1984 (1949)

Par ClassicosLP

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Obra do indiano George Orwell. Plus

Parte I, Capítulo I
Parte I, Capítulo II
Parte I, Capítulo III
Parte I, Capítulo IV
Parte I, Capítulo V
Parte I, Capítulo VI
Parte I, Capítulo VII
Parte I, Capítulo VIII
Parte II , Capítulo I
Parte II, Capítulo II
Parte II, Capítulo III
Parte II, Capítulo V
Parte II, Capítulo VI
Parte II, Capítulo VII
Parte II, Capítulo VIII
Parte II, Capítulo IX
Parte II, Capítulo X
Parte III, Capítulo I
Parte III, Capítulo II
Parte III, Capítulo III
Parte III, Capítulo IV
Parte III, Capítulo V
Parte III, Capítulo VI

Parte II, Capítulo IV

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Par ClassicosLP

Winston percorreu com o olhar o comodozinho esquálido que ficava em cima da loja do sr. Charrington. Ao lado da janela, a cama imensa estava arrumada com cobertores puídos e um travesseiro sem fronha. O relógio antiquado, com o mostrador de doze horas, tiquetaqueava sobre a borda da lareira. No canto, sobre a mesa de abas dobráveis, o peso de papéis de vidro que ele comprara em sua última visita luzia suavemente na semiescuridão.

No guarda-fogo, viam-se um velho fogareiro a querosene, uma panela e duas xícaras, tudo fornecido pelo sr. Charrington. Winston acendeu o fogareiro e pôs um pouco de água para ferver. Trouxera um envelope cheio de café Victory e algumas pastilhas de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam sete e vinte; e eram, de fato, dezenove e vinte. Ela chegaria às dezenove e trinta.

Loucura, loucura, seu coração não se cansava de dizer: insensatez deliberada, gratuita e suicida! De todos os crimes que um membro do Partido podia cometer, aquele era o mais difícil de encobrir. Na realidade, a ideia começara por assomar à sua mente na forma de uma visão do peso de papéis de vidro refletido na superfície da mesa de abas dobráveis. Como ele previra, o sr. Charrington não apresentara empecilhos para alugar o quarto. Ficara perceptivelmente satisfeito com o dinheirinho extra que haveria de ganhar. Tampouco se mostrara escandalizado ou se tornara agressivamente malicioso quando ficara claro que Winston pretendia usar o quarto para encontros amorosos. Em vez disso, olhou para um ponto a meia distância e falou de generalidades com um ar tão delicado que dava a impressão de ter se tornado parcialmente invisível. A privacidade, disse, era uma coisa muito valiosa. Todo mundo queria ter um lugar em que pudesse estar a sós de vez em quando. E quando alguém encontrava um lugar assim, não era senão um gesto da mais trivial cordialidade que aqueles que soubessem do fato guardassem a informação para si mesmos. O antiquário chegou a acrescentar, dando a impressão de quase se dissolver no ar ao fazê-lo, que a casa tinha duas entradas, sendo uma delas pelo quintal, que dava para um beco.

Havia alguém cantando sob a janela. Protegido pela cortina de musselina, Winston olhou para fora. O sol de junho ainda brilhava alto no céu, e no pátio ensolarado uma mulher gigantesca, sólida como um pilar normando, com braços fortes e vermelhos e avental de tecido grosseiro em volta da cintura, andava pesadamente de lá para cá entre uma tina e um varal, pendurando uma série de quadrados brancos que Winston identificou como fraldas de bebê. Sempre que sua boca não estava entupida com pregadores de roupa, ela se punha a cantar num contralto vigoroso:

Era um capricho e nada mais,

Doce como um dia de abril,

Mas seu olhar azul de anil

Roubou para sempre a minha paz!

Fazia várias semanas que só se ouvia aquilo em Londres. Era uma das inúmeras canções, todas muito parecidas, compostas para uso dos proletas por uma subseção do Departamento de Música. Os versos eram elaborados — sem nenhuma intervenção humana — por um instrumento conhecido como versificador. Porém o canto da mulher era tão melódico que transformava aquela bobagem, aquela porcaria intragável, num som quase agradável. Winston ouvia a mulher cantando, o ruído produzido pelo atrito de seus sapatos nas lajes, os gritos das crianças na rua e em algum lugar muito longe o ronco surdo do trânsito — e ainda assim o quarto parecia curiosamente silencioso, graças à ausência da teletela.

