Condão (Lista Internacional)

By GiordanoMochel

165 6 1

A obra de ficção científica “Condão” diferencia-se pela abordagem político-técnica de um futuro onde o contro... More

Prólogo
Capítulos 2 e 3
Capítulos 4 e 5
Capítulos 6 e 7
Capítulos 8 e 9
Capítulos 10 e 11
Capítulo 14

Capítulos 12 e 13

16 1 0
By GiordanoMochel

Capítulo 12

Patriarca. Era como o chamavam. Inclusive os mais velhos. De qualquer forma, era de longe o que tinha mais verões. Apesar de a idade ultrapassar os 90 anos, ainda era suficientemente ágil, tanto com as pernas quanto com as palavras.

— O que acharam da nossa humilde residência? – Perguntou.

— Não muito boa para os claustrofóbicos. – Ed disse em tom irônico.

— É verdade. – Riu. – Bem. Vocês devem ter algumas perguntas. Vou adiantar algumas respostas. Descobrir quem vocês eram não foi difícil. Temos bots em níveis baixos na rede da Central. Nunca tentamos nada para não entregar nossa posição. Apenas capturamos mensagens e fragmentos. Agora, parece-me que você fechou mais algumas portas, Edwardo. – piscou para o rapaz – Bem. Assim que vocês invadiram a Central nós percebemos imediatamente. Não sabíamos quem fora, nem se conseguiriam fugir. Havia muitas maneiras de vocês serem identificados. Mas concordo que o empenho do comando foi enorme para apenas uma invasão. Um crime relativamente pequeno, dependendo do nível. Então pensamos: ou ele acessou algo muito grande ou então existe mais alguma coisa que nos escapou.

Edwardo pensou na imprudência em invadir a Central. Não previra os meios mais avançados para rastreá-lo. Nunca pensara tanto naquilo, mas agora constatara: “Somos vigiados durante toda a nossa vida. Não há privacidade.”. Conseguia um pouco dela graças aos pontos cegos que colecionava, como aquele telhado em frente à baía. Mas bastava entrar no metrô e já estava novamente sob observação.

— De qualquer forma, pelo tipo de alvoroço que foi causado na Central, estava claro que vocês tentariam fugir da cidade. A mobilização intensa de drones sugeria que o Comando e a Central não se contentariam com uma simples detenção e não há lugar melhor para se fugir deles do que a cidade abandonada. 30 minutos depois vocês estavam identificados e com a última localização divulgada. Verificamos. Havia uma chance remota de vocês acharem a porta de serviço da estação auxiliar de Botafogo. Sinceramente não acreditava muito nisso. Mas Celeste estava em campo. Pedi para que ficasse de olho na nossa câmera da estação auxiliar de Cascadura. Qual não foi a surpresa quando a luz verde acendeu no painel, avisando a chegada de um trem. Mandei Celeste imediatamente para lá. Foi quando ela os encontrou.

— E se não tivesse nos encontrado estaríamos mortos – Jan disse, soando agradecido.

— Possivelmente. Mas me diga Edwardo: Como você invadiu a Central? Decerto que houve um plano inusitado.

Eles já haviam salvado sua vida. Poderiam matá-los a qualquer hora se quisessem. Não viu motivos para esconder nada. Talvez até conseguisse mais informações. Contou o seu plano e o de Jan, a fuga, a troca de roupas, tudo.

— Impressionante. Na verdade me surpreendo de ainda terem encontrado terminais físicos na cidade. Existem muito poucos que estejam disponíveis fora dos Institutos e das Escolas Superiores. Provavelmente o fato do simulador ser tão antigo e os terminais pouquíssimo usados contribuiu para que passassem despercebidos. Nós mesmos nos conectamos através de um terminal que fica do outro lado do limite, em uma escola integral. Conseguimos escondê-lo em uma salinha lacrada há 20 anos e lançamos um cabeamento físico de pouca extensão. Chega somente ao nosso lado do limite, onde temos um terminal ligado. De lá poderíamos enviar o sinal para cá. Mas é um ponto de acesso perigoso. Se caísse nas mãos da Central poderia entregar este local antes que pudéssemos tomar qualquer providência. A Central “nunca” poderia descobrir este local. Por isso mantemos alguém lá permanentemente. Qualquer anomalia que nossos bots detectem no nível de serviço da Central, o sentinela nos alerta por nossa própria rede.

O patriarca pareceu refletir. Dera uma certa ênfase à palavra “nunca”. “Talvez isso o perturbasse mais do que qualquer coisa”, pensou Ed.

— Diga-me, jovem. O que você achou na Central que causou tanto tumulto?

— Os drones mataram 2 garotos e fui testemunha. O acesso à Central foi apenas no intuito de tentar descobrir o motivo, além de verificar se tinham alguma pista para me achar.

— Bem, se não tinham, você as deu. Mas não se culpe. Os três estão sendo perseguidos pelo próprio comandante da região central, o melhor oficial do estado, e pelo drone mais avançado do Brasil, Crasso. Se tivessem deixado na mão de um drone comum ou de um subdelegado, provavelmente vocês ainda estariam incógnitos. Talvez ficassem assim para sempre. Mas me mostre o arquivo. Era alguma ficha pessoal?

— Um boletim de ocorrência. Sabia que não conseguiria baixá-lo localmente. Por isso ativei a câmera de vídeo da minha lente e fiz o download diretamente para a tela. Posso mostrá-lo no projetor holográfico, se estiver em operação. – Apontou para a máquina sobre o balcão.

— Certamente. – Gesticulou em frente à máquina. Ed imediatamente verificou a paridade com seu dispositivo ótico. Enviou o vídeo para a máquina.

O filme passou a ser mostrado no centro da sala em 3D. Todos ficaram em frente à projeção para não assistirem o anverso do vídeo. Ed avançou com um gesto e parou exatamente na imagem do BO. Congelou-a. O patriarca parecia assustado.

— Estão agindo dentro da cidade! Atinge a todos! – Pareceu perturbado. – Protocolo 23!

Ed estava intrigado com esse protocolo, desde que acessara o BO. Parecia ser a chave para o mistério.

— O que sabe deste protocolo, senhor?

— Sei que significa a morte. Até 2 anos atrás, ainda havia habitantes na superfície. A Central os tinha abandonado, relegado ao limbo social, mas ainda tinham acesso à alimentação trazida por drones. Então tudo mudou. Ao invés dos drones de transporte vieram os drones de segurança. Os habitantes idosos que foram buscar os alimentos foram mortos. Houve uma caça aos humanos naqueles dias. Mas não a nós, rebeldes. Nossa história de luta é antiga. Não contavam que tínhamos diversos túneis subterrâneos.

— Isso é impossível. Saberíamos pela mídia, caso ocorresse! – Ed assustou-se, já não tão certo do que afirmara.

— Os moradores da cidade vivem em um estado de alienação constante, voltados para o seu próprio mundo. Fechados para tudo que acontece no exterior. Se contentam apenas com o que veem na mídia. Mas toda ela é manipulada. Os dados importantes são fabricados.

Sílvia se manifestou pela primeira vez.

— Há reportagens sobre as cidades agrícolas, balneários e subúrbios, como este aqui na cidade abandonada. Em todos vemos pessoas, moradores, comércio.

O patriarca apenas deu de ombros.

— Tudo inventado. Diga-me senhorita. Há quanto tempo não sai da cidade?

Sílvia pareceu desconcertada. Havia ido visitar a mãe em São Paulo aos 7 anos, depois fora a um balneário no Espírito Santo com Ed. Saíram do avião robô diretamente para um trem a vácuo, que parou dentro do balneário. Passaram 3 dias maravilhosos, depois fizeram o mesmo caminho de volta. Só 2 vezes em seus 20 anos. E para quê mais? A cidade tinha tudo o que precisava. Diante do silêncio da menina, o Patriarca disse.

— Não existe mais ninguém nas cidades agrícolas, estão tomadas pelas máquinas. Os balneários são uma distração para a população. Mais uma dentre várias, criadas para os deixarem alienados. A cidade abandonada não tem nenhum tipo de comércio há mais de 18 anos. Nós estamos escondidos aqui há 30 anos. Não falta energia em nenhum lugar. Ainda assim a roubamos dos túneis a vácuo para evitar a detecção pela Central. A rede é tão gigantesca que torna praticamente impossível controlar-se o consumo individualmente.

O ancião parecia absorto. Jan resolveu quebrar o seu próprio gelo com algo que estava lhe intrigando desde que chegara na cidade abandonada.

— Senhor. Nenhuma sociedade, por mais conservadora e seguidora da doutrina política do Estado de poucos filhos consegue chegar a um número tão baixo de habitantes. Isso significaria muito mais do que um crescimento vegetativo negativo. Significaria um crescimento negativo ao extremo. Baseado nos dados populacionais que nos é informado, diga-me, se é que há resposta: cadê as pessoas? – falou em tom quase angustiado.

— A resposta existe, caro Jânio. Mas não sei se você gostará de ouvi-la.

Abaixou a cabeça, como se consternado.

Ed teve mais curiosidade sobre aquele senhor. Lembrou-se num estalo. Fez um pequeno gesto com a mão e acessou o banco de íris. Quando o ancião levantou a cabeça para falar novamente, o visor mostrou:

Arnoldo Costa Santos Bervich

Nascimento: 10/07/2000

Nacionalidade: Brasil

Naturalidade: Pernambuco

Identidade: -

Status: REBELDE

Situação atual: MORTO

Imaginara isso. Virou-se para Núbia. Nada. Nenhum registro.

— Depois de tudo o que passaram acho que merecem saber toda a história. Venham.

Seguiram pelo corredor. Sílvia ainda estava intrigada com uma coisa. Puxou Ed para o lado e cochichou.

— Ed! Nossos anfitriões certamente detém uma boa tecnologia de clonagem humana. As replicantes de Celeste são perfeitas. Não tenho a menor ideia de como conseguiram isso. O protocolo do Condão proíbe a clonagem e a classifica como crime gravíssimo. Mas o mais interessante é que só clonaram um indivíduo e o repetem a cada geração, em número de 12. Onde estão os outros clones?

O namorado recebeu aquela informação e também ficou curioso. Naquele momento uma das crianças louras veio correndo ao encontro do Patriarca, que a pegou no colo com surpreendente agilidade e a levantou acima da cabeça, rindo. Ed percebeu o brilho da lágrima no ancião e a gargalhada alta da criança. Passou a rir também daquela cena tão bonita. A criança então voltou-se para Ed. Esquecera o banco de íris ligado. Parou atônito.

— Sílvia, você não vai acreditar. – Falou cochichando. Estava a ponto de contar-lhe o que descobrira quando ouviu uma voz, retumbante e embriagada.

— Ei! Vão fazer barulho a noite inteira? Se querem festa, eu posso proporcionar.

Um homem de cerca de 2 metros apareceu na porta de uma das salas. Parecia notadamente bêbado. Mas o que mais impressionava e até assustava qualquer um que o via era o rosto. Na verdade a pele toda. Era grossa, como se várias peles tivessem nascido umas sobre as outras.

— Ignore seu mau humor. – Disse o Patriarca – O diabo nunca é tão feio quanto se pinta. Senhores, apresento-lhes o Capitão Glauco.

— Glauco! Não sou mais capitão. – Mas o patriarca sabia que apesar do passado tenebroso do nome, e do que significara, havia merecido novamente a alcunha. – Entrem. Como Bervich disse, não sou tão feio como pintam, apesar de que isso é difícil de acreditar olhando para minha cara. – Gargalhou.

— Você não o chama de Patriarca. – reparou Jan – E ele não parece se importar. Isso é inusitado.

— Por que o chamaria assim? Quando o conheci não era mais que um garoto. Sou mais velho que ele cerca de 10 anos.

Os três saltaram para trás.

— Como? Apesar da aparência da cútis você está totalmente em forma. – Disse Sílvia.

— Uma droga. Retarda o envelhecimento das células. O problema é que também causa um sério efeito colateral no que se refere à renovação celular. A natureza não aguenta abusos. As células tentam se renovar antes das outras morrerem e ocorre isso. Havia uma outra droga que controlava esses efeitos. Mas não a tomo há mais de 40 anos. – Ed tentara confirmar a idade com o detector de íris, mas a pele cobria os olhos do homem, deixando apenas um pequeno ponto preto no meio.

— Impressionante! – Sílvia ficou fascinada. Havia alguns estudos que nunca tivera acesso. Um dia quereria ter. Mas agora, como fazê-lo? Era uma fugitiva procurada na cidade, provavelmente no estado.

— Creio que a curiosidade de vocês seja em relação à população. Não os culpo. Quando havia fluxo de pessoas entre os bairros algumas vindas da cidade também tinham essa dúvida. – Serviu-se do brend 18 anos que estava sobre a mesa – Não querem? Há uma fábrica abandonada há 4 quilômetros daqui cheia dessas garrafinhas. Creio que posso passar mais duas gerações bebendo e não vou alterar o tamanho daquele estoque.

Jan fez menção de aceitar um copo, mas Ed pôs-lhe o braço na frente, impedindo-o. O homem recostou-se na cadeira e espichou as pernas preparando-se para uma longa narrativa.

“Nasci muito antes do Condão. Em uma época de caos, fome e guerra urbana. Não existiam drones, não existiam os comandos. O controle social era determinado por cartéis políticos que corrompiam a segurança pública e a justiça. A forma de exclusão e domínio era exercida diretamente sobre a dignidade do cidadão. Excluía-se pela subsistência, pela falta de acesso à saúde, pela pouca disponibilidade de educação. A honestidade era uma rara exceção e não era brindada, mas sim escarniada. Havia um abismo social entre ricos e pobres. Cada vez mais o domínio se concentrava na mão de poucos, mesmo que aparentemente se tenha tentado mostrar o contrário. Como eu disse, o controle público era exercido por cartéis políticos de várias correntes diferentes, mas que no fim serviam ao mesmo intuito: cercar uma pequena classe privilegiada de todos os aparatos do poder.”

Parou um pouco, meio catatônico. Ou reflexivo. Era difícil determinar.

