A Ordem: O Círculo das Armas

By TattahNascimento

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A Ordem é uma irmandade milenar, cujo objetivo é oferecer conforto, cura e proteção as pessoas. Seus membros... More

Prólogo
A Ordem
A Lenda
A Hospitalidade
A Mão Assassina
A Família
O Guerreiro dos Mares
Uma Marca de Morte
Um Amuleto de Sangue
Nebulare
Analyn
Auriva
Maxine
Florinae
Vermelho
Castir
Zarif
Azul como o mar
O palácio do sul
Flyn
Manir
Sangue Deminara
Lunar
O círculo
Ishtar
Fios de luz e união
Dashtru
Naria
Assassino
Laio
Valesol
Sob a luz do luar
Traiçoeiro
O poder de um Castir
Sombras
Reencontro
Bórian
Érion
Colina Merida
Em meio à tempestade
O sinal verde
Lâminas de Ar
Adeus
Depois da tempestade
Portões Abertos
Mirides
Nikal
Zefir
Firense
A cor do círculo protetor
O inimigo é a Ordem
Sobre mentiras e traições
Branco e Vermelho
Spectu to Castir
O círculo do fogo
Caixão de Ar
A voz da terra - [FINAL]

Tucsianas

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By TattahNascimento


*

Fantin desviou de um galho baixo e, gentilmente, afastou um cipó para que Tamar passasse. Vez ou outra, a mestra loira lançava olhares desconfiados para o caminho que deixavam para trás, depois retornava a atenção para a trilha e as costas de Voltruf, que as guiava.

— Algum problema? — Fantin perguntou para a companheira e apreciou o arquear da sobrancelha castanha.

Os gestos de Tamar, por mais simplórios que fossem, eram carregados de charme. Se Fantin comentasse isso com alguém, certamente ouviria que o amor a fazia vê-la dessa forma. Mas não era verdade. Muito antes de render-se ao amor pela bibliotecária da Ordem, havia notado a delicadeza de seus gestos. Encantavam, mesmo que Tamar fosse alheia a esse poder.

— É engraçado, o céu está claro e o calor é intenso, mas sinto como se estivesse em um dia de chuva.

Fantin jogou os cabelos sobre os ombros, irritada com a trança que se desfazia. Retirou uma folha, que se prendeu aos fios.

— Agora que comentou, tenho a mesma sensação.

Voltruf diminuiu os passos. Fitou as duas por cima do ombro e disse:

— Deve estar chovendo onde as suas irmãs de círculo estão. Vocês ainda não estão habituadas ao laço que as une, então isso deve estar inconstante... Não posso afirmar com certeza, pois nunca vivenciei a experiência que estão tendo. Nosso circulo jamais se concretizou.

Deu um saltinho para ultrapassar uma raiz mais elevada no caminho.

— Você culpa Virnan por isso, não é mesmo? — Tamar indagou.

O espírito lhe estendeu a mão para ajudá-la a subir na raiz, fez o mesmo com Fantin e então prosseguiu. A resposta veio após algum tempo de silêncio, em que ela se dedicou a analisar o caminho. Não era de seu hábito percorrer aquela parte da floresta em volta da cidade, embora a conhecesse tão bem quanto a si mesma.

— Por algum tempo, a culpei. Todos culpamos. — Admitiu.

Uma brisa suave balançou os galhos das árvores em volta e bagunçou seus cabelos, fazendo-a lamentar a morte por um breve momento. Enquanto estivesse dentro do círculo que protegia Flyn, sentiria o vento e outra infinidade de coisas como se ainda estivesse viva, mas nada daquilo era como se recordava. Parecia-lhe suave demais, sem graça.

— Mas hoje penso diferente e sei que também é assim com Joran e Bórian. Virnan tem culpa, sim, mas nós também temos. — Encolheu os ombros. — De qualquer forma, é passado. E de nada irá adiantar nos apegarmos a ele.

Seu tom de voz era cadenciado, tranquilo, como se tivesse refletido um longo tempo sobre este assunto. De fato, tinha mesmo. Sempre que as noites de lua cheia chegavam e ia até a "prisão" de Virnan, quedava-se em discussões internas.

— Você se arrepende de nunca ter aberto o seu coração para ela.

Voltruf se voltou para Tamar e a encontrou com um olhar gentil e compreensivo. Fantin, por outro lado, parecia confusa com a afirmação e decidiu-se pelo silêncio. O espírito da Castir a desagradava. Aliás, todos os espíritos castir lhe causavam essa impressão.