Loucura, loucura, loucura!, tornou a pensar. Era inconcebível que pudessem frequentar aquele lugar por mais do que algumas semanas sem ser descobertos. Mesmo assim, a ideia de terem um esconderijo que fosse realmente só deles, um quartinho de fácil acesso, representara para ambos uma tentação forte demais. Depois da visita ao campanário da igreja, haviam passado algum tempo sem conseguir organizar novos encontros. O período de trabalho fora drasticamente ampliado em virtude dos preparativos para a Semana do Ódio. Ainda faltava mais de um mês, mas a enormidade e a complexidade do evento exigiam de todos cotas extras de trabalho. Por fim, Winston e Julia conseguiram uma tarde livre no mesmo dia. Tinham combinado voltar à clareira no bosque. Na noite da véspera, encontraram-se rapidamente na rua. Como de hábito, ao se aproximar de Julia em meio à multidão, Winston mal olhou para ela; porém ao vê-la de relance, achou-a mais pálida que de costume.

"Nossos planos furaram", murmurou ela, tão logo lhe pareceu seguro falar. "Não vai dar amanhã."

"Como assim?"

"Amanhã à tarde. Não vou poder ir."

"Por que não?"

"Ah, o de sempre. Começou mais cedo desta vez."

Por alguns instantes, Winston ficou profundamente encolerizado. Ao longo daquele mês, desde que haviam começado a se relacionar, a natureza do desejo que sentia por ela se modificara. No começo a coisa era muito pouco sensual. Na primeira vez, o sexo tinha sido apenas e tão somente um ato da vontade. Mas depois da segunda vez tudo se modificara. Ele — ou o ar em volta dele — parecia ter-se impregnado do cheiro do cabelo de Julia, do gosto de sua boca, da maciez de sua pele. Ela se tornara uma necessidade física: algo que ele não apenas desejava, mas a que sentia ter direito. Quando Julia disse que não poderia ir ao encontro, Winston teve a sensação de que ela o estava enganando. Naquele exato momento, porém, a multidão empurrou um de encontro ao outro e as mãos deles acidentalmente se encontraram. Julia apertou de leve a ponta dos dedos de Winston, um toque que parecia ser um convite não ao desejo, mas à afeição. Winston pensou que, quando um homem vivia com uma mulher, um contratempo como aquele devia ser uma ocorrência natural, recorrente; e uma ternura profunda, como não havia sentido por ela antes, de súbito se apossou dele. Desejou que fossem um casal com dez anos de vida em comum. Desejou poder andar com ela pelas ruas exatamente como faziam agora, porém às claras e sem medo, conversando sobre assuntos triviais e comprando coisinhas para a casa. Desejou sobretudo dispor de um lugar qualquer onde pudessem estar a sós sem sentir a obrigação de fazer amor toda vez que se encontrassem. Não fora efetivamente naquele instante, mas em algum momento do dia seguinte lhe ocorrera a ideia de alugar o cômodo do sr. Charrington. Quando fez a sugestão a Julia, ela concordou com uma rapidez inesperada. Ambos sabiam que era uma imprudência. Era como se estivessem dando intencionalmente um passo na direção de suas sepulturas. Sentado na borda da cama, Winston tornou a pensar nas celas do Ministério do Amor. Curioso como aquele horror predeterminado se afastava da consciência da pessoa e depois voltava. Um horror localizado ali, num ponto futuro, que antecipava a morte com a mesma certeza com que o 99 antecipava o 100. Um destino que não se podia evitar, muito embora talvez fosse possível postergá-lo; todavia, em vez disso, a pessoa volta e meia optava, graças a um ato consciente e voluntário, por abreviar o tempo de sua ocorrência.

Nesse instante, passos rápidos soaram na escada. Julia irrompeu no quarto. Trazia uma sacola de ferramentas, uma sacola de lona marrom rústica, como a que por vezes ele a vira carregando de um lado para o outro no Ministério. Winston precipitou-se para tomá-la nos braços, porém ela se desprendeu dele com alguma ansiedade, em parte porque ainda estava com a sacola nas mãos.

"Só um segundo", disse. "Quero que veja o que tenho aqui. Você trouxe aquela porcaria de café Victory? Imaginei que traria. Pode jogar fora, não vamos mais precisar dele. Olhe isto."