“Eu era policial. Entrei na academia muito cedo, com 18 anos. Mas tinha um problema sério para um policial: era honesto. Não era o único, claro. Formávamos um grupo minoritário e guerreiro. Encarávamos a criminalidade com olhos de Têmis1. Fosse um ricaço, fosse um trombadinha, o tratamento era o mesmo. Em uma operação desencadeada por um oficial do nosso grupo, batemos de frente com a cúpula da polícia. Alguns comandantes foram presos. Mas a nossa paz foi pro cárcere junto com eles. Em poucos dias todos estavam soltos. Na outra semana o tenente que havia comandado a operação foi encontrado morto. Um tiro em cada olho. Uma venda. Uma espada de madeira em uma mão e uma balança de açougue na outra. Uma placa de papel dizia: 'JUSTIÇA'. Nosso grupo foi desfeito e mais alguns foram assassinados. Fui transferido para uma pequena cidade de interior onde não poderia agir contra a cúpula. Mas também foi bom para mim. Aproveitei para estudar e ruminar meu ódio. Entrei na academia de oficiais aos 25 anos. Com 28 me formei. Prometi a mim mesmo que todos aqueles que mataram meus amigos pagariam caro. E também aqueles que se venderam e estavam ficando ricos às custas da corrupção. Poucos anos depois conheci o Arnoldo. Jovem político promissor que defendia direitos humanos, inclusive de presos. Nunca fui de dar muito moral para preso. Dá para imaginar que não fomos muito amigos no início. Certa vez, quando ele já era deputado estadual, fui chamado na assembleia para dar minha versão sobre uma rebelião em que a polícia se excedeu. Ele esbravejava dizendo que eu era assassino e eu respondia que ele era um marginal defensor de presos. Quase fomos aos tapas na porta da assembleia. Uma hora, aos gritos, falei que detestava corruptos e ele gritou: 'Eu também”. Fomos, aos brados, a um bar no canto da assembleia com amigos dos dois nos seguindo, curiosos. Em menos de meia hora estávamos gritando as mesmas palavras. Sobre o combate a corrupção, sobre a cúpula de facínoras da polícia. Ali começava a maior amizade da minha vida.”

Olhou para o Patriarca que sorria. Retribuiu-lhe e continuou.

“Saíamos bastante juntos. Eu, ele e Alessandra, sua esposa.” – Ed apertou a mão de Sílvia, que não entendeu. – “Nesta época estávamos discutindo o que fazer para transformar a sociedade, que estava à beira do caos. Em meio às ideias, uma reportagem sobre um garoto que havia inventado um interpretador de códigos nos fez parar para analisar: se um programa de computador pudesse fazer o que um juiz fazia sem a interferência dos cartéis políticos, havia uma esperança para a justiça. Arno riu-se. Nunca deixariam uma máquina substituir o homem. Na verdade, ele não gostara muito da ideia. Mecanizar a interpretação? Alessandra, como estudante de biologia, também achou a ideia meio estapafúrdia. Mas era espirituosa. Conseguiu imaginar algo como uma sociedade controlada pela justiça digital. Ficou próximo do que aconteceu 30 anos depois. Impressionante como era inteligente aquela garota.”

Tomou uma grande dose. Núbia já tinha ouvido aquela história diversas vezes, mas nunca se cansava. Jan pegou-se olhando para ela. A menina tinha um ar sonhador. O professor só conseguia ver Celeste. Voltou-se para a história do capitão.

“Quando o pirralho fundou a Condão CO, eu tomei uma decisão. Precisava conhecê-lo. Estava ficando obcecado. Arrumei uma reunião com o nerd. Disse-lhe que o que ele tinha na mão poderia salvar a humanidade, que não desperdiçasse isso. Quando ele respondeu, pensei falar com alguém de uns 40 anos. 'Sim, capitão, é exatamente isso que pretendo fazer. Mas preciso da sua ajuda’. Não sei exatamente por que, mas achei imediatamente que aquele moleque seria o líder da nação algum dia. No momento em que fundou o Partido Legalista Tecnológico e se lançou deputado federal, chamei todos os meus amigos. Os honestos que havia sobrado. Nos filiamos. Fizemos campanha. Quando a Lei de jurisprudências caiu, Jeremias se tornara o homem mais poderoso da nação. O Condão dirimia todas as lides. Não havia mais margem para julgamentos forjados de políticos. Com sua ajuda me tornei comandante da Força Nacional de Segurança Pública. Cacei cada um dos desgraçados que mataram o tenente. Cacei cada um dos policiais corruptos da cúpula da polícia. Com a ajuda dos repórteres investigativos, prendi vários políticos criminosos. Procurei Arnoldo entusiasmado. Há tempos não o via.”

O coração de Jan praticamente saltava do seu peito. Estava presenciando um pedaço da história moderna viva. O homem conhecera o líder em pessoa! Não conseguia acreditar. Detalhes faltavam nos livros. Glauco não se abalou. Virou uma dose dupla do whisky no grande copo e continuou.

“Encontrei Arnoldo triste. Não entendi o porquê. Todos os políticos que ele detestava estavam presos. A cúpula corrupta da polícia. Os grandes empresários corruptores. Enfim conseguíramos transformar a sociedade. Estávamos a ponto de dar um grande salto. O Brasil era rico e livre da corrupção estatal. Nada poderia dar errado. Arnoldo limitou-se a dizer: 'a unanimidade abre todas as portas ao totalitarismo’. Indignei-me. Chamei-o de egoísta. Não estava pensando no bem comum. Alessandra veio me consolar. 'É tudo novo. Foi muito repentino. Ele vai entender. Dê-lhe tempo e fique por perto’. Dei-lhe um beijo carinhoso na testa. Não conseguia brigar com os dois. Voltei à Brasília para continuar a ajudar a pôr em prática o grande plano de reconstrução nacional. Tudo ia bem, mas um dia Jeremias me chamou em seu gabinete. Não no senado, em Brasília. Mas no imenso prédio sede da Condão CO, na Avenida Paulista.”

Virou de novo o copo. Sílvia começou a imaginar se o fígado também aguentaria a renovação redobrada sobre as células estendidas. Provavelmente sim. A fábrica abandonada era uma boa testemunha. Dessa vez não encheu novamente o copo. Ficou mais sombrio.

“Cheguei ao terraço. 300 metros acima do chão. Uma imensa vista panorâmica de toda a cidade de São Paulo. O líder apontou o telescópio para o Capão Redondo, a mais de 18 quilômetros dali. Era horário da saída escolar. Perguntou-me o que eu via. Eu disse: ‘uma centena de crianças saindo do colégio.' ‘não agora, Glauco. O que você vê daqui a 20 anos?' Fiquei confuso. Não seria uma centena de crianças saindo da escola, do mesmo jeito? 'Não, Glauco. Você verá 2 centenas de crianças saindo da escola. Será uma escola melhor, sem dúvida. Afinal estamos promovendo uma escalada na saúde, na alimentação infantil e na prevenção de doenças. Ainda assim serão 2 centenas de crianças'. 'E que mal há nisso?'. 'Todo o mal, capitão. Hoje já temos um crescimento vegetativo elevado. Só nos últimos 10 anos, houve um aumento populacional de quase 30%. Mas estamos levando em consideração um alto número de mortes pela criminalidade, pela desnutrição, pela falta de prevenção de saúde, por ciclos de doenças epidêmicas recorrentes. Se acabarmos com tudo isso, o que fatalmente acontecerá, esse crescimento vegetativo vai explodir. Em 50 anos não teremos mais recursos para sustentar a todos.' .'Entendi. Teremos que conscientizar a população sobre isso. Lançar programas de diminuição de número de filhos. Conscientizar a igreja sobre o uso de métodos contraceptivos. É uma tarefa árdua.'. 'Árdua e inócua. Tudo isso já foi tentado e nada deu certo. O meu plano é mais ousado. E você é parte fundamental nele.'.

