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Os autômatos limpam as calçadas, espero observando seu movimento automático e contínuo enquanto Céu conclui seu trabalho na parte das cargas vivas do veículo. Os indivíduos de metal têm um movimento monótono e repetitivo, preciso, mecânico. Não existem indivíduos orgânicos na rua agora para que eu possa ter uma base de comparação, mas acredito que Céu está a um meio-termo entre os autômatos e nós, os fabricados na Cúpula, mesmo que na superfície seja repleto dos mais defeituosos. Ele sai do veículo e faz um gesto para entrarmos no compartimento de direção. Com minha demora, ele recua e olha pra trás. Uma reprogramação imediata de percurso e objetivo. Ele é mesmo uma criatura deveras bizarra.

Entro no veículo. Novamente as tentativas maçantes para fazê-lo funcionar. Percebi do meu companheiro um certo incômodo?

- Se esses caras fossem realmente tão inteligentes como querem os fazer crer, colocariam uma ignição manual para que evitássemos atrasos.

- O pessoal não-autorizado poderia pegar o veículo.

Olho para ele em dúvida: que alegação absurda!

- E quem iria querer tantos infantes? Só centros especializados têm a possibilidade de maturá-los sem defeitos. E mesmo assim há aqueles que acabam se desajustando.

Céu olhou nos meus olhos através do seu aparelho. Desviei, com incômodo, disfarçando tentar novamente o reconhecimento ocular. Por sorte, consegui.

- Um centro não é o único lugar capaz de fazer uma maturação.

Concentro-me no encaixe circular da entrada da via. Baixo os olhos para o painel de controle. Em qualquer lugar Eles podem estar: nos autômatos, nas câmeras de segurança, na minha mente. Certos pensamentos são perigosos e dolorosos. Não posso me permitir.

- Você é um natural, Céu. Tem idéias estranhas. Não sei como o permitem trabalhar tão próximo a centros de reajustes.

- Você sabe que fui designado para a área da borda. Jamais poderia trabalhar nos pisos subterrâneos.

Não mesmo - penso com meus botões. Só o Controle Central sabe o quanto essa conversa transtorna minhas atividades mentais e cardíacas.

- Suas idéias anti-colônia iriam causar um caos social. E sua falta de conectores natalícios ia causar terror.

Ouvi o som de um sorriso e o percebo na minha visão periférica. Obsceno. Tento controlar meus sinais, vou passar por avaliação em breve. Só quem já passou por reprogramação sabe o desconforto posterior das drogas de reajuste. Sabe vazio de uma reavaliação mnemônica. Respiro fundo, concentro-me no fluxo do trânsito que está quase nulo. Sinto meu coração bater desconfortavelmente no peito.

Assim que chegamos, dirijo-me para a recepção para tratar do sinal do meu display enquanto os autômatos do hospital auxiliam Céu nas áreas designadas aos infantes. Meu dedo toca na área indicada e uma agulha faz um pequeno furo indolor para que colham uma gota do meu sangue. Em poucos minutos fazem o seqüenciamento genético e o meu histórico de consultas e avaliações já podem ser reservados para acesso ao meu prontuário no horário marcado. Assim que os dados chegam no meu display, configuro o alarme de consulta e outro para lembrar de reprogramar a rota dos transportes. Todo meu agendamento vespertino é adiado.

Vou à puericultura para esperar a consulta dos infantes. Céu está sentado, distraindo-se com uma bebida quente. Uso os controles junto à porta e escolho uma mistura herbácea. Quando pronta, uso a rotação interna do recipiente para auxiliar no processo de dissolução. Como se o líquido adocicado de alguma forma pudesse aliviar minha ansiedade.

- Como está essa safra?

- Sem nenhuma disfunção física ou mental aparente. Vamos ver como vão sair nos testes hospitalares.

Sento-me ao lado dele. De alguma forma o aroma das bebidas resgatam sensações de conforto.

- Minha existência é um desperdício de recursos.

- Não fale besteira - Céu olha pra mim num gesto fraterno. Assinto.

- Desde neófita nunca conheci alguém tão discrepante como você.

