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O mesmo pesadelo freqüente e a limitação dos meus movimentos. Acordo. Que lugar é esse? Não estou dormindo numa câmara particular, e sim num ambiente desconhecido, com mobílias estranhas e acolchoadas, antigas. Porém, algo na minha lembrança se recorda desse lugar.

Céu está ao meu lado e me oferece uma infusão ainda quente. Aceito. Localizo uma janela para ter alguma noção de que parte do dia estou.

- Acho que você tirou um cochilo na Singularidade. - Céu sorri divertido. Não sei como ele fez para me trazer até aqui.

A bebida quente aquece minhas análises sensoriais, meu cérebro desperta. Olho para o meu display braçal e a sinalização para marcar a consulta ainda está ali. Ainda tenho algumas horas até o tempo limite.

- Daqui há pouco eles irão rastreá-la. Mas antes de eu desconectar seus leitores, preciso te mostrar algo.

Aparece um indivíduo e eu identifico. É Mel, agora recordo. Não sei porque a simples presença dela me causa um estado de quase dissociação. Coloco o recipiente vazio na superfície mais próxima que encontro.

- Existe um motivo pelo qual sua mente não se adequou a nenhuma das fases de maturação, estive estudando teus dados nos últimos ciclos.

Céu espalma suas mãos na parede principal do cômodo e abre uma tela. Arrasta o dedo e maximiza uma janela com a foto de Mel.

- Minha irmã não é daqui. Ela é fruto de uma inseminação artificial, e seu corpo se desenvolveu em um hospedeiro vivo, um ser humano, uma mulher.

A idéia me causou enjôo. Em que lugar um ser humano parasita o outro? Será que do lugar que Céu veio as coisas são assim?

- Eu sei que pode parecer estranho pra você. Uma cópia dos seus dados genéticos foi sintetizada aqui. Ela passou por todos os estágios de maturação comuns, como qualquer outro indivíduo natural da Cúpula. E como sua base operacional é a inteligência artificial, ela passou por todos os testes, mesmo sem ter matriz anímica.

Mel sorria pra mim, com seus olhos vazios. Ela se aproximava enquanto Céu falava.

- Minha equipe alterou alguns dispositivos dela. Ela tem - digamos assim - alguns acessos especiais aos dados de refugo ou bloqueados dos demais indivíduos.

Mel tocou levemente em minha mão, puxando-me para me aproximar de Céu. Seu toque suave e quente não a distinguiria de qualquer ser vivo.

- O seu desconforto com ela deve-se ao fato de sua mente querer acessar os dados para esclarecer essa questão. Você a conhece, há muito tempo. Ela é uma prisioneira da Cúpula, igual a você.

Prisioneira? Não uso algemas ou estou limitada a um confinamento. Não entendo a intensão do seu discurso, ou o motivo. Estou tão próxima dele que posso agora tocar nas janelas de dados. Alguns trechos estão em um idioma que desconheço. Logo percebo que Mel insere seu indicador em uma reentrância na parede, mas não a tempo de me desvencilhar quando ela também insere seu outro indicador na entrada em minha nuca.

Ela fecha os olhos. É desconfortável e nauseante, e sinto que vou ficar inconsciente. Céu segura minha mão com força.

- Não durma agora, vai bloquear o acesso às tuas memórias.

Aperto de volta a mão dele com força.

- O que vocês estão fazendo?

- Estamos buscando suas memórias mais profundas. Existem dados obstruídos que não conseguiram apagar, e toda vez que você se recorda entra em choque com sua mente consciente, por isso você dissocia.

Abre-se uma tela de registro mnemônico. Minha fase 2 de maturação, talvez por volta do 5º ou 6º ciclo. Na imagem mostra eu com outros infantes indo para as câmaras oníricas, mas algo está errado e a minha não fecha. Enquanto os outros dormem, eu saio em direção à janela. Vejo as cores de neón da Cúpula anoitecida. Há uma presença estranha, uma mulher vestida de névoa negra. Aperto firme a mão de Céu. Ainda no registro, vejo um drone se aproximando e então, a tela preta do apagamento.

- É ela - prossegue Céu - A Névoa é a tua chave para sair.

Mel aperta meu braço e meu display se apaga - a tela mnemônica se apaga junto. Então os vejo. Os pequenos "seres" dos meus pesadelos, espalhados por toda parte. Não estão em grande número, mas rastejam-se e parecem nos observar, entram e saem de pequenas frestas.

- Você agora pode vê-los. São IA artrópodes, estão por toda Cúpula, mas os implantes bloqueiam seu reconhecimento consciente.

Avalio a situação. O que mais pode ter sido escondido de mim?

- Vai demorar pouco tempo pra descobrirem que não podem mais rastreá-la pelo display. - Céu pisa em um artrópode que estava próximo - E então você precisa arranjar um jeito de não ser localizada.

Depois do CéuWhere stories live. Discover now