Julia ficou de joelhos, abriu a sacola com alvoroço e jogou no chão algumas chaves inglesas e uma chave de fenda que ocupavam a parte de cima da sacola. A parte inferior estava forrada com esmerados pacotes de papel. O primeiro pacote que ela pôs nas mãos de Winston tinha uma consistência estranha e todavia vagamente familiar. Seu conteúdo era pesado, parecia areia e cedia onde a pessoa o tocasse.

"Não vá me dizer que é açúcar!", exclamou ele.

"Açúcar de verdade. Não é sacarina, não; é açúcar. E aqui temos um belo pão — pão mesmo, não aquela coisa horrorosa que estamos acostumados a comer — e um vidrinho de geleia. E aqui uma lata de leite. Mas veja! É disto que eu mais me orgulho. Tive de embrulhar em um pano porque..."

Porém não foi preciso que ela explicasse por que tivera de embrulhar aquilo em um pano. O cheiro já inundava o aposento, um cheiro forte, pronunciado, que parecia a Winston uma emanação dos primeiros anos de sua infância, mas que ainda agora era possível sentir ocasionalmente, ao se sair por um vestíbulo antes de uma porta ser fechada ou difundindo-se misteriosamente por uma rua apinhada de gente, inalado por um instante e no momento seguinte extinto de novo.

"É café", murmurou ele, "café de verdade."

"É o café do Núcleo do Partido. Tem um quilo aqui", disse ela.

"Como você conseguiu essas coisas?"

"É tudo reservado para o consumo do Núcleo do Partido. Os pulhas têm de tudo, para eles nunca falta nada. Mas é claro que os garçons, as empregadas e outras pessoas acabam passando a mão numa coisa ou outra e — veja, arrumei um pacotinho de chá também."

Winston estava de cócoras ao lado dela. Rasgou um canto do pacote.

"É chá mesmo. Não folhas de amora-preta."

"Tem aparecido muito chá ultimamente. Conquistaram a Índia ou coisa assim", disse Julia distraída. "Mas escute, amor. Quero que você fique de costas para mim por três minutos. Vá se sentar do outro lado da cama. E não olhe antes de eu mandar você se virar."

Winston, absorto, olhou para fora através da cortina de musselina. Lá embaixo, no quintal, a mulher de braços vermelhos continuava a marchar de um lado para o outro, entre a tina e o varal. Tirou mais pregadores da boca e cantou com muito sentimento:

Dizem que o tempo tudo cura

E que no fim sempre se esquece,

Mas risos e choros — até parece

Que a vida passa e eles perduram!

A mulher parecia saber de cor e salteado todos os versos daquela canção melosa. Sua voz adejava com o doce ar estival, extremamente melodiosa, transportando uma espécie de melancolia feliz. Tinha-se a impressão de que ela se sentiria perfeitamente satisfeita se a noite de junho fosse infinita e o estoque de roupas inesgotável, obrigando-a a passar mil anos ali, pendurando fraldas no varal e cantarolando bobagens. De repente ocorreu a Winston como era curioso que ele nunca tivesse ouvido um membro do Partido cantar sozinho, espontaneamente. Seria uma atitude pouco ortodoxa, uma excentricidade perigosa, como falar consigo mesmo. Talvez as pessoas só tivessem um assunto sobre o qual cantar quando viviam em algum patamar próximo da inanição.

"Pode olhar agora", disse Julia.

Winston se virou e levou quase um segundo para reconhecê-la. Imaginava que a veria nua. Mas ela não estava nua. A transformação ocorrida era muito mais surpreendente que isso. Julia se maquiara.

Devia ter entrado furtivamente em alguma loja dos bairros proletários e comprado um estojo completo de maquiagem. Seus lábios estavam muito vermelhos; suas maçãs, rosadas; seu nariz, empoado; havia até algo sutilmente aplicado sob os olhos para deixá-los mais brilhantes. O trabalho não tinha sido muito benfeito, porém os padrões de Winston nesse quesito não eram elevados. Ele nunca tinha visto nem imaginado uma mulher do Partido com cosmético no rosto. A melhora na aparência de Julia era impressionante. Com algumas pinceladas de cor nos lugares certos, ela ficara não apenas mais bonita como, sobretudo, muito mais feminina. Os cabelos curtos e o macacão de menino somente reforçavam o efeito. Ao tomá-la nos braços, uma onda de violetas sintéticas inundou as narinas de Winston. Ele se lembrou da semiescuridão de uma cozinha de subsolo e da boca cavernosa de uma mulher. Era exatamente o mesmo perfume; porém no momento aquilo não pareceu ter a menor importância.