— Espere! – Gritou Sílvia. – Você está dizendo que no início da Era de Ouro houve um projeto de contenção do crescimento populacional. Como nunca soubemos disso?

— Não seja ingênua criança. Você come tudo que o governo lhe dá. Por que não comeria conhecimento? Todos os documentos foram adulterados em uma enorme manipulação informativa. Os livros em papel foram extintos e destruídos, reeditados digitalmente com reduções homeopáticas progressivas. Por exemplo. Em todos os livros eletrônicos de história hoje, qual era a população brasileira indicada no início da Era de Ouro?

Jan adiantou-se:

— 120 milhões de habitantes, em 2032.

— Pois bem. E se eu lhe dissesse que a população era, na verdade, de 250 milhões?

— Absurdo. O país não comportaria tanta gente.

— Realmente. Não comportava. Mas esse era o número de habitantes no nosso país, segundo um antigo instituto. A primeira coisa a ser feita foi aparelhar o instituto para reduzir artificialmente a população. O plano era inverso: Nós daríamos o número desejado e iríamos atrás dele.

— O que vocês fizeram? Assassinaram pessoas? – Sílvia disse, horrorizada.

— Bem. Há quem diga que sim. Mas não ilegalmente.

Encheu o copo e virou duma vez. A conversa entraria em uma fase tensa.

“Fui designado para pôr o plano em prática na região sudeste. Nessa época recebi as injeções genéticas de retardamento de envelhecimento. Seriam permanentes. 'O plano demandará um tempo longo, vamos precisar de você inteiro', disseram. Nem todas as minhas atribuições eram obscuras. Também fui responsável por fundar várias escolas integrais e supraintegrais. Vi, orgulhoso, várias crianças saírem da linha da miséria, de um destino que fatalmente os levaria à morte, ou pela violência, ou pela fome. Também trabalhei da instalação dos postos de prevenção de saúde. Os mesmos que depois seriam transformados na rede de saúde eletrônica, operada inteiramente pelos drones. Foi realmente um período de ouro. Mas Jeremias estava certo. Aquele povo ficaria 'duro de morrer'. E a população explodiria. Voltando ao plano, recebemos da Condão CO um lote de suplementos alimentares. Teríamos que dar às mulheres e meninas. Eu sabia que não havia ali apenas suplemento alimentar. De qualquer forma, nem todas as mulheres receberam o remédio. Algumas foram escolhidas para não receberem. Ao se identificarem eram dispensadas. Demorou 4 anos para as queixas médicas em relação à gravidez tornarem-se frequentes. Nesse momento percebi o plano de Jeremias. Não podia dizer que era um plano angelical. Ainda assim não envolvia assassinato, portanto se atava a finalidade. Mas era realmente cruel. Ainda mais quando recebemos a incumbência de distribuir os suplementos masculinos também. Depois de 8 anos, nenhuma mulher que havia tomado os suplementos conseguia engravidar. Só no estado do Rio, 12 milhões de pessoas, entre homens e mulheres, 60% da população, havia ingerido o suplemento. Aquelas que haviam engravidado antes, recebiam bolsas de estudos para os filhos e se mudavam para a cidade. Houve uma espécie de segregação forçada pelo estado. Nos centros das cidades se concentrava a população fértil, enquanto nas periferias, a infértil. Nesta época Arnoldo voltou à ativa. Com ajuda de Alessandra, denunciou a suposta manipulação genética nos suplementos. Foram 4 anos esbravejando no congresso, com a mídia abafando. As revoltas nas redes sociais pululavam. Existiam comunidades que garantiam que havia algo nos suplementos. Acusações, estudos. Dados do exterior. As informações trafegavam entre grupos científicos. Só esqueceram de uma coisa: estavam no território do líder. Jeremias dominava a tecnologia e a mídia. As informações das redes sociais foram evaporadas na mesma velocidade que surgiram. Comunidades refutando as acusações apareceram aos borbotões. Cientistas famosos que nunca haviam existido escreviam teses. Morria a internet e nascia a super-rede. As redes sociais nunca mais seriam as mesmas. As informações oficiais deixaram de retratar os fatos. Alessandra veio falar comigo. Pediu para que eu intercedesse junto a Jeremias. Mas o líder já não era o mesmo, tornara-se um homem obscuro. Não se sabia o que se passava em sua cabeça. Estava mais interessado na nova tecnologia dos drones e na superinteligência artificial que havia recentemente criado. Me recebeu de forma fria. Eu também soube ser duro. Disse que aquilo já estava indo longe demais. Já havia se passado 12 anos sem uma reprodução entre 12 milhões de habitantes só no Rio. O crescimento vegetativo havia sido negativo na última década, no Brasil inteiro. O plano não seria mais necessário. Com o aumento da idade populacional, a queda ainda perduraria por no mínimo 3 décadas. Além do mais, aquilo tudo era antiético, e provavelmente encarado como ilegal pelo Condão. Jeremias me olhou friamente. 'estou decepcionado, Glauco. Pensei que o bem comum fosse mais importante para você do que uma mera estatística de fertilidade. O Condão entende que o bem coletivo sobrepõe o bem individual. A extinção da humanidade é o mal maior a ser evitado. Mas tudo bem. Volte para os seus amigos e diga que a fertilidade voltará.'. Voltou-se ao enorme projetor holográfico e aos seus afazeres. Quando contei a Arno o que Jeremias havia me dito, ele duvidou. Mas Alessandra ficou esperançosa. O líder não havia mentido. Alguns meses depois a gravidez voltou.”

— Bem – Disse Ed, após uma pausa. Havia raciocinado sobre a medida. – É certo que foi um método extremamente radical. Mas temos que tentar pensar como ele: estava em um momento crucial, que poderia vir a comprometer toda a população. Não creio que eu tomaria uma posição assim mas, com certeza, respeito seu ponto de vista. Ele conseguiu manter durante 50 anos a redução da população. Isso é um fato.

— Pois eu acho que ele errou. – Disse Jan, decepcionado. – Colocou uma enorme massa produtiva sob estresse e comprometeu a capacidade de desenvolvimento do país.