— Nós vivenciamos e compartilhamos nossas experiências passadas no Círculo Castir. É verdade que essas lembranças se foram assim que ele foi encerrado, mas cada uma de nós guardou algo delas. Eu, por exemplo, não consegui esquecer a forma como você e Virnan brigavam, nem como ela se sentia ao encontrar o seu olhar. — Tamar explicou.

Nária sorriu, dando de ombros enquanto o vento soprava seus cabelos para o rosto.

— Não tenho mais arrependimentos, Mestra Tamar. Nem sempre é possível realizar o desejo de nossos corações. Mas, de certa forma, eu realizei o meu após a morte, mesmo que três mil anos tenham se passado até que pude fazê-lo. — Sorriu um pouco mais. — Nem por isso, deixo de me perguntar se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse falado que a amava e engolido meu orgulho e preconceito. Será que teria conseguido fazer os olhos dela brilharem, como acontece quando ela está com Marie?

O sorriso desvaneceu. Ela ajeitou os cabelos e voltou ao caminho, complementando:

— A resposta que obtenho dessas indagações é sempre a mesma: "Não". Algumas coisas, simplesmente não devem acontecer.

Percorreram mais uma centena de metros, entregues a um novo silêncio. Fantin avaliou o que tinha acabado de ouvir com um sorriso zombeteiro, que tratou de esconder de Tamar. Com efeito, Virnan teve uma vida "amorosa", se é que poderia denominar assim, agitada. Não recordava muito do que viu durante o ritual, mas pouco lhe importava. Fato era que, agora, só Marie interessava a ela.

Voltou a se concentrar no que realmente a perturbava no momento. Cerrou os punhos e as argolas douradas surgiram em volta deles. Girou sobre os calcanhares em um movimento ligeiro e golpeou o ar, os galhos de uma árvore se agitaram, folhas esvoaçaram e um homem caiu de encontro ao chão. Teria se machucado feio, se Voltruf não usasse magia para protegê-lo e depositá-lo no chão com cuidado. Ele estava semiconsciente. Era, sem dúvidas, um auriva. A mestra correu em direção a ele, pronta para lutar se fosse necessário, mas o espírito da castir a chamou, fazendo um gesto de "pare".

— Está tudo bem. — Ela disse. — Não precisa se preocupar. Eles são protetores. Nos seguem desde que adentramos na floresta. E estão sob as ordens de Laio.

Fantin a mirou, claramente desconfiada. O homem aos seus pés sentou, pousando a mão na cabeça. Ele a balançou um par de vezes e enxugou o sangue que escorria de um arranhão na testa.

— Está bem? — Tamar perguntou a ele, que balançou a cabeça positivamente.

De trás de um arbusto, outro homem surgiu. Ele fez uma reverência breve e pediu desculpas pela confusão. Ajudou o companheiro a ficar de pé e retornou para o esconderijo. Só então, Fantin liberou a magia e as argolas desapareceram.

— Estou surpresa que você tenha conseguido percebê-los. Os manir tendem a ser silenciosos como felinos. — Disse Voltruf, sentando uma mão na cintura. — Hmm... Talvez seja uma habilidade passada através do laço com Virnan.

Tamar abanou a mão, rejeitando a ideia.

— Fantin sempre teve um bom senso de perigo, se é que posso chamar assim.

O espírito percorreu a figura da mestra loira, curiosa. Acabou por aceitar a afirmação de Tamar e retornou para o caminho, pensativa. Algum tempo depois, elas alcançaram uma clareira. Laio as aguardava ao lado do espírito Maxine. Tanto Voltruf, quanto ela, o acompanharam na missão para reaver as armas tucsianas. Por segurança, decidiram entregá-las ali, longe de olhos e ouvidos inimigos. Por esta razão, ele enviou protetores para acompanhá-las.

As três mulheres se aproximaram do centro da clareira, sob o peso do olhar verde e gélido do auriva. Fantin o cumprimentou com um aceno e apresentou Tamar como uma companheira de círculo.

— Onde está Virnan? — Ele indagou, e olhou para as mestras, desconfiado, enquanto elas explicavam a ausência da guardiã. Por fim, deu de ombros.

A sobrinha era ainda mais desconfiada que ele e se tinha apreço por aquelas duas ao ponto de formar um círculo com elas, não precisaria se perder em conjecturas desnecessárias.