"E perfumada!", disse.

"Sim, amor, perfumada. E sabe qual vai ser a próxima coisa que eu vou fazer? Vou arrumar um vestido de verdade em algum lugar e vou usá-lo em vez destas malditas calças. E meias de seda, e sapatos de salto alto! Neste quarto serei uma mulher, não uma camarada do Partido!"

Tiraram a roupa e subiram na imensa cama de mogno. Foi a primeira vez que Winston ficou nu na presença dela. Até então, sentira muita vergonha de seu corpo macilento e descarnado, com veias salientes e varicosas nas panturrilhas e a mancha descorada no tornozelo. Não havia lençóis, o cobertor sobre o qual se deitaram era surrado e liso, e as dimensões da cama, assim como as molas do colchão, deixaram os dois abismados. "Deve estar cheio de percevejos, mas e daí?", disse Julia. Não havia mais cama de casal em lugar nenhum; só nas casas dos proletas. Na infância, Winston por vezes dormira numa cama de casal; Julia, até onde se lembrava, jamais se deitara numa.

Pouco depois, adormeceram. Quando Winston acordou, os ponteiros do relógio marcavam quase nove da noite. Não se mexeu, pois Julia dormia com a cabeça apoiada em seu braço. A maior parte da maquiagem se transferira para o rosto dele ou para o travesseiro, porém uma leve nódoa de ruge ainda revelava a beleza de seu malar. Um raio amarelo do sol poente passava pelo pé da cama e iluminava a lareira, onde a panela de água estava em franca ebulição. No quintal, a mulher já não cantava, porém ainda se ouviam os gritos das crianças na rua. Impossível que tivesse havido um tempo em que tudo aquilo parecesse corriqueiro. Julia despertou, esfregou os olhos e apoiou-se no cotovelo para olhar para o fogareiro.

"Metade da água já evaporou", disse. "Vou me levantar e fazer um café num instante. Temos uma hora. A que horas apagam as luzes no seu prédio?"

"Às onze e meia."

"Na pensão é às onze. Mas a gente tem que chegar antes disso porque... Ei! Sai daí, bicho nojento!"

Julia se curvou de repente na cama, pegou um sapato no chão e o arremessou na direção de um dos cantos do quarto com um movimento brusco do braço, feito um menino, o mesmo movimento que Winston a vira fazer ao atirar o dicionário em Goldstein, naquela manhã, durante os Dois Minutos de Ódio.

"Que foi?", perguntou, surpreso.

"Um rato. Eu vi quando ele pôs o focinho asqueroso para fora do lambri. Tem um buraco ali embaixo. Pelo menos dei um bom susto nele."

"Ratos!", murmurou Winston. "Neste quarto!"

"Estão em todos os lugares", disse Julia com indiferença, tornando a se deitar. "Já apareceram até na cozinha da pensão. Algumas áreas de Londres estão infestadas deles. Sabia que eles atacam as crianças? Atacam mesmo. Há ruas em que as mães não se atrevem a deixar os bebês sozinhos nem por dois minutos. São uns ratões marrons, esses que atacam. E o pior é que eles sempre..."

"Por favor, pare!", disse Winston, fechando os olhos com força.

"Querido! Você está pálido. Está se sentindo mal? Esses bichos deixam você com náuseas?"

"Um rato... O pior dos horrores que há no mundo!"

Julia estreitou-se contra ele e o cingiu com as pernas, como se pretendesse tranquilizá-lo com o calor de seu corpo. Winston não abriu imediatamente os olhos. Tivera por alguns instantes a sensação de estar de volta a um pesadelo que desde a infância o afligia ocasionalmente. Era sempre mais ou menos a mesma coisa. Ele se via diante de uma muralha de escuridão, e do outro lado havia uma coisa insuportável, algo horrível demais para ser encarado. No sonho, seu sentimento mais profundo era sempre o da autoilusão, porque no fundo ele sabia o que havia atrás da muralha. Se fizesse um esforço abominável, como o de arrancar um pedaço do próprio cérebro, seria capaz até de arrastar a coisa para a luz. Sempre acordava sem descobrir o que era, porém tinha alguma relação com o que Julia estava dizendo quando ele a interrompeu.

"Desculpe", disse. "Não foi nada. É que não gosto de rato, só isso."

"Não se preocupe, amor, não vamos deixar esses bichos nojentos entrarem aqui. Vou tampar o buraco com um pedaço de pano antes de irmos embora. E da próxima vez trago um pouco de argamassa e fecho tudo bem direitinho."