— Não tenho tanta certeza disso. – Sílvia complementou. – Nessa época foram introduzidas as grandes máquinas autômatas, que poderiam facilmente substituir a mão de obra. Ele foi cruel e desumano, mas não pôs a capacidade do país em risco. – Lembrou de algo, repentinamente. – Você disse que as mulheres eram escolhidas para serem esterilizadas e que esse montante era de 60%. Qual era o critério para que as pessoas não fossem esterilizadas e levadas para os núcleos da cidade?

— Vocês me decepcionam. Já deveriam ter percebido isso. Mas eu compreendo. A massificação da propaganda é capaz de engenhosidades infernais. Em uma época em que só existiam panfletos, rádio e cinema mudo, Hitler levou 20 milhões de soldados e toda a população civil da Alemanha para uma guerra. – olhou para os três, um a um – Olhem para vocês. 3 amigos com QI acima de 160. Estava claro que nessa sociedade inventada por Jeremias, cada um teria seu papel.

— Eugenia! – Sílvia disse horrorizada. Nunca fora muito admiradora do Líder. Passou a detestá-lo.

A garrafa chegara ao fim. O homem ficou batendo o copo na mesa.

— Bem – disse Ed. – A história é triste. Mas creio que agora temos que tentar descansar. Amanhã decidiremos qual futuro deveremos seguir.

O Patriarca não se moveu. Nem Núbia, muito menos o capitão.

— Então não vão querer ouvir o resto da história. Não os culpo.

— Não acaba assim? – Disse Jan surpreso.

— Infelizmente não, caro Jânio. – Disse o Patriarca pesaroso.

Sílvia estava curiosa.

— Prossiga.

“A fertilidade voltou. Mas cada indivíduo, fosse homem ou mulher, conseguiu ter apenas um filho. Acreditava-se que os suplementos alimentares até poderiam ter a ver com a infertilidade, mas que o Líder tinha apenas se esforçado demais para fazer o bem à população e a droga que fortalecia o corpo trazia esse efeito colateral. Agora estava resolvido. Poderiam ter um filho. Não era o ideal para todos, mas o suficiente para a grande maioria. Os mais novos recebiam bolsas para morar na cidade-sede e cada vez menos adultos jovens estavam entre nós. Chegou-se a um ponto em que a população estava dividida entre os pais, o mais novo perto dos 40 anos, e as crianças. Uma sociedade curiosa. Arnoldo também teve uma filha com Alessandra. Eu mesmo encontrei uma mulher. Mas no meu caso já era sabido: a droga de extensão de vida das células havia me deixado estéril. Não importava. Estava feliz por tudo acabar bem. Nesse período o congresso foi desfeito e os cargos de juízes e advogados extintos. Não havia mais sentido, já que o Condão resolvia tudo. Também foram lançados os primeiros drones de segurança, que trabalhavam junto à polícia. Tudo parecia caminhar bem. Até 13 anos depois.”

Tomou fôlego.

“Um vírus. Global. Desceu à terra como uma praga mandada por Deus. A humanidade havia cometido um pecado fatal. Era a única explicação. O micro-organismo, soube-se depois, atingia toda criança e adolescente com menos de 14 anos. Algo a ver com a formação de uma glândula que se desenvolvia com a idade. Era uma virose, mas não havia cura. Só no Brasil, no primeiro ano, 12 milhões de crianças morreram. No mundo, estimou-se em 600 milhões. Incluindo Melissa, a filha de Arno.”

Os três estavam horrorizados. Olharam para o Patriarca que baixara os olhos, silencioso. Sílvia começou a ficar sem ar.

“O Novo Governo Central baixou uma medida de quarentena para que ninguém saísse de casa. Os drones forneciam atendimento médico residencial, levavam os alimentos, faziam tudo. Até o enterro, onde só poderiam ir aqueles que moravam juntos. Os pais ficaram arrasados. Muitos morreram logo depois dos filhos. A quarentena não acabava e não se tinha notícia de vacina. A mídia só mantinha as marchas fúnebres na TV, quase todo dia. Aquilo matava ainda mais rápido quem havia perdido o filho. Alessandra definhava dia a dia para desespero de Arno. Segurava sempre a mecha de cabelo cortada da filha. A menina pedira que a guardasse. No fim da quarentena de 4 anos, o saldo fora de 39 milhões de crianças mortas e 28 milhões de adultos no Brasil. Cerca de 3 bilhões de pessoas no mundo. Arno primeiro culpou Deus, depois o Diabo. Se culpou, me culpou. Depois me procurou e disse: 'Você acha que isso pode ser o fim da raça humana, Glauco?'. 'Não sei se é o fim, amigo. Mas está passando bem perto.'. Morávamos em Petrópolis. A cidade parecia uma procissão de zumbis. As pessoas se arrastavam. Com o tempo as coisas voltaram ao normal, na medida do possível. Afinal a humanidade já havia passado por outras pragas até piores. Só uma coisa ainda intrigava Arno. A idade de grande parte das crianças batia com a data da volta da fertilidade. Poderia ser uma coincidência, pois adolescentes e até adultos morreram. Foram raros, mas houve casos. Mesmo assim, aquilo não lhe saía da cabeça. Comentou com Alessandra. A esposa não tinha forças para raciocinar sobre aquilo. Parecia que morreria a qualquer momento. Dois anos depois, para alívio de Arno, Alessandra se levantou. Disse que o mundo teria que lhe aguentar mais um pouco. A vida continuou.”

Neste momento o próprio Patriarca tomou a palavra.

— Petrópolis ficava cada dia mais vazia. A cidade envelhecera. A população já não tinha forças para nada, a não ser para morrer. Naquela época, o município não contava com mais de 25 mil habitantes. O Instituto de Biologia, onde Alessandra trabalhava, ainda funcionava precariamente. Já não tinha pesquisas, nada. Estava a ponto de fechar. Ela resolveu fazer algo que me prometera: ainda tinha amostras de tecidos de crianças mortas na época da grande praga. Hesitou. Não queria que eu estivesse certo. Começou a sequenciar o DNA de duas delas. Tudo certo. Bem diferentes um do outro. Colocou a cadeia no computador, e mandou cruzar paridades. Nada. Nenhuma anomalia. Já estava praticamente satisfeita. Ainda assim colocou as duas sequências num detector de segmentos de palíndromos. Uma tarefa de horas, mesmo para supercomputadores. No fim havia uma pequena detecção de padrão, somente visível para olhos experientes. Uma sequência batia com a outra, de forma ímpar. Isso não poderia ser natural. Pegou outra amostra. A sequência era igual à primeira. Pegou outra e mais outra. Quando pegou 30 amostras. Descobriu, horrorizada, que havia 4 padrões, magicamente passados para os descendentes, mas não presentes nos pais. O que isso significava? Uma assinatura genética? Acessou as sequências de DNA do vírus no computador. Sabia-se que eram de 4 tipos. Verificou que as sequências dos DNAs das crianças batia com os DNAs dos vírus. Eram vírus programados. Cada um detectaria a sua sequência, infiltrar-se-ia na célula e a mataria. Começou a chorar. Tremendo, pegou a mecha de cabelo dentro da carteira. Colocou um fio de cabelo do extrator. Verificou a sequência. Batia com as outras. Mas nem ela nem eu havíamos tomado o suplemento. Ligou-me desesperada. Cheguei e ela me contou tudo. Glauco! Não podia aceitar mais essa traição. Liguei para ele. Não estava entendendo. Nunca faria isso. Alguém tinha me envenenado. Mas não fora Glauco”.

