~ 6 ~

23 1 0
                                    

O desespero para emergir. Acordo antes da alvorada. Uma vez mais sonhos ruins dificultando meu despertar. A escuridão ainda é longa, estou distante das cores crepusculares. Sei que estou longe do que deveria lembrar agora.

Confiro a agenda no meu display, mas não há nada agendado. Espalmo as mãos na parede para abrir a tela do mezanino. Insiro as pontas dos dedos nas cavidades que se abrem para acessar meus arquivos áudio-visuais dos dias passados. Escolho a última pasta. Giro um pouco a mão para avançar até os registros do exame do dia anterior.

Na imagem, a visão de dentro do capacete do cilindro em que estou. No áudio: "Entomofobia. Delirius tremens. Reconfiguração mnemônica local. Ligações sinap...". Alguns segundos de tela preta e já estou numa câmara de repouso do hospital. Avanço mais o registro e os drones me acompanham para a garagem comum. Já dentro do veículo, algo chama a atenção. Tento focar a imagem mas já aparecem alguns defeitos de estática. Ou uma superposição de imagens. Ou uma interferência. Algo prejudicou meus registros mnemônicos. Desconheço a forma de reajustá-los.

Desço as escadas ainda na escuridão. Vou para a ala de higienização aliviada por serem apenas controles digitais. Preparo o banho de imersão que sempre faço depois desses pesadelos, para acalmar os instintos primitivos que parecem inerentes à minha espécie e apaziguar meu corpo nos limites da atmosfera líquida.

Após o dejejum estou tentando vencer a apatia. Ainda não há agendamentos no meu display. Provavelmente o próximo será o derradeiro. Sei que nada que solicite reconhecimento ocular funcionará, novamente. Saio da minha câmara particular pela saída de emergência.

Todas as coisas não-automatizadas estranhamente me dão mais conforto. Desço na madrugada fria até instintivamente chegar na Singularidade. Instintivamente? Esse é o termo que para um humano-padrão não devia mais existir, ao menos nossas intervenções cirúrgicas e demais implantes cibernéticos desde nossas fases de maturação tenta aliviar. Todos os que ainda apresentam esse erro acentuado passam por várias seções de reajustes até poder se adaptar. Os que não conseguem...

Um sinal no meu display me desperta dos devaneios. Também percebo as cores após a abóboda lutando para mudar. Penso que o sinal é algum agendamento mas é apenas mensagem de Céu solicitando minha localização. Respondo. Não sei em que tipos de assuntos posso ser útil.

A Singularidade é o centro da Cúpula, um imenso buraco do qual se pode ver todos os andares. Na borda há grades simples e medianas, sem nenhum tipo de proteção. Em torno dela há os centros residenciais de todos os andares, conectados entre si. É quase como se pudéssemos sentir a vida pulsante dos andares inferiores, por meio das luzes nos prédios e das vias translúcidas que estão por toda parte.

A luz sobre a cúpula já está bastante clara quando Céu aparece ao meu lado.

- Não faremos nenhum transporte hoje?

Aponto para meu display.

- Aparentemente não.

Céu pega o dispositivo em seu jaleco. Seu olhar transparece preocupação.

- Para mim também não aparece nada.

- Eu tive mais um pesadelo. Talvez meu próximo agendamento seja manutenção ou descarte.

Apesar a irreversibilidade do meu quadro, percebo-me estremecer após a última palavra. Por que o temor? Por que sensações primitivas dominam meu corpo apesar de tantas tentativas de aprimoramento? Toda peça danificada deve ser descartada, é desperdício de recursos insistir em algo que não tem conserto.

- Você consegue se lembrar de algo de ontem?

Acho estranha a pergunta. Será que ele tem acesso aos meus arquivos pessoais?

- Verifiquei meus registros áudio-visuais assim que despertei. Há um bloqueio depois que os drones me deixaram na garagem.

No meu braço o display sinaliza. Céu segura minha mão, obstruindo o aviso no display.

- Então você não se lembra da minha irmã?

Irmã? A definição desse termo são indivíduos com mesma entidade geradora, e portanto, com códigos genéticos semelhantes. Algo chama atenção na minha pereferia ocular para o outro lado da Singularidade. Será que vi um vulto negro ali? Afasto a mão de Céu do meu braço para verificar qual o agendamento solicitado: descarte. Volto meu olhar para o Céu e tenho certeza que ele leu.

- Tem certeza que não se lembra dela?

Minha memória busca um rosto enigmático obliterado por motivos escusos. Vertigem. Ponho as mãos no meu rosto: epistaxe. É difícil ficar de pé e tudo em volta vai se apagando.

Sinto as mãos de Céu suavemente sobre eu rosto.

- Bruma, tudo o que você está passando é sua mente querendo despertar.

Depois do CéuHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin