De Volta ao Santa Luz (romanc...

By NatanCaetano

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🏆 VENCEDOR DO WATTYS 2021 NA CATEGORIA ROMANCE! 🥇 Se você pudesse voltar no tempo, você faria tudo de novo... More

⚠️🚨 AVISO AOS NAVEGANTES! 🚨⚠️
Capítulo 1: O Reencontro 🦋
Capítulo 2: A Viagem 🦋
Capítulo 3: O Novato 🦋
Capítulo 4: A Ascensão
Capítulo 5: O Crime
Capítulo 6: O Castigo
Capítulo 7: O Troco
Capítulo 8: O Covil 🦋
Capítulo 9: O Abate
Capítulo 10: O Cordeiro
Capítulo 11: A Chuva
Capítulo 12: O Terno
Capítulo 13: A Promessa
Capítulo 14: O Fogo
Capítulo 16: As Guerras 🦋
Capítulo 17: O Tempo
Capítulo 18: O Reencontro 🦋
Capítulo 19: O Café [antepenúltimo!]
Capítulo 20: As Verdades [penúltimo!]
Capítulo 21: O Amanhã
💖 Comentários, agradecimentos e explicações

Capítulo 15: A Festa

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By NatanCaetano

O ano estava chegando ao fim. Depois que a chantagem acabou e Giovani passou a ocupar outros lugares na vida de Fernando, o tempo começou a voar. Em duas semanas seria Natal; mais um pouco e 2009 se encerrava, tendo sido, de longe, o ano mais louco e mais intenso da vida de Fernando. E foi movido por toda essa loucura e pela avalanche de acontecimentos atípicos dos últimos meses que ele decidiu fazer algo que nunca havia feito: dar uma festa. Era sempre ele sendo chamado para um encontro aqui, uma baladinha ali, uma social no condomínio de fulano ou ciclano, mas ele nunca era o anfitrião, e aquele ano não poderia se encerrar sem que ele fizesse isso pela primeira vez.

Os pais foram os principais incentivadores. Concordaram que às vezes também era bom recepcionar as pessoas e não só ir até elas, o único pedido que fizeram foi que ele devolvesse a casa inteira, como a encontrasse antes da reunião. Passariam um final de semana fora para que o filho e seus convidados pudessem se divertir à vontade, sem a preocupação de que a qualquer momento a festa acabaria porque os pais voltaram. Viajariam para a praia, aproveitando lá alguns dos dias de férias que Valério deu a si mesmo.

Laura ficou encarregada de garantir que ninguém derrubaria a casa, embora Fernando fosse responsável o bastante para não deixar isso acontecer. Lorenzo foi intimado a ajudar com a logística da coisa, pois era o mais festeiro e quem sabia onde comprar o quê e onde e quanto. Giovani ficou por conta de espalhar a notícia e convidar as pessoas relevantes. Ele sempre sabia quem chamar, sempre tinha os contatos certos. Fernando ficou por conta de fazer o restante e de rezar para que ninguém se afogasse nem usasse drogas nem vomitasse nos lugares errados nem quebrasse nada.

Os amigos de sempre foram chamados, mas ele tinha poucas expectativas de que eles fossem, primeiro porque não eram tão sociais, segundo porque o público não era o favorito deles. Giovani certamente convidaria os outros alunos populares da escola, incluindo os atletas, as garotas fúteis, os que iriam aonde ele estivesse, e Rafaela, Marina e Yuri não eram bem esse tipo de cool kid. Com um pouco de insistência, porém, Fernando conseguiu convencê-los a ir, prometendo que não os abandonaria para ficar com Giovani e Lorenzo, que agora pareciam ser seus novos amigos favoritos.

Ao anoitecer, a casa já estava pronta para receber os convidados para a Festa do Fernando. Lorenzo passou a tarde toda por lá, ajudando a deixar coisas no lugar, dispor copos, bebidas, aperitivos, tudo. Laura e Rodrigo o ajudaram; Fernando estava ansioso e empolgado demais para conseguir fazer alguma coisa. Não sabia nem que roupa vestir; não queria parecer relaxado, mas também não queria parecer que se esforçou demais para ser legal. Acabou seguindo o conselho da irmã e vestindo qualquer camiseta, qualquer bermuda e qualquer tênis, o que ele fez depois de uma investigação minuciosa do guarda-roupa—elegendo peças que não fossem quaisquer.

O início da festa estava marcado para as sete da noite. Até as oito e meia ainda tinha gente chegando. Às nove, já estava difícil circular pela casa; deviam ser em torno de quarenta adolescentes ocupando cada centímetro quadrado do lugar. A música dos altos falantes do home theater na sala competia com a algazarra juvenil em volume. Fernando queria dar atenção aos convidados, mas logo, logo percebeu que a maioria das pessoas não estava ali por causa dele, mas pela bebida e pela diversão, e isso acabou o fazendo se sentir desobrigado das funções tradicionais de um anfitrião. A única pessoa que ele queria encontrar era Giovani, mas ou ele ainda não havia chegado ou estava perdido na multidão. Perguntou a Lorenzo quando o viu passando para pegar mais bebida se ele sabia se Giovani já tinha chegado, mas ele não sabia de nada, disse que não falou com ele o dia todo.

Na volta para se reunir com Marina e Rafaela na sala, porém, quem Fernando encontrou foi Maitê, conversando com um grupo de amigas perto da entrada da casa. Uma sensação péssima se formou no estômago de Fernando, e outro pensamento igualmente ruim em sua cabeça. Será que o Giovani convidou ela? Por que ele faria isso? Giovani não era bobo: ele sabia que Maitê fazia Fernando se sentir inseguro. Embora os garotos não tivessem nenhum tipo de compromisso, embora o relacionamento sem nome que eles sustentavam fosse muito secreto e particular, Fernando era o elo fraco. Era ele quem nutria esperanças, era ele quem estava apaixonado, era ele quem sofria ao pensar que, não importava o quanto ele gostasse de Giovani, Giovani nunca gostaria dele do mesmo tanto; era ele quem se sentia um passatempo, um item descartável. Era ele quem tinha tudo a perder. Mas o que tornava a presença da garota ali ainda mais incômoda era o fato de que, com o passar do tempo, Giovani começou a indicar sistematicamente que ele e Maitê tinham terminado, embora ele jamais usasse essa palavra, porque para terminar com alguém, eles precisariam estar namorando, e ele jurava que o que tinha com Maitê nunca passou de um rolinho.

Lorenzo reiterava essa história, e era ele quem fazia as vezes de terapeuta de casais com Fernando e Giovani, que eram igualmente relutantes em verbalizar e colocar as coisas em pratos limpos, sempre movidos pelo sentimento de que discutir a relação implicava estar em uma relação. A Maitê já era, Fernando, relaxa, Lorenzo dizia, e Fernando parecia acreditar mais nisso quando ouvia de Lorenzo do que quando Giovani sugeria; mas, mesmo assim, nada que ele ouvia era o suficiente para deixá-lo seguro de que estava pisando em solo firme quando o assunto era Giovani.

Ele só foi aparecer depois das nove, quando Fernando já estava descrente de que ele viria. Encontrou-se com ele na parte externa da casa e o cumprimentou com um abraço morno. Justificou a demora dizendo que estava na casa da mãe e que ela acabou se atrasando para levá-lo à festa. Giovani sabia que Fernando se chatearia com o atraso e que não ter avisado nada não foi a melhor ideia, mas não sabia como compensá-lo ou se redimir. O que soube fazer foi ficar por perto, conversar, ser gentil, falar uma ou outra sacanagem ao pé do ouvido para tentar assegurar que estava tudo bem.

Foi o suficiente. Logo Fernando se distraiu, o sentimento ruim foi se esvaindo e ele voltou a curtir a festa, que, apesar de menos agitada e bem mais civilizada do que o que ele imaginou, não deixou a desejar no quesito entretenimento. Depois que os grupinhos se estabeleceram e se distribuíram irmãmente pelos cômodos da casa, as coisas realmente interessantes começaram a acontecer.

A primeira delas envolveu Marina, que esteve com Yuri na sala a maior parte do tempo. Quando se cansou de ficar sentada olhando as outras pessoas se divertindo, ela decidiu se entrosar e ver o que havia de bom por ali. Na mesa da sala de jantar, uma meia dúzia de convidados organizou um beer pong que dentro de pouquíssimo tempo se transformou em fear pong: quem não quisesse perder um copo tinha que pagar uma prenda ou aceitar um desafio. Quando a viram se aproximar da mesa, convidaram-na para a rodada que estava para começar. Sem grandes expectativas, Marina aceitou participar. Ainda sóbria e curiosamente boa de mira, ela estava em vantagem na disputa, até que, quando perdeu o copo que a deixou empatada com o oponente, veio o desafio que a desestruturou pelo resto da noite.