— Extermínio! – Gritou Ed horrorizado. Jan chorava copiosamente e Sílvia desmaiara. Ed Correu para ajudá-la. A menina estava completamente sem cor. Núbia trouxe-lhe água.

Glauco continuou. Falava com raiva.

“Não havia sido praga de Deus. Peguei as pistolas antimatéria e me mandei para São Paulo. Ainda tinha a Insígnia de Oficial. Nunca as havia perdido, na verdade. Desci da supervia na Paulista em frente ao espigão da Condão Co. Antes que o drone de segurança gritasse “Alto”, nenhum parafuso dele existia mais. Eram muito idiotas aqueles primeiros drones. Se Jeremias achava que aquelas latas velhas iriam me deter estava enganado. Com certeza o alerta ao Comando Central de São Paulo já havia sido emitido. Não importava. Eu só queria desintegrar aquele filho da puta traidor. Não tinha nenhuma vontade de ir à mídia. Mesmo porque não adiantaria nada. Só queria transformar o canalha num mini buraco negro. Expulsei todos do elevador a vácuo e subi sozinho. Não sei por que o controle do edifício não o parou. Acho que queriam que eu chegasse lá. Desci na cobertura com o rosto da secretária apavorada me encarando, duas armas na mão. Chutei a porta da sala e atirei na mesa. Desintegrou-se. Mas ele não estava lá. Apenas um drone. Desarmado. Um drone de Serviço. – 'O Senhor Jeremias disse que um dia você apareceria aqui. Ele se foi há dois anos. Mas deixou um recado: O bem comum é mais importante...'. Não esperei. Desintegrei o monte de lixo metálico. Aquela história de bem comum já tinha estourado meu saco. O desgraçado estava morto e o mal estava feito. Ele conseguira. Reduzira a população como queria. E o fizera no mundo inteiro. Provavelmente o planeta todo estava sob influência da Central e dos comandos. Desci pelo elevador. Ninguém me encheu. Voltei pra Petrópolis.”

Sílvia ficou sentada, tremendo. Jan ouvia incrédulo e Ed estava a ponto de explodir de raiva. O Patriarca continuou.

“Chamei todos que conhecia para explicar o que havia acontecido. A maioria preferira não acreditar e esperar a morte. Não os culpo. 50% da população da cidade tinha mais de 70 anos e o resto tinha mais de 50. De que adiantaria se revoltar naquele momento? Eu mesmo já fizera 66 anos. Mas a população da cidade acreditaria. Era jovem e poderia se indignar.Entrei em contato com um biotécnico do grupo de Alessandra por um canal fechado. Trabalhava no Instituto. Assinei a mensagem com um codinome da época da universidade que só eles conheciam, algo da fraternidade. Mandei-lhe as 30 sequências de DNA e as observações de Alessandra. A resposta foi contundente: fora um atentado biológico. Alertaria alguns dos biotécnicos do instituto. Aqueles em que tinha confiança. Pensei que, se a informação se espalhasse, talvez não conseguissem controlá-la. Depois de 3 dias, o homem pediu-me para encontrá-lo. Conseguira um evento na mídia para divulgar tudo. Seria avassalador. A população se revoltaria e juntar-se-ia a nós para derrubar o governo. Empolguei-me com a velha militância, mas Glauco me repreendeu. 'Ele já deve estar morto'. Já sabia que era uma armadilha. Não fui. 7 dias depois foi confirmado que ele havia morrido de parada cardíaca. Sabiam que alguém tinha a informação do extermínio. Mas pensei: 'não é exatamente um procedimento complicado. Se Alessandra descobriu isso no Instituto de Petrópolis, outro bom biogeneticista também poderia descobrir em algum instituto. Deduzi que as pesquisas nos institutos das cidades-sede eram controladas, assim como toda e qualquer informação para a população. Já as pesquisas de fora não lhes importavam. Sabiam que as cidades externas estavam em vias de extinção e nada que viesse dali poderia afetar o controle de informação. Assim como ocorrera. O governo nos relegara àquilo. Não deixariam faltar nada: saúde, alimentação. Não precisava. A própria história se encarregaria de acabar conosco. Precisava agir, mas não conseguiria convencer ninguém da cidade-sede por meio eletrônico. Estavam isolados digitalmente. Teria que ser feito pessoalmente. Descartei ir à mídia. Não existia mídia. Só existia governo. Só existia a propaganda oficial. Agiríamos de forma diferente. Ficaríamos próximos aos centros de comando e tentaríamos sabotar a Central. Talvez interferir na comunicação. Tentar alertar as pessoas, mas não diretamente, pois seria suicídio. Só que não faríamos isso de Petrópolis. A cidade estava a ponto de se tornar fantasma. Descemos a serra rumo a Duque de Caxias pelos escassos trens a vácuo. O cenário era quase o mesmo. Desolação por todo o lado. As pessoas apenas viviam, praticamente em estado vegetal esperando a morte. Em cada lugar que passávamos, pregávamos, explicávamos, e arregimentávamos pelo menos alguns. Íamos descendo, cada vez mais próximos da cidade.”

O capitão tirou uma garrafa de baixo da mesa. Não colocou no copo e bebeu no gargalo.

“Enquanto Arno encarnava o messias eu tentei reunir minha equipe novamente. Aqueles que tomaram a vacina de extensão de vida estavam corrompidos. Mas não eram da minha equipe original. Destes últimos, o mais novo tinha 50 anos. Mesmo assim montei a equipe. A ideia era explodir a Central de Brasília. Acabar com parte dos novos circuitos drônicos criados pela Condão Co. Não adiantava atacar o governo, pois não existia mais governo. Existia a junta de governabilidade, sem congresso, sem órgão de justiça. Estávamos na mão da Central e da Condão Co. Se conseguíssemos destruir a Central de Brasília, as outras Centrais teriam que se reordenar. Uma coisa que eu sempre soube com a convivência com Jeremias é que ele pregava uma central única de processamento. Não quer dizer que a Central de Brasília era um cérebro que, caso fosse detonado, derrubaria as outras centrais como arroz na ceifa. O que ele queria dizer é que todas as unidades de processamento funcionavam como um único computador. Até os novos drones. Eram pedaços de uma superestrutura. Se explodíssemos a Central de Brasília, conseguiríamos diminuir o processamento nacional em pelo menos 35%. A vigilância cairia bastante, talvez um pequeno caos eletrônico nos protocolos de segurança. Isso poderia ser suficiente para que Arno conseguisse invadir a Central. Programadores é que não lhe faltavam. Se chegasse à central de mídia, bastaria 10 minutos de vídeo para explicar tudo. Espalharia o vídeo em broadcasting2 na super-rede para todos os dispositivos conectados. ”

Sílvia e Jan haviam recobrado as forças. Ed continuava colérico. Mas, pelo menos, via algum tipo de luz no fim do túnel. Os três estavam atentos e pareciam fazer parte de algo maior. O Patriarca retomou a linha de pensamento.