O momento negro de pânico já estava quase esquecido. Um pouco envergonhado de si mesmo, Winston sentou-se na cama, apoiando as costas na cabeceira. Julia se levantou, vestiu o macacão e fez o café. O cheiro que saía da panela era tão forte e estimulante que eles fecharam a janela, com medo que alguém do lado de fora o sentisse e desconfiasse de alguma coisa. Ainda melhor que o gosto do café era a textura sedosa que o açúcar lhe conferia, algo de que Winston tinha quase se esquecido depois de anos de sacarina. Com uma mão no bolso e um pedaço de pão com geleia na outra, Julia circulou pelo quarto, olhando com indiferença para a estante de livros, observando qual seria a melhor forma de consertar a mesa de abas dobráveis, deixando-se cair na poltrona surrada para ver se ela era confortável, examinando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de deleite tolerante. Levou o peso de papéis de vidro para a cama para poder vê-lo sob uma luz melhor. Winston tirou-o de suas mãos, fascinado como sempre pelo aspecto delicado do vidro, com as bolinhas que lembravam gotas de chuva.

"Você tem ideia do que seja isto?", indagou Julia.

"Acho que não é nada — quer dizer, acho que nunca foi usado para nada. É justamente por isso que gosto dele. É um pedacinho da história que se esqueceram de alterar. Uma mensagem de cem anos atrás, se alguém soubesse como lê-la."

"E aquele quadro ali" — Julia fez um gesto com a cabeça, indicando a gravura na parede oposta —, "será que tem cem anos?"

"Deve ter mais. Eu diria que tem uns duzentos. Mas não dá para saber. Hoje é impossível descobrir a idade do que quer que seja."

Julia foi observar a gravura mais de perto. "Foi aqui que aquele bicho botou o focinho para fora", disse, chutando o lambri logo abaixo do quadro. "Que prédio é esse? Já vi em algum lugar."

"É uma igreja; quer dizer, era. Chamava-se São Clemente dos Dinamarqueses." Lembrou-se do pedaço da quadrinha que o sr. Charrington havia lhe ensinado e acrescentou, meio nostálgico: "Sem casca nem semente, dizem os sinos da São Clemente!".

Para sua perplexidade, Julia completou:

Esses vinténs são pra mim, cantam os sinos da São Martim,

E o culpado, quem é, afinal?, perguntam os sinos do Tribunal...

"Não me lembro mais como continuava. Só sei que terminava assim: Vá para a cama e seja um bom moço, Ou vem a cuca e te corta o pescoço!".

Era como as duas partes de uma contrassenha. Mas devia haver outro verso depois de os sinos do Tribunal... Talvez desse para desencavá-lo da memória do sr. Charrington, se o provocasse com o estímulo adequado.

"Quem lhe ensinou isso?", perguntou Winston.

"Meu avô. Costumava cantar para mim quando eu era pequena. Foi pulverizado quando eu tinha oito anos... Enfim, desapareceu. Eu gostaria de saber o que era um limão", acrescentou, despreocupada. "Laranjas eu já vi. São uma espécie de fruta amarela e redonda, de casca grossa."

"Me lembro dos limões", disse Winston. "Eram muito comuns nos anos 1950. Tão azedos que só de sentir o cheiro a pessoa ficava arrepiada."

"Aposto que está cheio de percevejos atrás desse quadro", disse Julia. "Vou tirá-lo daqui e dar uma boa limpada nele um dia desses. Acho que deve estar na hora de irmos embora. Preciso tirar a maquiagem. Que droga! Depois eu limpo o batom do seu rosto."

Winston permaneceu mais alguns minutos deitado. O quarto estava escurecendo. Virou-se para a luz e ficou admirando o peso de papéis de vidro. A fonte inesgotável de interesse não era o fragmento de coral, mas o próprio interior do vidro. Havia tamanha profundidade ali, e no entanto o vidro era quase tão transparente quanto o ar. Era como se a superfície do vidro fosse o arco do céu, encerrando um mundo minúsculo em sua atmosfera completa. Winston tinha a sensação de que seria capaz de entrar ali e de que na verdade estava ali dentro, ele, a cama de mogno, a mesinha de abas dobráveis, o relógio, a gravura de aço e o próprio peso de papéis. O peso de papéis era o quarto onde ele estava, e o coral era a vida dele e a de Julia, fixadas numa espécie de eternidade no coração do cristal.

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