— Típico daquela pequena daihu! — Exclamou, estalando a língua.

— Esse apelido realmente combina com ela — disse Tamar, revelando que compreendia o significado da palavra, com a qual se deparou em pergaminhos antigos, ainda na Ordem.

Ela explicou para a esposa:

— Significa tempestade.

— Encaixa como uma luva. — Fantin concordou.

Enquanto conversavam, Laio se mantinha atento à floresta e assim que recebeu os sinais dos protetores escondidos nela, que indicavam estarem seguros, ele retirou o saco, que mantinha preso às costas. Cuidadoso, retirou dele três armas e as depositou no chão, sobre o saco.

— E agora? — Perguntou.

As ordenadas admiraram a beleza dos objetos. Os detalhes rebuscados, os símbolos e as pedras tucsias que as adornavam e forneciam poder. Tamar se agachou, passou a mão sobre elas, mas sem tocá-las. Ergueu o olhar para Voltruf.

— Água. É o elemento com o qual sua magia tem mais afinidade, certo? — A mulher confirmou. — Maleável. Então, suponho que esta aqui lhe pertencia.

Pegou o chicote. Era uma arma, ligeiramente estranha, pois a empunhadura ficava no centro. Se fosse rígida, poderia ser encarada como um cajado. Tamar analisou-a com apuro e descobriu que a empunhadura dobrava-se e tornava-o semelhante aos chicotes comuns.

— É uma arma poderosa e é uma pena que somente Virnan seja capaz de usá-la, agora. — Voltruf explicou. — Castanes, apesar de possuírem magia espiritual, não conseguem se ligar às tucsianas. Com efeito, podem usá-las, mas seu poder não chegaria à metade de um quarto do total. Mesmo assim, é certo que poderão recriar o Círculo de Armas que fizemos no passado e, desta vez, pôr um fim aos planos de Érion.

A mestra dos escritos sorriu de lado, acariciando a arma com evidente respeito. Sussurrou:

— Aquamare.

Imediatamente, a arma começou a brilhar. Fios de luz mágicos saíram dela e envolveram o braço de Tamar, penetrando sua carne. A mestra a segurou firme, sentindo a magia lhe invadir e tomar conta de todo o seu ser. Sabia que não devia lutar contra ela, apesar de que sentia desconforto diante daquela invasão, mas Virnan a avisou que isso aconteceria, então pôde se preparar espiritual e mentalmente.

— I-impossível! — Voltruf gaguejou.

Suor brotava da testa de Tamar quando sua ligação com a tucsia se estabeleceu. Ela sorriu com um toque de ironia, um gesto que lhe era raro, mas bonito. Olhava para o chicote, enquanto falava:

— Nunca lhe passou pela mente que o fato de termos conseguido fazer um círculo e um juramento com Virnan, implica que nossa magia espiritual é poderosa? Com certeza, não é forte como a dela, mas é poderosa o suficiente para realizar essas coisas.

Naria Voltruf estalou a língua, fechando o semblante.

— Mesmo assim... — cruzou os braços, tentando entender o significado daquilo e resvalou o olhar para a mestra de tez alva e cabelos castanhos.

Ela tinha um rosto bonito e um sorriso agradável, mas aparentava não se dar conta da beleza que possuía. Era tímida, silenciosa. Em contrapartida, toda essa inibição lhe abandonava quando revelava seu conhecimento. Nesses momentos, tornava-se ainda mais agradável aos olhos; chegava a ser hipnotizante.

A observou bem, desde que chegou à Flyn. Aliás, tratou de observar com apuro todos os companheiros de Virnan. Mesmo morta, não estava disposta a permitir que aquela gente trouxesse mais perigo para o seu povo. Rugas discretas se formaram em volta dos olhos de Tamar quando ela exibiu um semblante risonho. Algo nele assentou, na falecida castir, a certeza de que ela estava escondendo algo.

A mestra dos escritos agitou o braço e o chicote se lançou no ar. Retalhando uma árvore que estava uma dezena de metros à frente.

— Isso é incrível — disse, apreciando o poder que lhe percorria o corpo.

Voltruf fez uma careta, irritada por não conseguir alcançar as respostas que desejava.