“Antes de ir diretamente à cidade rodeamos todo o entorno do subúrbio do Rio de Janeiro. Conseguimos convencer um grupo de 500 pessoas. Ainda assim, os mais novos tinham 40 anos. Não importava. Era um excelente contingente. Descemos em direção à cidade. Cascadura e Madureira ainda eram bairros bem habitados, pelo menos para o novo padrão populacional. Devia haver uns 5 a 10 mil habitantes. Claro que a idade média beirava os 50 anos e a depressão tomava conta de todos. Mas era uma comunidade ainda ativa e tinha um comércio vivo. Era exatamente na borda do limite. Usava-se a linha amarela como trincheira para separar a cidade-sede da periferia. Mas não existia nenhuma limitação física. Poderíamos ir e vir, sem problemas. Muita gente vinha da cidade-sede para comprar os produtos artesanais fabricados lá, escassos na cidade ultratecnológica. Tive então uma ideia.”

— Péssima. – Resmungou o capitão. O Patriarca chegou a assentir, levemente.

“O plano de Glauco era insano. Invadir a Central de Brasília para criar uma distração gigantesca, e assim conseguirmos invadir a Central do Rio para espalhar o vídeo de forma avassaladora. O problema era como explodir a Central de Brasília, fortemente defendida, com um exército Brancaleone.”

— Isso era problema meu! Você teria apenas que se preocupar em invadir a Central do Rio.

— Era suicídio. Você sabe! – Retomou o fio.

“Minha ideia era mais estratégica. Fixamos nossa comunidade na borda. Criamos um templo. Atraíamos os visitantes que vinham da cidade-sede com ideias sobre salvação, nova ordem, motivação religiosa. Subterfúgios que, sabe-se, motivam a raça humana desde os primórdios. Enquanto isso criávamos uma rede subterrânea de túneis, preparando-nos para uma guerra civil que fatalmente aconteceria assim que a população compreendesse o que havia acontecido. Teríamos soldados jovens. O governo não conseguiria controlar, mesmo com a ajuda dos drones. Mortes? Haveria muitas. Mas a humanidade já tinha perdido 50% da população, e pelo que se sabe, nunca fugira a uma guerra. Em 8 meses reunimos 600 adeptos que enchiam a igreja. Tínhamos um hábil orador. Havia sido pastor nas arcaicas igrejas de arrecadação do início do século. Quando tivemos certeza de que os tínhamos como fiéis, abrimos o jogo. Mostramos o vídeo. Nele, em 10 minutos um biogeneticista explicava tudo, a manipulação genética, os índices de mortalidade altíssimos, como o vírus se infiltrava e matava as células. Acreditaram instantaneamente. Gritavam palavras de ordem contra o governo. Queriam sair dali diretamente para o comando estadual e destruir tudo. Falamos que faríamos tudo isso dentro de poucos dias, mas precisávamos de mais seguidores. Teriam que difundir o vídeo para que o maior número de pessoas compreendesse o que houve. E foi o que fizeram. O vídeo se propagou instantaneamente. Apesar do controle exercido pela super-rede, em 2 dias, mais de 30% da população mundial teve acesso a ele. Conseguiríamos. Já havia sinal de revolta da população nas redes sociais, mesmo que controladas pela Central. O povo ameaçava sair às ruas. No terceiro dia, pela manhã, 5 mil adeptos se amontoavam na igreja. Nem eu nem Alessandra havíamos dado as caras ainda. Glauco não deixara. Mas agora era a hora. Discursaria e insuflaria a população. Marcharíamos por sobre a linha amarela angariando adeptos pelo caminho em direção à Central. Glauco conseguira reunir um número suficiente de armas para fazer um grande estrago no comando. Aliado à massa de pessoas com vontade de triturar o governo, seria impossível controlar-nos. Só não havia me atentado a um fato.”

— De novo tentando usar as ferramentas de Jeremias contra a Central. O que mais me impressiona é que até eu cheguei a acreditar nisso. – O capitão praguejou e deu mais uma tragada.

“Todos receberam um novo vídeo ao mesmo tempo. A Central usara a mesma artimanha que Glauco havia planejado: mandar a mensagem em broadcasting para todos os dispositivos conectados à super-rede. No filme, o mesmo geneticista que explanara como Jeremias havia exterminado 35% da população em 4 anos, agora falava em sérvio, em um enorme salão cheio de leitos, onde vários pacientes estavam deitados. Via-se os olhos em pânico de cada um. O médico parecia explicar como funcionava um tipo de veneno. Injetava no paciente e este agonizava e morria. Em 4 minutos, fizera isso com cerca de 5 pacientes. Todos mortos. No fim, o Comandante Federal Brasileiro explicava que haviam descoberto o grupo terrorista responsável pelo vírus de 6 anos atrás e estavam em seu encalço. A reação da população foi imediata. Mesmo antes de raciocinarem sobre tudo já estavam trucidando o pastor, o biogeneticista e nossos guardas. Mas ninguém sairia vivo dali. As portas foram lacradas e todos foram mortos por envenenamento por gás. A Central filmou os 5 mil atônitos recém-rebeldes sendo asfixiados e divulgaram o vídeo, como se fosse mais uma ação dos terroristas. Mas não só isso, outros vídeos de igrejas, no Brasil e no mundo inteiro, com as mesmas características, mas com a diferença de que as tropas chegavam antes do envenenamento, foram divulgados, mais de 700 no total. Só em Cascadura houvera mortes. Xeque mate. Eu estava a caminho da igreja e gritei nos subterrâneos. Creio que todos os túneis ouviram o brado de agonia. Glauco estava possesso. Queria subir com o pelotão para a rua para combater os drones. A Central mandara todos os moradores ficar em suas casas até que a rebelião fosse contida, ainda assim o capitão saiu com seu pelotão e esperou os drones. Eram muitos. Desceu. A Central havia nos manipulado desde o início. E já havíamos perdido aquela batalha.”

— Eu quase ouvia Jeremias rindo de mim de dentro do inferno reservado aos pecadores digitais. Provavelmente abraçado ao próprio Diabo. – Atirou a garrafa vazia na parede, fazendo voar cacos.

“O Barulho da guerra pôde ser ouvido até no Aterro, a 20 km. Foi assim em todas as cidades. A concentração dos tiros era exatamente após os limites estabelecidos em volta das sedes. Após 7 dias a mídia divulgou as imagens de vários terroristas presos, um grupo diferente para cada uma das cidades. Os drones de reportagem desceram nas áreas afetadas. Pouca coisa havia sido destruída. Nenhum habitante inocente havia sido morto. Fora uma operação cirúrgica. Os habitantes idosos da periferia eram aclamados com salvas pelos soldados, agora heróis. A guerra havia sido uma farsa, uma montagem. Evitou que a própria população procurasse os rebeldes atrás de vingança e exterminou a revolta, na mesma tacada.”

— Isso está registrado. – Lembrou-se Jan. – A revolta dos 7 dias. Um grupo terrorista que tentou dizimar a população através de um vírus. Nada muito relevante, pois não houve mortes. Nem o registro da igreja há. Mas a história não fala nada sobre o extermínio populacional de 6 anos antes. E esse evento foi tão catastrófico que seria impossível não haver registros.