Beije uma pessoa do mesmo sexo ou perca um copo.

Foi como se a chance de abrir uma janela para um mundo de possibilidades se apresentasse misticamente diante de seus olhos. O medo tomou conta, mas a curiosidade e a empolgação não deram a ela tempo para racionalizar o instinto. Era o momento perfeito para colocar à prova aquela teoria que ela vinha alimentando para sempre em sua cabeça.

— Tudo bem, eu beijo.

Seu tom indiferente não condizia com o êxtase que revolvia dentro dela. A eleita também estava participando do jogo, esperando pela próxima rodada. E foi assim que Marina deu o primeiro beijo lésbico de sua vida, que, depois daquela noite, se dividiu em duas.

Ela acabou vencendo o jogo, mesmo tendo ficado completamente abalada com o beijo. Voltou para a companhia de Yuri sabendo que nada superaria aquilo durante a festa. Marina, eu não acredito!, Yuri exclamou quando ela voltou contando o que aconteceu. Ela também não acreditava, não só que tinha beijado uma garota, mas que tinha feito isso para dezenas de pessoas verem, e isso sem dúvida repercutiria muito em breve.

Outras atividades aconteciam pela casa, dentro e fora. Depois que os primeiros convidados começaram a ir embora, lá pelas onze horas, meia-noite, e o volume da música já estava mais baixo, os grupinhos foram se assentando e partindo para as brincadeiras de sempre, daquelas que nem sempre terminavam bem. Perto da piscina, brincavam de verdade ou desafio, e por pouco, muito pouco Fernando não ganhou um beijo de Denis, que, assim como Marina, foi desafiado a beijar alguém do mesmo sexo, mas, no fim, amarelou e sofreu outra consequência. Giovani estava ao lado de Fernando quando vieram abordá-lo; nenhum dos dois estava participando da brincadeira. O olhar enigmático que Giovani lançou sobre Fernando quando perguntaram se ele aceitaria beijar Denis... Aquele olhar só Fernando viu, mas nem mesmo ele soube traduzir.

A rodinha em que eles estavam optou por uma brincadeira mais light: sete minutos no céu, ideia de Lorenzo. Foi a primeira vez em muito tempo que os dois universos sociais de Fernando coexistiram: ele, Giovani, Lorenzo, Yuri e Marina no mesmo grupo, conversando sobre os mesmos assuntos, falando sobre as mesmas pessoas, os mesmos professores... Se Rafaela estivesse presente, certamente estaria nauseada.

O céu da brincadeira era o closet de Marta, no quarto dos pais de Fernando. Ele mesmo pegou um caderno em sua mochila para escrever os nomes dos nove participantes e colocar dentro do copo de onde sorteariam os pares que iam brincar. As regras eram simples: nada de celulares, portas fechadas, luzes apagadas e respeito. A pessoa que fizesse o sorteio era quem levava e buscava os pares da vez. Laura, a mais sóbria, cronometrava o tempo.

Demorou mais de cinco turnos para que Fernando e Giovani saíssem como par, sorteados por Rodrigo, que, ao contrário de Lorenzo, não fazia ideia de que existia algo entre o cunhado e o melhor amigo.

— Juízo, vocês dois, hein?! — ele recomendou quando fechou a porta do quarto e os deixou a sós.

O closet era espaçoso, mas estava bem escuro. Fernando deixou a porta entreaberta para receber um pouco da luz que vinha da janela. Sentaram-se no chão, ele e Giovani, quietinhos. Era a primeira vez que tinham um momento a sós, em silêncio, desde que Giovani chegou na casa.

— E aí? — Fernando perguntou em voz baixa, com meio sorriso na voz.

— Oi...

Estavam de frente um para o outro, sentados com as pernas cruzadas. Giovani tinha bebido bem pouco; não queria perder a noção da realidade—como costumava fazer—na casa de Fernando, que também mantinha o álcool sob controle. Deram as mãos no escuro e fizeram silêncio.

— Tá tudo bem? Parece que eu tô te achando meio... sei lá, triste hoje.

Giovani soltou uma risadinha frouxa. Não estava necessariamente triste, mas havia algo de distante nele.