— É uma boa companheira — declarou, com uma nota de tristeza. — Maleável como a água, suave. Mas também pode ser rígida, inflexível. Você poderá moldá-la à sua vontade. Me atrevo a dizer que é a mais poderosa entre as armas castir. — Aproximou-se, os olhos fixos nos da ordenada. — Imagine ela como se fosse uma haste.

Tamar obedeceu e a arma reagiu à sua vontade, tornando-se rígida. Parecia um dardo com duas pontas afiadas. A satisfação tomou seu rosto e brandiu a tucsiana com movimentos cadenciados e precisos.

— Você é ágil e movimenta-se bem. — Laio observou.

— Achei que fossem curandeiras nessa tal Ordem a qual pertencem — Voltruf colocou, surpresa com as habilidades da bibliotecária.

— É o que somos. — Fantin afirmou. — Mas como estamos sempre indo a lugares perigosos, todos temos de aprender a lutar. Não como os guardiões, mas aprendemos o básico de um combate para sermos capazes de nos defender, caso não haja um guardião por perto.

— Além disso, as artes de luta são um bom meio de fortalecer o corpo para a prática da magia curativa, que nos exige demasiado. Ao menos três vezes por semana pratico no salão de armas. Fantin faz o mesmo, assim como a maioria dos mestres do círculo da sabedoria. — Tamar emendou.

— O que acha da grã-mestra? — Fantin perguntou, de repente.

— Uma senhora gentil?! — Voltruf perguntou.

As duas ordenadas gargalharam e Maxine saiu de seu silêncio para dizer:

— Certamente, Melina é assim, mas não se engane. Há muita força nela e um lado agressivo, também.

Um inclinar de cabeça foi a resposta positiva de Tamar e a esposa continuou:

— Muito antes de ser a grã-mestra, ela passou por todos os círculos da Ordem e também foi uma guardiã. Não alcancei esse estágio da vida dela, mas ouvi muito sobre suas habilidades, dos guardiões e mestres mais velhos. Nunca a vi pegar uma arma antes da viagem que nos trouxe até aqui, mas enquanto estivemos sob sua tutela, ela nos incutiu o hábito do exercício e, assim, nos transformou em magas melhores. Apesar da idade avançada, a grã-mestra ainda é capaz de despender uma grande quantidade de magia sem se exaurir. — Baixou a vista para as armas que restaram sobre o tecido, encerrando a explicação.

Estava claro para Voltruf, que ainda tinha muito o que aprender sobre aquelas mulheres. A percepção disso a instigava ao mesmo tempo que lhe causava alguma irritação.

— Estas são lanças de arremesso. — Ela explicou para Fantin.

Apontou, com o pé, para um par de hastes com ponta metálica.

— Mas elas se encaixam e tornam-se uma lança longa. Dependendo de quem as empunhar, podem vir a se modificar e tornarem-se uma alabarda. Era a arma de Joran.

Mirou a outra arma e, desta vez, usou a mão para demonstrá-la.

— O arco nunca foi usado no Círculo do Trovão. — Ergueu a vista para Fantin, curiosa com a seriedade que demonstrava. — Você tem uma forte afinidade com o ar, até está usando a outra metade da adaga de Virnan, então o arco é seu.

Os cantos da boca de Fantin se deformaram, levemente. Ela se agachou e apanhou as lanças de arremesso. Girou-as nas mãos com movimentos fluidos. Parou, encarou-as, se acostumando com o peso delas, e tornou a movimentar-se.

Parou novamente, com jeito risonho.

— Desculpe decepcioná-la, mas sempre fui uma péssima arqueira. O arco exige paciência e um olhar acurado. Entretanto, a minha natureza brusca, me faz apreciar o combate direto. Além disso, essas armas exigem força para o lançamento e eu tenho isso de sobra, além de um "pouco" de ar para impulsioná-las. É claro, nenhuma de nós pretende tirar vidas. Isso vai contra os nossos votos, mas nada nos impede de agir em nossa defesa e a de outros. Mesmo que, para isso, tenhamos que machucar alguém. — Sorriu para Tamar. — Qual é a palavra, amor?

Um leve rubor tomou a face da bibliotecária. Fantin só costumava chamá-la daquela forma carinhosa quando estavam à sós. Limpou a garganta antes de responder, ligeiramente irritada porque a esposa divertia-se com seu constrangimento.

— Arare.

Fantin a pronunciou devagar e com evidente respeito. Como ocorreu à Tamar, a arma brilhou e fios de luz se desprenderam dela e invadiram seu corpo, conectando-se à sua magia.