- Você sabe que eu não sou daqui. - Ele relaxa os ombros, levanta a cabeça para encostá-la na parede. Como pode assumir uma postura tão casual neste horário?

- Sim. Eu tenho um defeito que me impede pelo resto da minha vida útil de ir ao subterrâneo. Mas você sequer tem implantes. Como conseguem avaliar se você é apto para o cargo que ocupa?

Falo sem pensar. É certo que ele é mais resistente que o comum a certos comportamentos inconvenientes, mas não significa que tenha que ser permissivo a este ponto. Ele me olhou incrédulo e suspirou. Tomou um gole e olhou vago para um ponto indefinido à frente.

- Meu trabalho não é exatamente um cargo de confiança.

- Eu sei, mas mesmo que seja periférico, por que você não é como nós? - estou incontrolável. A frustração pelo meu mau funcionamento freqüente está destruindo meus filtros sociais.

- Será que sua curiosidade é mesmo essa ou tem mais alguma coisa?

Suspirei. Ele tinha toda razão. Eu sempre apresentaria defeitos? Estava condenada a uma vida na superfície até as idades limites para só então poder descer? E como sabiam se ele tinha ou não defeitos, já que ele não tinha conectores para avaliarem seus dados de funcionamento? Será que a condição dele era a chave para a minha cura? Tomo mais um gole. Deixo minhas papilas gustativas deleitarem-se ao sabor da espera.

Com os infantes liberados, alguns autômatos nos auxiliaram até chegarmos ao transporte. Observo Céu fazer o mesmo trabalho nos chips de identificação, com cuidado e paciência. Nem mesmo os autômatos passam despercebidos sob sua atenção. Será que existem outros indivíduos como ele na Cúpula?

Depois de toda a dificuldade da partida, permanecemos em silêncio até a última parada da manhã, que era a nova residência dos infantes. Antes de desligar o veículo faço logo a reprogramação para o retorno à garagem comum da área residencial para não precisar passar o mesmo transtorno de reconhecimento ocular de sempre. Decidimos ir no refeitório do próprio prédio. Nossos chips de identificação nos permite acesso à ala dos profissionais daquela estação. Já acomodada, deslizo minha mão sobre tampo da mesa para verificar os alimentos disponíveis. Feito o pedido, observo Céu. Interessante como ele ajusta o equipamento em seus olhos para ter melhor foco do ambiente. Ele também diz que aquilo o auxilia em locais fechados, quando o mapa do mesmo é disponibilizado para acesso público por alguma rede sem fio. A falta de implantes faz com que ele precise de aparelhos externos para coisas básicas, como agendamento, programação remota de veículos e até mesmo para se comunicar com a inteligência artificial de sua própria residência. Ele retira um dispositivo do bolso do jaleco para programar seu transporte pessoal, uma vez que só eu tenho acesso ao veículo de cargas vivas. Evito perguntar se seus agendamentos também foram cancelados naquele dia.

- Onde fica tua residência?

- Na área residencial comum, é claro.

Faço um gesto negativo. Giro o dedo no ar, simbolicamente abrangendo todo refeitório.

- Nenhum desses profissionais residem na superfície.

Céu encosta mais no assento e relaxa. Sua expressão facial é um sorriso claro, como se meu interrogatório o divertisse. Provavelmente meu comportamento fosse específico das minhas disfunções. Dificilmente um neurotípico se preocuparia com pormenores da situação residencial de terceiros.

- A área residencial é a mesma para toda Cúpula. Ela se estende até os andares subterrâneos. A diferença é que as intempéries da superfície podem alterar o comportamento químico dos cérebros saudáveis.

Entrelaço meus dedos sobre a mesa e encaixo meu queixo sobre eles. Posso ver meu gesto inquisitivo espelhado no vidro do seu equipamento ocular.

- E em que andar você acha preferível morar?

Sutilmente ele corre seu olhar por todo o local. Parece suspirar com um certo desânimo.

- Acho tudo aqui um pouco claustrofóbico. O menos pior para as minhas configurações sinápticas certamente é a superfície.

Após a refeição, nos dirigimos à garagem comum da estação. Meu veículo pessoal já está programado para me levar aos centros médicos no piloto automático.

Depois do CéuWhere stories live. Discover now