— Eu tô bem... — ele respondeu, e, após outro breve instante de silêncio, emendou: — Mas eu queria te perguntar uma coisa.

— Claro, pode perguntar.

Os polegares dele acariciavam o dorso da mão de Fernando, que esperou que ele escolhesse as palavras para formular a pergunta:

— Você ia beijar mesmo o Denis? se ele não tivesse arregado?

Era a última pergunta que Fernando esperava ouvir. A resposta ele não sabia ao certo, mas a intriga estava na pergunta.

— Não sei... Por quê?

— Pra saber.

— Você ia ficar com ciúme?

— Você sabe que eu e o Denis não somos mais chegados depois que ele ficou com a Maitê...

— E o que tem ela a ver com isso?—aliás, foi você que convidou ela?

Não! — Giovani apertou as mãos de Fernando junto com a exclamação. — Eu juro que não sabia que ela vinha! Ela deve ter vindo junto com alguém, eu juro que não fui eu!

— Ei! Tá tudo bem! Não precisa jurar, eu acredito em você... Só achei estranho ver ela aqui, até porque você disse que vocês não são mais... Sei lá o que vocês eram.

— Nada. A gente não era nada.

Pairava uma melancolia silenciosa no ar. Poderia ser, sim, que Giovani estivesse com ciúme da ideia de Fernando beijar Denis na frente de todas aquelas pessoas, mas ele jamais admitiria, mesmo que fosse verdade. Sentir ciúme, no entender dele, entrava no hall dos sentimentos que só se manifestavam quando existia um elo mais profundo que amizade entre as pessoas, e... bem, ele não sabia qualificar ao certo o tipo de elo que o ligava a Fernando. Eu gosto de buceta! Foram essas as palavras dele, e ele nunca as desdisse.

— Você é muito especial pra mim...

A frase se enunciou espontaneamente, enquanto ele segurava as mãos de Fernando, e nenhuma ressalva foi feita depois das reticências. Nada do que havia sido dito até li parecia justificar a declaração de afeto inesperada, e Fernando a recebeu de sobrancelhas erguidas e um olhar de susto que o escuro do closet não deixou Giovani testemunhar.

— Você também é especial pra mim, você sabe...

— Eu sei... mas... É que às vezes eu sinto que tudo que eu faço te machuca um pouco, sabe? Mesmo quando eu não faço nada, tipo esse lance da Maitê estar aqui e tal.

— Você já disse que não convidou ela, eu acredito em você, tá tudo bem, Giovani, não precisa se culpar por isso. E outra, eu não tenho nada contra ela, acho ela super de boa, mas, né... vocês tiveram "um rolo", como você disse um dia.

— Eu sei, mas meu rolo agora é com você.

Fernando riu. Não de alegria nem porque achou engraçado ou fofo o que Giovani disse: riu aquele riso nervoso, defensivo, que vem para tentar mascarar outros sentimentos. Riu para mascarar a frustração de não conseguir acreditar que Giovani realmente dizia a verdade—não porque mentisse, mas porque não sabia o que estava sentindo e só dizia o que vinha na mente para tentar fazer Fernando se sentir melhor. Porque, sim, a grande verdade era que tudo que ele fazia machucava um pouco, mesmo quando ele não fazia nada.

— Eu vou fingir que eu não escutei isso, Giovani.

— Por que não? Eu tô falando sério!

— Escuta, a gente tá no meio de uma festa, nossos sete minutos aqui já vão acabar, nós não vamos ter esta conversa agora. Nem nunca. — Fernando soltou as mãos dele e se levantou. — Vem, daqui a pouco o Rodrigo vem buscar a gente.

Giovani se levantou com a ajuda de Fernando. Limpou as mãos nas calças e entendeu o recado de que o assunto estava encerrado. Foi confiante dar um beijo no dono da festa, mas foi rejeitado gentilmente, recebendo um abraço casto em retorno.

— Que foi?!

— Devia ter me beijado mais cedo, agora a gente não pode sair do quarto de pau duro.

Rodrigo veio buscá-los. As três batidas na porta e o "Tempo esgotado!" que ele exclamou interromperam o abraço dos garotos, que voltaram para onde estavam e continuaram a brincadeira como se nada tivesse acontecido. A próxima a ir para o céu foi Marina, justo com a garota que tinha beijado mais cedo. Se a tradição da brincadeira se mantivesse, ela realmente estaria a caminho das nuvens. De novo.