— Incrível! — Ela sussurrou, quando o processo terminou.

Um sorriso delineava sua boca, mas logo desvaneceu, assim como o de Tamar. Seus olhares se cruzaram.

— Algo está errado. — Tamar sonorizou, sentindo uma onda de apreensão invadi-la.

Laio quis saber ao que se referia.

— O laço que nos une... Sinto uma agitação crescente. Não vem apenas de uma delas, mas de todas. — Explicou, e Fantin arrematou:

— Algo está acontecendo em Valesol. Há perigo por lá.

**

Houve um momento de confusão entre os nobres. Muitas vozes exaltadas se elevaram, muitos questionamentos foram feitos e a discussão teria se estendido para uma briga, se Emya não tivesse entrado em ação. A princesa usou de uma boa quantidade de sangue frio para impor sua vontade sobre eles.

No fim, ninguém estava disposto a deixar que a fortaleza de Valesol se tornasse seu túmulo, fosse verdade o poder dos inimigos que se aproximavam ou não. Então, quando o comandante oficial de Valesol irrompeu no salão acompanhado pelos soldados mais habilidosos de que dispunha, eles o acompanharam sem reclamar.

— Anton, mais alguém de seu grupo usa magia? — Virnan quis saber, assim que o salão esvaziou.

O mago se endireitou sobre o assento que ocupava.

— Apenas Jeil. — Indicou o companheiro com o olhar.

Ela balançou a cabeça, ponderando. Marie quase podia ver os pensamentos que se desenrolavam em sua mente, velozes e traiçoeiros. Depois do Círculo Castir, sabia bem como Virnan pensava estratégicamente, ainda que não conseguisse alcançar a sua capacidade fora daquele ritual.

— Senhores, sei que precisam retornar para o seu povo, mas apreciaria se considerassem ficar e lutar ao meu lado. Lorde Axen... Desculpem, creio que ele nunca mereceu ser chamado assim, fez atrocidades com seu povo. Os inimigos que se aproximam são o grupamento que o acompanhava e agora sei que ele fez desses homens e mulheres, monstros como ele.

Os manir se entreolharam combinando a resposta que dariam, mas ela continuou:

— Acredito que o mesmo acontece com a outra metade do exército axeano que percorre as terras de Caeles em direção à Flyn.

Desta vez, o incômodo deles foi perceptível.

— São milhares de homens! — Miqueias observou.

— São milhares de monstros. São coisas que não deveriam existir neste mundo. — Ela fez uma careta e encolheu os ombros. O vento entrou forte pela janela, atirando os cabelos negros em sua face.

— Se são tão poderosos, não temos a menor chance — o homem continuou. — O que Lorde Axen fez conosco...

Virnan o cortou, ríspida.

— É um direito seu escolher as batalhas que quer lutar. — Encarou os outros. — Esta é a opinião dos demais?

O silêncio quedou entre eles, entretanto Anton ficou de pé e fez uma mesura para ela.

— Fui enganado pelas palavras de Lorde Axen e cometi atrocidades contra meu povo e outros também. Desejo me redimir. E espero que me permita fazê-lo ao seu lado, Domna.

Ela inclinou a cabeça, satisfeita por não tê-lo matado naquela estrada. Na realidade, isso foi decisão do destino ou a mais pura sorte. Quando lhe atirou aquela espada, mirou o coração, mas por um movimento brusco dele ou do cavalo, acabou lhe acertando apenas o ombro.

— Eu ficarei também — Miqueias declarou, após um momento de profunda análise. Estava apavorado, mas não vestiria a carapuça de covarde.

Após ele, os outros se manifestaram a favor de ficarem e ajudar. Quando o comandante Guil retornou ao salão, eles o seguiram para fora dele, a fim de organizarem uma estratégia de defesa.

— Estaremos à sua espera. — Jeil disse para Virnan antes de cerrar a porta atrás de si.

De pé, diante da mesa vazia, Emya assistiu Virnan encarar as mãos por algum tempo e só erguer o olhar quando Marie as cobriu com as suas. Independentemente, do que achava da florinae e da leve desconfiança que mantinha sobre ela, era impossível não perceber o sentimento que ela dedicava a sua irmã e vice-versa. A dureza do olhar dela desaparecia sempre que encontrava o de Marie. A impressão que tinha era de que se tornava outra pessoa.

