Finjo que sou o mais estranho de todos, apenas para te reencontrar
Estava mentalizando o que precisava comprar para o rapaz ferido na livraria ShangYuan.
Ataduras, antisseptico, algodão, gaze e fita microporosa... Será que era o suficiente?
Xie Lian estava colocando tudo que achava necessário na cesta com o logo da farmácia.
Estava fitando um frasco de água oxigenada em sua mão, quando em meio ao movimento dentro do estabelecimento, ouviu uma conversa sobre alguém procurando um rapaz que havia corrido em fuga por aquela região.
Poderia ser?...
Ele não se conteve e se virou.
E ao lado de uma senhora baixa e atarracada, havia um homem alto, de cabelo comprido como seu, porém preso, vestindo calças pretas de corte reto, jaqueta azul por cima de uma blusa vermelha, tênis e usando óculos.
A silhueta dele estava de lado, do ângulo que estava dentro da farmácia.
Embora essa descrição pudesse parecer simples, o homem não parecia em nada simples... Ele tinha uma bonita voz, qualquer coisa de refinada em seus modos, enquanto falava com a senhora baixinha que parecia não ter qualquer informação relevante.
Xie Lian se aproximou alguns passos, vindo quase pelas costas dele e acabou por dizer, quando a pequena senhora se foi:
— Perdão... Está procurando um rapaz que fugiu a pouco pelas redondezas?
O homem virou no mesmo instante e Xie Lian constatou que tinha mais do que uma boa aparência, um tipo de olhar penetrante por trás de uma das lentes do óculos, a outra lente estava encoberta por uma espécie de feltro... Numa divagação rápida, perguntou a si mesmo se ele poderia ser cego de um olho.
Mas, isso era um detalhe sem importância agora.
— Sim, é meu irmão... Tem dezesseis anos, com o rosto coberto por algumas bandagens sujas. Ele está numa fase difícil, preciso levá-lo para casa.
Xie Lian anuiu com a cabeça a segurar a cesta da farmácia com uma das mãos, na verdade se perguntando porque o rapaz não queria ir com o irmão. Ele ainda estava intrigado com os ferimentos por baixo das bandagens... Se o irmão parecia uma pessoa boa, por que não ir com ele?
— Eu preciso dizer... — Xie Lian prosseguiu cauteloso. — Acho que sei onde está o seu irmão. Mas, antes que eu diga algo mais. Se importa em responder algumas perguntas?
Chegou a pensar que o homem devolveria algum olhar estranho ou contrariado, mas opostamente, ele lhe sorriu e Xie Lian reparou que até sua sobrancelha por cima do olho bom tinha um desenho fino e elegante.
— Claro, por favor... — Hua Cheng pediu com uma centelha morna de gentileza na voz. — Pergunte o que lhe convir.
— Quem machucou seu irmão daquele jeito? Ele está realmente muito assustado.
Hua Cheng não pode manter o sorriso, mas também não fechou categoricamente seu semblante, ele replicou num tom mais sério, mas sem soar frio demais:
— Eu não sei quem machucou E-Ming. E ele fugiu de mim, logo depois que paguei sua fiança... Ele estava preso por ter assaltado uma loja... Não posso ser mais direto do que isso.
A cada revelação, os olhos de Xie Lian tornaram-se maiores, redondos e expressivos.
Repletos de susto. O rapaz teria sido ferido assim na cadeia?
— E-Ming... — Xie Lian repetiu meditativo o nome para si. — Mas, ele é quase uma criança... Que terrível. Eu não queria ser intrometido, desculpe... Eu só queria ter certeza se...
Xie Lian pigarreou sem jeito, desviando o olhar e Hua Cheng arriscou dizer suavemente:
— … Se não tinha sido eu a pessoa que feriu meu irmão?
— Bem, sim... — Xie Lian replicou após coçar de leve a própria testa. — É que maus tratos entre membros da família, infelizmente é mais comum do que se imagina.
— Eu garanto que não é esse o caso... Acaso... — Hua Cheng olhou para o conteúdo da cesta plástica nas mãos de Xie Lian. — Isso tudo será destinado aos ferimentos do meu irmão?
Xie Lian quase deu um pulo para trás, talvez fosse bobagem da sua parte, mas ele não pensou que sua atitude fosse tão óbvia e se sentiu um pouco envergonhado.