Entediado, Giovani foi se juntar a outros colegas enquanto os demais continuavam sorteando nomes para irem ficar sete minutos no closet. Fernando foi sorteado mais uma vez, junto com Helô, e foi ameaçado de porrada por Lorenzo se tentasse alguma gracinha, o que arrancou alguns risos da turma. As piadas dele estavam melhorando ultimamente. Quando todos se cansaram da brincadeira, partiram para o eu nunca. Ainda eram os mesmos nove participantes menos Giovani e Yuri, que foi embora cedo porque tinha que acordar cedo no dia seguinte.

As regras eram simples de novo: quem já tivesse feito algo bebia um gole; quem bebesse cinco vezes era eliminado. Nessa hora, a vida dos colegas de Santa Luz se mostrava muito mais interessante do que parecia, e muitos revelavam coisas de arregalar os olhos, especialmente no campo sexual, e especialmente levando em conta que eram todos ainda adolescentes. Ou isso ou a bebida estava os induzindo a mentiras escabrosas.

Passava de meia-noite. Mais da metade das pessoas já tinha ido embora, incluindo Marina, Denis e Rodrigo. Estavam agora dispostos na sala; Fernando deitado com a cabeça no colo de sua irmã Laura, Lorenzo e Helô lado a lado no sofá menor, e mais um casal de amigos sentados no chão. Trocaram a bebida alcoólica por refrigerante e beliscavam alguns aperitivos enquanto conversavam sobre filmes; a música rolando baixinho ao fundo, mais um grupo reunido no quintal, outros sentados à mesa da sala de jantar. Alguém sugeriu pedir pizza para fechar a noite com chave de ouro, e a ideia foi aceita com unanimidade. Enquanto decidiam os sabores, Helô perguntou:

— Fê... Será que você tem algum remédio pra dor de cabeça aí?

— Tenho, vou ali pegar, peraí.

Fernando se levantou do colo da irmã e teve de driblar os copos e pratinhos espalhados pelo chão da casa. Sentiu uma preguiça na alma só de pensar que teria que arrumar toda aquela bagunça no dia seguinte. Se Laura se solidarizasse, o trabalho seria menor, mas ele não contava muito com isso. Passou pela cozinha e viu que a situação não estava diferente. Subiu os degraus carpetados da escada para pegar um analgésico em seu kit de primeiros socorros, que Marta sempre mantinha abastecido. Abriu a porta do próprio quarto e, em um segundo, seu coração foi da boca ao chão.

Foi o tempo de traduzir a cena e fechar a porta outra vez. Fernando reconheceria a uma milha de distância aquelas costas e aquele penteado e aquelas curvas que se moviam sinuosas sobre o outro corpo. Era Giovani. E debaixo dele só podia ser Maitê, que Fernando identificou pela cor do vestido que se embrenhava com os lençóis. Mãos e cabelos para todos os lados. As unhas dela cravavam nas costas dele como se quisessem lhe arrancar o couro. As mãos dele ganhando o corpo dela com agilidade; o pescoço enterrado no dela de forma vampírica; os gemidos e sibilos se dissipando no ar, incompreensíveis. Os corpos se chocavam e enlaçavam: ele despido da cintura para cima, as roupas dela ainda intactas. A forma como ele se movia simulava o que eles decerto fariam dentro em breve. O cheiro da mistura das peles no ar imóvel do quarto fechado era de embrulhar o estômago.

Fernando não soube reagir. Com a mão na maçaneta da porta agora fechada, ele fitou inexpressivamente a brancura da parede do corredor e se teleportou para outra dimensão. Sentiu os acontecimentos dos últimos meses de sua vida serem reduzidos a uma insignificância microscópica. Foi tomado de um vazio abissal, que rapidamente começou a ser bombardeado por convicções irrefreáveis, sendo a mais forte delas a de que Giovani não poderia se importar menos. Transar com Maitê em cima da cama dele era a crueldade mais bárbara a que Giovani poderia submeter Fernando, e lá estava ele, fazendo exatamente isso.

Desconectado do tempo presente, tonto, surdo para qualquer som que não fosse o de seus pensamentos, Fernando voltou para trás de mãos vazias, apoiando-se nas paredes. Um morto-vivo, ou um vivo-morto. Seu rosto completamente sem expressão. Os amigos na sala o esperavam, mas nenhum deles pareceu perceber o vazio em seus olhos.