— Talvez queira se acalmar um pouco, antes de se meter em confusão. — Disse a mestra, aproveitando o fato de que Melina continuava mantendo sua aura mágica expandida.

Reconhecia naquele semblante atormentado, a raiva que dominava a esposa. Depois do Círculo Castir, aprendera muito sobre a forma como Virnan encarava a vida e suas responsabilidades. Ainda que gostasse de dizer que não havia espaço para culpas em sua vida, ela se rendia a elas com frequência. Mas era certo que a raiva que tomava seu semblante naquele momento, era dedicada ao irmão caçula.

— Parece que você está sempre se jogando em lutas insanas, enquanto meu coração encolhe no peito pelo medo de perdê-la. — Concluiu.

— Vai ficar tudo bem. — Virnan forçou um sorriso.

— É claro que vai. Irei me encarregar disso. Desta vez, farei esse voto valer. Não irei a lugar algum sem você e não permitirei que saia desses muros sem mim.

A esposa se empertigou.

— Não é hora para isso, Marie.

— Ora, não me venha com essa conversa fiada! Acaso somos necessárias apenas para fazer aquele círculo idiota?! Se é assim, então de que vale isto? — Apontou para a tatuagem do círculo no punho. — É pra sempre não é? Seu destino, nosso destino. Então, pare de agir como se fôssemos de vidro!

A risada de Bórian resfriou o humor inflamado de Marie. Ele fez um gesto afetado, dizendo:

— Me desculpem! Mas creio que esta seja a primeira vez que vejo essa auriva ficar sem graça. Agora penso que valeu à pena ter ficado preso neste mundo após a morte. — Sorriu mais, ao se deparar com o olhar assassino de Virnan. — Por favor, continuem.

— Você passou os últimos 20 anos esperando a morte através de um sacrifício, acaba de escapar a esse destino e já está planejando correr em direção a ele de novo?! — Emya abandonou o silêncio.

A raiva e o medo vibravam a cada palavra pronunciada e Marie obrigou-se a não dar uma resposta acalorada.

— Sinto muito. — Disse. — Mas quero que entenda uma coisa, Em. Irei aonde ela for, farei o que ela fizer. Assim como ela quer me proteger, eu quero protegê-la. Eu a amo!

Encarou o verde precioso nos olhos de Virnan, falava para ela:

— E o que sinto é tão grande que nem sei se é possível definir direito. Acho que "eu te amo" é uma frase pobre demais par medir esse sentimento.

Voltou-se para a irmã, novamente:

— Mas independentemente disso, nossa tia, eu e outras amigas, fizemos um juramento com Virnan. Não fomos forçadas, não nos obrigamos. Nós escolhemos. O destino dela é o nosso e isso implica que não podemos fugir dessas criaturas, dessa guerra. É o dever dela impedi-los, é o nosso ajudá-la.

Fez uma pausa, acalmando-se.

— Sei que está preocupada, mas assim como você tem responsabilidades para com Midiane, as minhas aumentaram. Agora são para com este mundo. E eu quero cuidá-lo, para ter um momento de paz ao lado das pessoas que amo. Para um dia poder reencontrar nosso pai, conhecer meus sobrinhos e ver o meu povo novamente.

Esperou que a irmã retrucasse, mas ela baixou a vista e rendeu-se a um silêncio que misturava mágoa e admiração. Virnan soprou o ar. Marie estava certa. Não podia protegê-la e as amigas sempre. Haviam feito um voto e elas também assumiram suas responsabilidades para com aquele mundo. Então, não podia lhes poupar da tarefa. Fez um carinho no braço da mestra e retirou o machado, que estava preso às costas. O entregou a ela.

— Bórian. — Chamou.

O espírito se aproximou delas, lançando um olhar intenso para a antiga companheira.

— Vai funcionar — ela respondeu a pergunta silenciosa que leu no semblante dele.

— Ela é apenas uma castane. Ser uma amitsha não faz dela dona da força adequada para controlar uma tucsiana!

— Não me arraste para uma discussão que não quero ter neste momento. Já basta a maldita confusão em que estamos. Essa merda é como um buraco sem fundo. Sempre que achamos que vamos ter um momento de sossego, algo acontece. — Virnan passou a mão no rosto, irritada. — Marie pode usar uma tucsiana como um castir, todas elas podem.

Ceticismo tomou forma no rosto dele.

— Bobagem!

Ela lançou um olhar para além da janela, inspirou fundo. Não queria mesmo falar daquilo, ainda mais quando não tinham tempo para conversas. Passou a mão no rosto de novo.