— É que eu pensei em limpar as possíveis feridas, trocar aquelas bandagens sujas... Seu irmão me pareceu tão assustado.
Um sorriso à meio, inviesou-se nos lábios de Hua Cheng, como a prévia de um mau sorriso um tanto indecifrável, ladeado por um ciúme oculto.
— É muito gentil. — Hua Cheng tinha a voz pendendo a terna, em visto do sorriso que destoava. — Mas, eu que devo pagar por isso.
— Eu não me importo em pagar, eu já tinha essa intenção.
Hua Cheng reprimiu com esforço um suspiro, segurando de leve em uma das alças da cesta:
— Por favor, eu insisto.
Um segurava em cada alça e nenhum dos dois tinha intenção de soltar, a se olharem dentro daquela farmácia.
— Mesmo que pague por isso, terá que permitir que eu cuide de seu irmão... Está bem assim?
— Vai me levar até ele, então?
Não é que Xie Lian ainda pareceu hesitar? Ele mirou se nas duas mãos distintas que seguravam as alças da cesta e percebeu de relance o que parecia ser parte de uma tatuagem aparecendo sob a manga dobrada da jaqueta jeans do homem mais alto.
— Eu sei que é seu irmão... Mas, se importa se eu entrar primeiro sozinho na livraria onde ele está com meu amigo? Para evitar que ele tente fugir novamente... Eu pretendo tranquiliza-lo, vai poder estar com ele logo depois.
Com o semblante preso num cinismo imutável e um tom de pseudo-surpresa, Hua Cheng redarguiu sem desviar seu olhar de Xie Lian:
— Ele está na livraria, então?... — Suas sobrancelhas ergueram sorrateiras. — Eu o acompanho até lá e pensar que passei por ela enquanto vinha para estes lados.
Huan Cheng pareceu talvez relaxar um pouco ao final da sentença e sorriu, o que causou também um sorriso em Xie Lian:
— Foi uma tremenda sorte a gente ter se esbarrado aqui na farmácia... O que é bem incomum.
— O que é incomum? — Hua Cheng sorriu ainda mais, bastante sincero dessa vez.
— Eu não tenho normalmente muita sorte, então a sorte possivelmente deve ser sua... Senhor...?
Os ainda estavam parados naquele corredor, a se olharem enquanto cada uma de suas mãos ainda seguravam a alça da cesta de compras da farmácia, as juntas de seus dedos a se tocarem ao passo que seus lábios mantinham-se em uma curva ascendente adorável.
— Não precisa de 'senhor'... Apenas San Lang está bom.
— Certo... Prazer, San Lang. Chame-me Xie Lian. — Ele disse entre seu sorriso e o riso baixo e nisso, reparou no olho vivaz por trás da lente do óculos dele, olhar para sua outra mão.
E antes que Hua Cheng pudesse dizer algo, Xie Lian percebeu somente nesse instante que ainda segurava a água oxigenada na outra mão.
— Gege quer levar? Pode colocar na cesta.
Ao ouvir o “Gege”, Xie Lian fez uma careta que nem de longe conseguiu se parecer com uma careta realmente, era mais uma expressão boba e encantadora.
— Gege? Ora, serei assim tão mais velho?
— É somente um pequeno palpite. — Hua Cheng sorriu ao dar os ombros, seu tom entre o preguiçoso e o jovial. — Vamos lá pagar estas coisas e Gege vai comigo até a livraria, sim?
— Vai fazer o que eu pedi, certo San Lang?
Hua Cheng segurou enfim nas duas alças da cesta, os dois fazendo menção de ir até o caixa pagar os itens.
— O que quiser, Gege.
Xie Lian piscou os olhos com um sorriso que oscilava entre o gentil e o duvidoso.
De repente, a conversa tinha tomado um rumo tão familiar... Mas, ele não conseguia associar esse “San Lang” a nenhuma lembrança anterior, não naquele instante.
Por enquanto, Xie Lian resolveu deixar isso de lado e seguir logo atrás dele até um dos caixas.
Ele ainda estava pensando nos ferimentos de E-Ming, sem nem desconfiar que na verdade tinha sido seguido por Hua Cheng até a farmácia.
O mais estranho de todos, afinal... Não era em definitivo, nada estranho.