— Laura... Você sabe onde tem remédio? — ele se voltou à irmã. — No meu quarto não tem.

— Acho que no banheiro da mamãe tem.

A pergunta não foi para ele se orientar e ir procurar em outro lugar: foi para se livrar da tarefa. Laura só entendeu isso quando viu o irmão se afastar do grupo sem dizer mais nada. Fernando precisava sair dali, precisava estar o mais longe possível de Giovani; precisava ficar sozinho, mas todos os cantos da casa pareciam estar tomados. Por isso ele saiu. Foi para a porta de casa, onde havia dois convidados sentados, fumando, cruzou a trilha do jardim e começou a caminhar noite adentro. Sem rumo nem direção: seguiu o sentido da calçada sozinho, em silêncio, como um sonâmbulo. Quando estava quase alcançando a esquina, ouviu seu nome ser chamado, mas não olhou para trás.

— Fernando!

O segundo chamado foi mais alto, e desta vez veio acompanhado pelo som de passos se aproximando rapidamente, quase a galope; mas Fernando não olhou para trás. A única coisa que o parou foi a agarrada quase violenta pelos braços e a figura transtornada de Lorenzo a meio metro de distância.

— Cê tá louco, cara?! Já é quase uma da manhã, pra onde cê tá indo?!

Em um lapso de sanidade, Fernando olhou nos olhos penetrantemente azuis de Lorenzo, e Lorenzo o olhou de volta como o abismo de Nietzsche. As lágrimas estavam lá—aquelas lágrimas que se represaram por dias, semanas, pacientes, aquelas lágrimas que se recusaram a cair nas primeiras mágoas. Era disso que elas precisavam: da última gota que as faria transbordar. E assim elas começaram a cair, uma a uma, finalmente livres.

— Que foi, moleque?! O que aconteceu?! Por que cê tá chorando?!

Fernando não conseguiria responder sem perder completamente o controle de si mesmo, mas não foi preciso explicar para que Lorenzo entendesse. A quarenta ou cinquenta metros da casa do garoto, olhando para os lados, atordoado, Giovani os encontrava parados na calçada, iluminados pela luz fria de um poste. Quando Maitê surgiu logo atrás dele, de braços cruzados, perplexa com a agitação de Giovani, Lorenzo entendeu tudo.

— Puta que pariu...

A mão que ele levou ao ombro de Fernando foi o acionar do gatilho; o abraço que ele emendou foi o disparo fatal. Um pedaço de Fernando morreu naquela noite, nos braços de Lorenzo.

Ninguém se moveu; permaneceram os quatro bem onde estavam. Instantes depois veio Laura, também sem entender o que estava acontecendo, em direção ao irmão e Lorenzo. Ela queria explicações, Lorenzo disse que as daria depois. Pediu que Laura encerrasse a festa imediatamente, que Fernando estava passando mal e precisaria ir ao hospital. Foi a única desculpa que encontrou. Com toda a movimentação, Giovani começou a se aproximar do amigo, mas este avançou em direção a ele feito um felino em defesa do filhote. Você é um filho da puta, Giovani! Vai embora pra tua casa, agora! Passou pelos ouvidos de Fernando feito um sopro. Lorenzo logo voltou para o lado dele e o abraçou pelos ombros como se o protegesse do frio enquanto Laura tratava de dispensar os últimos convidados.

— Chora, man... Ele não merece, mas é a única coisa que alivia essa dor.

Ficaram uns bons vinte minutos ali sentados no meio fio enquanto a poeira baixava e Fernando desmoronava. Depois que Giovani foi embora, voltaram para dentro da casa, que ainda não estava de todo vazia. Lorenzo e a irmã o guiaram para o próprio quarto, mas Fernando se negou e se agitou como se estivesse a caminho da forca. Confuso, Lorenzo entrou no cômodo; ao acender a luz, encontrou tudo na mais perfeita ordem, menos a cama, a última peça do quebra-cabeça: era ali onde Giovani e Maitê estavam depois que sumiram da festa.

Fernando dormiu no quarto da irmã. Uma das únicas coisas que verbalizou foi que queria ficar sozinho, e ela, mesmo ainda sem entender o que estava acontecendo ao certo, acatou o pedido e o deixou a sós, à porta fechada, para ele poder acabar de chorar o que faltava, até apagar e acordar horas depois com a bexiga cheia e a claridade da manhã entrando pela janela.

