Eu não sei ler... Você poderia ler para nós?

– Claro! Vocês me ajudam a preparar a torta, e enquanto isso leio um conto para vocês. O que acham?

– Sim! – responderam as três em coro.

Ofélia separou os ingredientes e explicou a elas como se fazia a massa, o recheio e a decoração da torta. Então, pegou um livro de contos e lendas islandesas que possuía desde a infância e sentou-se na mesa em frente às crianças.

– Mas antes, gostaria de me apresentar. Meu nome é Ofélia, qual é o nome de vocês?

– Meu nome é Felícia. – disse a menina que puxava as outras – Essas são as minhas amigas, Gaia e Amanda. – Apontou respectivamente para a menina do guisado de coelho e depois para a chorona.

A tarde passou depressa para Ofélia, ela já havia lido cerca de cinco contos quando a chuva cessou. Olhou para a janela e para as meninas, que expressavam alívio em seus rostos corados. Estas se levantaram abruptamente e se dirigiram à porta, todas de mãos dadas. A torta ainda não havia ficado pronta.

– Vocês precisam de ajuda para voltar? Posso guiá-las até a saída da floresta. Vocês moram em qual vila?

– Moramos na Vila das Andorinhas. Você sabe o caminho?

A jovem fez que sim com a cabeça, pegou uma bússola antiga em uma gaveta na sala e botou no bolso. Foram trilhando a floresta e, cerca de 10 minutos depois, estavam na frente da vila. Já haviam alguns caçadores e mães preocupadas procurando as crianças por dentro das árvores. As meninas olharam para Ofélia e agradeceram, ela consentiu com a cabeça e entregou a Felícia a bússola que estava em seu bolso. Os adultos, porém, ficaram zangados, como se Ofélia e julgavam suas intenções um tanto quanto misteriosas. Ela pensou em explicar às famílias o que havia acontecido, mas as palavras lhe fugiram naquele momento. E como um peixe que pula fora d'água rapidamente mergulha, ela voltou a trilhar o caminho escuro da floresta em direção ao lar.

Tomou um banho fresco, penteou os longos dourados cabelos e vestiu um penhoar de renda. Foi fazer a janta, comeu algumas batatas e tomou várias taças de vinho enquanto relembrava o dia extraordinário que tivera. Viu a torta que tinha feito com as crianças, que agora estava pronta e morna no forno. Lembrou também da própria infância, seus irmãos e primos correndo na plantação de arroz. E percebeu que a cada ano que passava, a solidão a tomava mais um pouco para si. Ouviu um leve ronronar e sentiu a ternura de seu novo companheiro, Gerônimo. Era ele que estava ali, ouvindo seus pensamentos soltos, sem julgamentos ou conselhos não requisitados – os quais odiava veementemente. Ele era seu único amigo.

– Não há ninguém para dividir essa torta comigo, Gerônimo. E agora, o que farei com tanta comida? – olhou por alguns segundos fixamente para o gato, como quem realmente esperava uma resposta. – Pois bem, amanhã pela manhã eu poderia levar alguns pedaços à Vila das Andorinhas. O que acha?

O gato miou, consentindo. 

OféliaWhere stories live. Discover now