— Só diga a palavra e ajude-a, depois explico os motivos.

Insatisfeito com a resposta, ele se voltou para Marie.

— Teranai. Repita.

A mestra o obedeceu. Imediatamente, o machado emanou um brilho intenso. Marie o segurou firme com as duas mãos. Uma energia poderosa percorria seu corpo. Era devastadora, assustadora, mas também era carinhosa.

— Não lute contra ela. — Bórian advertiu.

A mestra não tinha a menor intenção de fazê-lo. Aquela energia era como a que percorreu Virnan no dia em que ela recebeu a sua adaga; momento que ela assistiu em seus sonhos e que também compartilhou a experiência durante o Círculo no Salão Lunar. A luz a envolveu completamente e todos recuaram um passo. Quando desapareceu, Marie deu-se conta de que segurava duas machadinhas.

— Mas como?! — Melina indagou.

— Teranai, significa Terra na língua enaem. — Virnan explicou. — Uma tucsiana precisa reconhecer a magia do seu novo dono para se adequar a ele. O machado era uma arma que Bórian empunhava com destreza, graças a sua força física. Entretanto, Marie não é tão forte e a tucsiana mudou sua forma para se ajustar a isso.

— É como se ela estivesse falando comigo! — Marrie comentou.

— De certo modo, é isso que elas fazem. Ligam-se à nossa magia e a mantém em equilíbrio.

— Nos oferecem muito mais que isso, mas não é o momento para esta conversa. Ela será uma companheira fiel — Virnan garantiu.

Bórian parecia transtornado ao vê-la segurar a tucsiana com tanta intimidade. Não conseguia digerir o fato de que, no passado, tinha ceifado a magia de centenas de amitshas com aquela arma e, agora, uma delas a empunhava.

A porta do salão se abriu para dar passagem ao comandante Guil. O homem estava completamente ensopado e e sujo de lama. No rosto, uma expressão perturbada.

— Temos um problema. Os túneis abaixo da fortaleza, por onde deveríamos fugir, desmoronaram com a chuva forte.

A Castir fez uma careta.

— Desgraça pouca é bobagem! — Rosnou.

***

Zarif estava recostado a uma árvore, na forma humana. O olhar acurado analisava a fortaleza ao longe. Apesar da escuridão que se adensava, graças as nuvens negras e a chuva forte, conseguia enxergar a movimentação nas muralhas.

— Aparentemente, o olfato dela ainda é bom. — Resmungou e trouxe a atenção para as feições maliciosas de Ishtar. — E você ainda a segue por aí, como se fosse um cão. Algumas coisas não mudam, afinal.

O espírito havia se materializado ao seu lado instantes antes, lhe causando uma ligeira surpresa. Afinal, não o via há alguns milênios.

— Continua chegando atrasado. — Zarif prosseguiu, debochado. — Mas, ao que parece, você não terá uma terceira oportunidade de fazer um pacto com ela.

Os olhos multicoloridos de Ishtar piscaram um par de vezes, na mesma velocidade que o sorriso acintoso rasgou seus lábios e mostrou os dentes pontiagudos.

— Não a sigo porque quero um pacto. A sigo porque ela é como uma adorável e devastadora tempestade. — Fez um gesto que abrangia àquela que caía sobre eles. — Destrói tudo em seu caminho, mas até mesmo as tormentas deixam coisas boas à sua passagem. Molham a terra, preenchem os lagos, trazem as sementes. Assistir a isso me apraz.

A resposta irritou Zarif.

— O que você quer de mim, Espírito da Tempestade?

Ishtar sussurrou:

— Apenas vim cumprimentar um velho "amigo". Mas agora, me pergunto o que fará. Você sempre esteve ao lado dela em momentos como este. Mas até mesmo uma castir poderosa, como ela, não conseguiria enfrentar tantos demônios. O que pretende fazer?

— Só vim para assistir e levar o prêmio para o meu senhor.

Ishtar riu.

— Você o chama de "senhor" como se isso justificasse a coleira que ele lhe pôs. Quando foi que você deixou de ser um cão bravo e se tornou esse arremedo de um filhotinho?

Os olhos vermelhos de Zarif se apertaram e deixou as garras crescerem para atacá-lo, mas Ishtar desapareceu em meio à uma forte rajada de vento, cujo som se misturou ao seu riso.

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