Ao se levantar para ir ao banheiro, anestesiado, com o rosto ressecado pelas lágrimas salgadas, Fernando encontrou a casa de pernas para o ar, mergulhada em um silêncio absoluto. Na sala, Lorenzo dormia no sofá; no quarto dos pais, Laura. A porta do próprio quarto estava fechada. Sonolento, voltando à realidade brevemente interrompida pelo cochilo da madrugada, Fernando caminhou até a porta e a abriu, encontrando tudo como estava quando flagrou Giovani e Maitê ali. O nó começou a se formar na garganta outra vez, acompanhado de um calor estranho no peito. Sem dar vazão a essas sensações e tentando não pensar em nada, Fernando foi ao banheiro esvaziar a bexiga e se deitou de novo, desta vez em sua cama, em um ato consciente de miséria e autopunição. Naquele lençol jazia o que restou de um Giovani que Fernando gostaria de esquecer, mas ainda não sabia como. O cheiro dele estava lá, difuso, misturado ao de outro corpo, mas presente, marcante o bastante para se distinguir com clareza. Fernando respirou fundo. Agarrou-se no travesseiro e fechou os olhos para tentar voltar a dormir antes que a tristeza o ganhasse.

Quando acordou novamente, já era dia. O sol estava alto no céu e começava a deixar o quarto quente demais. Era hora de levantar. Depois de sua higiene matinal, de se olhar no espelho e se sentir o último homem da Terra, de pensar quão incrivelmente patético foi o final da noite anterior e quão incrivelmente patético seria o início deste novo dia, Fernando saiu do quarto e encontrou Laura e Lorenzo na cozinha arrumando a mesa do café. O relógio da parede indicava dez e meia da manhã.

Trocaram olhares silenciosos. Laura desejou um bom dia para tentar quebrar o gelo e estabelecer o primeiro contato; Lorenzo não disse nada. Fernando a respondeu no piloto automático e se juntou a eles sem encará-los. Sentou-se ao lado de Lorenzo, de frente para a irmã, que perguntou:

— Cê tá melhor?

A resposta era não, e o silêncio de Fernando se fez entender. Conhecendo o irmão melhor do que ninguém, Laura prosseguiu:

— O Lorenzo me contou mais ou menos o que aconteceu... Se você quiser conversar, você sabe que pode contar comigo pra tudo.

— Comigo também... — Lorenzo emendou.

Fernando queria abraçá-los e agradecê-los pela solidariedade, mas, se fizesse isso, voltaria a chorar em um segundo. Balançou a cabeça afirmativamente e lutou contra o maldito nó na garganta, outra vez. Pegou um pedaço de pão sobre a mesa e se serviu de café com leite para manter a boca ocupada.

— O papai e a mamãe voltam amanhã... — Laura disse. — O Lorenzo sugeriu: será que não seria uma boa ideia você ficar um ou dois dias na casa dele pra eles não te verem assim? Porque não vai dar pra explicar sem... você sabe... inventar uma mentira ou... falar o que aconteceu.

— Minha mãe te ama, ela vai adorar você ficar lá em casa.

Fernando nem processou a ideia. O que Laura disse queimou em seus ouvidos feito brasa. Era isso. Aquele pavor apocalíptico que o moveu a aceitar a chantagem de Giovani meses atrás, o sétimo sentido bradando que ele não devia se assumir gay para os pais, que isso traria consequências que ele sequer conseguiria calcular. Isso, era isso, uma bomba-relógio que Laura acabava de colocar em cima da mesa, mas, agora, estava a ponto de explodir. O tempo acabou, não dava mais para se esconder.

— Eu vou falar com eles.

A irmã e o amigo o olharam com a gravidade que a afirmação invocava.

— Fernando... Tem certeza? Você não precisa fazer isso agora. A mamãe não me preocupa, mas o papai...

— Já falei — Lorenzo reiterou —, se precisar ficar lá em casa, tá tranquilo.

— Não. Não quero esbarrar no Giovani.

— Pensa bem, Fê...

Ele pensou. O que Fernando mais fez naqueles dias foi pensar. Ignorando a sugestão da irmã e de Lorenzo, ele não foi passar o restante do final de semana na casa de ninguém. Ficou quieto no próprio quarto, isolado, em silêncio, pensando, pensando. Ao contrário de quando se afastaram da última vez, Giovani tentou fazer contato. Inúmeras vezes, por todos os meios. Só não foi à casa de Fernando pessoalmente porque Lorenzo não deixou. Tentou por três dias, desistiu no quarto. Fernando ainda não estava pronto para fazer o que era preciso. Tinha que se afastar para se curar primeiro, pois sabia que logo voltaria a se machucar.

No Santa Luz, a desculpa que deu para os amigos foi problemas em casa. Mesmo depois de tudo por que passaram juntos—ou talvez por causa do que passaram juntos—, Fernando decidiu não compartilhar seu segredo com ninguém. Guardaria sua dor e sua humilhação para si, assim como guardou os momentos de ternura: Giovani nunca foi seu, mas aqueles sentimentos eram, todos eles, intransferivelmente seus.

Lorenzo ficou em uma situação delicada, fazendo o intermédio dos dois lados. Tinha que engolir a língua e cerrar os dentes para não trazer nenhuma informação, nenhum recado, nenhum parecer sobre Giovani, uma vez que Fernando estava determinado a não saber nada sobre ele para não nublar seu julgamento nem confundir seus sentimentos. A companhia silenciosa de Lorenzo era, assim, um bálsamo que representava a ilusão do Giovani que morreu em Fernando.

Na semana seguinte, ele tomou coragem para encerrar o assunto de uma vez por todas. Sem dizer nada a ninguém, foi ao encontro de Giovani na troca de aulas depois do almoço, sabendo exatamente onde ele estaria: no corredor de armários, pegando o material para a aula de Matemática. Ele estava desacompanhado, de costas, desatento quando se virou e se deparou com Fernando à sua frente. Seus olhos se arregalaram de susto e temor; os de Fernando estavam vazios.

— Ei...

Ele não parecia bem. O cumprimento ficou sem resposta, os olhares eram igualmente frios, mas Fernando poderia jurar que existia uma chama, ou ao menos uma fagulha de esperança no de Giovani; uma esperança de que algo bom sairia daquela conversa, como sempre, em todas as outras. Mas ele estava enganado.

— Você tem alguma coisa pra me dizer? — Fernando perguntou com a mais aterrorizante neutralidade.

Giovani agarrou uma alça da mochila e desviou o olhar, procurando nos lados, no chão, nos armários da frente, no vazio, procurando algo que pudesse falar para amenizar a encrenca em que sabia que se meteu.

— Olha... Não aconteceu nada aquela noite, Fê.

— Não me chama de Fê.

— Eu... Eu tinha bebido um pouco... e...

— Não mente, Giovani.

Ele respirava pesado. Não tinha argumentos, não tinha um álibi, estava encurralado na própria insensatez e agora não conseguia encontrar uma forma de se livrar da armadilha.

— Qual é, Fernando, não foi grande coisa — foi a primeira resposta que veio à cabeça; e a última que deveria ter dado.

— Você prestes a transar com a Maitê em cima da minha cama depois de tudo que você me disse aquela noite não foi grande coisa, é isso?

— Tá bom, foi mau, eu não devia ter ido pro seu quarto.

— "Foi mau"?

— Fernando, olha... — Giovani ajeitou a mochila nos ombros e deu um passo em direção ao corredor. — Eu errei, admito, mas o que tá feito tá feito, não tem como eu voltar atrás. Eu te liguei e mandei mensagem pra te explicar o que aconteceu, mas tô vendo que não ia adiantar de nada, mesmo. Então... Eu não sei o que você quer de mim.

Distância. Fernando pensou, mas não disse. Giovani estava pronto para encerrar a conversa tentando se tornar protagonista e vítima do que aconteceu. Alimentar a discussão só serviria para dar a ele mais palco e correr o risco de ser deixado levar pela vontade avassaladora de que tudo aquilo tivesse sido um delírio e que ele sem dúvidas tinha uma justificativa plausível que o isentaria de toda culpa. Mas Fernando não podia correr o risco, não podia se deixar levar. Não mais.

O que ele fez foi virar as costas e seguir para a aula.

E aquela foi a última vez que conversou com Giovani.

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With You By mie

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[CONCLUÍDA][ AU !- Isak Valtersen e Even Næsheim]. cu.ra. (sf): restabelecimento de saúde. exemplos de cura: Após Even ser atropelado por um carro...