— O maior truque da Central. – explicou o Patriarca – Se realmente a praga atingisse a todos igualmente haveria registros, inclusive pessoais. Mas os tratamentos foram diferenciados. Lembrem-se que em 4 anos a quarentena proibia qualquer um de sair de casa. Não havia contato pessoal, a não ser entre a família. Nessa época todo contato era eletrônico. A mídia divulgava os números brutos. Mas enquanto nas cidades-sede o índice de mortalidade por criança infectada era de 12%, na periferia era de 97%. Ainda assim, 12% era considerado calamidade. Todos passaram por isso, mas cada família em seu grau. A mídia tratou de equalizar a dor e o sofrimento. O problema foi a recuperação: uma sociedade que tem 1 em cada 10 crianças mortas se recupera. Uma que as tem exterminadas, perece. Portanto, as lembranças dos citadinos são apenas de um período onde houve uma epidemia com índice de 10% de mortes. Os mais velhos devem se lembrar, mas os registros estão todos apagados, fazendo com que os mais novos ignorassem e os mais velhos se esquecessem. Quem se lembra do extermínio somos nós, que estávamos fora dos limites. Pouquíssimos agora.

Ed lembrou-se das aulas de ultramanipulação de imagens. Como fazer verdadeiros filmes reais usando as técnicas de morfismo clônico digital. Mas isso, hoje. Não lembrou de registros que indicassem que existiam há 30 anos. Bem, para a Central existia. Tanto o vídeo do biotécnico quanto os das prisões deveriam ter sido feitos com essa técnica.

“Nos enfiamos nos subterrâneos. Sabíamos que os drones e o comando iriam nos caçar sem piedade. Felizmente a tecnologia robótica ainda não contava com os escâneres gama, mas sabíamos que mais cedo ou mais tarde os drones nos alcançariam. ” – Disse o Patriarca. Glauco emendou.

— Então eu me despedi dele e de Alessandra. Juntei uma parte do pelotão e disse: “Preciso de homens para morrer comigo. E morrer não é uma alternativa.”. Riram. Queriam ir todos. Mas disse que não poderíamos ir todos. Quem protegeria Arno e Alessandra depois? 10 malucos me seguiram. Fizemos uma barricada em um prédio. Quando avistamos os drones no horizonte disparamos para chamar atenção. Ainda consegui desintegrar dois. Uma boa coroa de flores para meu túmulo. O tiro derradeiro veio de trás, de um drone da artilharia. O prédio inteiro explodiu. Fui arremessado a mais de 150 metros, com o corpo 97% queimado. Quando acordei era noite. Incrivelmente, conseguia enxergar. Mas não me mexer. Um dos meus homens me encontrou. Já fazia 6 dias que os drones haviam ido embora. Eu não tinha quase mais pele. Onde tinha, estava carbonizada. Levaram-me em uma maca e me colocaram no soro. Esperavam que eu morresse logo, mas achei bom poder me despedir de Arno e Alessandra novamente. Não morri. Creio que passei umas duas semanas me despedindo deles todos os dias. Meus ossos solidificaram. Achei estranho minha pele não infeccionar nunca. A maior parte estava dura, como se fosse uma crosta. Tomei coragem e peguei em uma crosta. Fiz força. Arranquei-a. Por baixo uma nova pele. Quando Alessandra chegou, perguntei a ela se o miserável havia me transformado em réptil. Ela riu alto. A extensão de vida das células havia descontrolado a renovação. Quando o corpo verificou o dano em células altamente longevas, tratou de refazê-las em velocidade ultrarrápida. Não ficou uma pele tão sedosa. – levantou o punho da blusa. – Creio que não é muito recomendável para fazer carinho em uma dama. – Gargalhou. O Patriarca continuou.

— De fato, a artimanha de Glauco deu certo. Ficamos 10 meses silenciosos dentro dos túneis. A Central achou que havia finalmente acabado com a rebelião. Mas não voltamos para a terra. Continuamos escavando até estarmos sob o maciço do Catonho3. Aqui nem os raios gama alcançam. Construímos nossa base. Trouxemos todo o equipamento do Instituto de Biotecnologia de Petrópolis. A cidade já era fantasma quando voltamos lá. Alessandra chorou quando viu no que se tornara o local que amara tanto. Com o equipamento, ela se lançou fervorosamente na decodificação genética. Descobriu que todos os habitantes da cidade e do mundo deveriam ter algum tipo de assinatura em seu DNA. Não era só o suplemento, que se destinava a um fim. Toda a população estava marcada como se fazia com gado no século passado. Passou 2 anos trabalhando como uma cientista louca, tentando limpar o código genético, usando o seu próprio.

— Foi o que vi na íris da criança. Alessandra Bervich. -Cochichou Ed para Sílvia.

— Por fim, chegou ao máximo que podia. Ainda restava algum fragmento de assinatura da Central no código, mas estava praticamente limpo. Fizemos os 12 primeiros clones. Sucesso total. Seguiram-se mais 3 gestações. Mas quando uma das meninas da primeira geração adoeceu ela percebeu: o DNA era suicida. A limpeza fez com que o próprio código detectasse a anomalia. Entraria em uma cadeia de autodestruição das células. Alessandra chorou. Não suportaria ver a morte das 36 crianças. Lançou-se novamente ao código. Ao resquício que faltara. Descobriu que era uma assinatura genética com um código criptografado. Uma chave! Se inserisse a sequência correta, o processo se reverteria. Bastaria usar um vírus inócuo e enxertá-lo com o código. Nós nunca conseguiríamos invadir a Central e essa chave deveria estar em alguma região digital ultrassecreta. Mas Glauco sabia exatamente quem teria essa chave. O responsável pela criação dos suplementos. O chefe do Instituto de Biotecnologia da Gávea. Dr. Wendel. Extrairia a chave dele nem que fosse na base da desintegração. Novamente era necessária uma distração. E mortes. Dessa vez não precisou convocar ninguém. Todos amavam as garotas. Era inadmissível a morte delas. 15 soldados resolveram entregar suas vidas ao plano. Já tinham mais de 60 anos e queriam morrer pela revolução. Seriam mais se fosse necessário, mas não era.

— 3 pelotões de 5. – continuou Glauco. – A ideia era invadir o Instituto de Tecnologia do Méier. Ficava próximo ao limite e os pelotões chegariam lá facilmente. Os soldados iriam recheados de bombas. Havia 10 anos que não se tinha notícia de nenhum rebelde. Nem a Central nem os comandos desconfiariam de nada. Penetraram na cidade por lugares diferentes. Um grupo pela Serra do Grajaú, outro pela água, desembarcando na Ilha Universitária, outro por uma linha auxiliar do Metrô a vácuo. O pelotão que desembarcou na Ilha não demorou muito a ser capturado. Não havíamos previsto o enorme número de câmeras que a Central plantara, nem os escâneres laser. O grupo de 5 idosos taciturnos pareceu-lhes suspeitos. Quando os drones os cercaram, o lider do pelotão riu olhando para todos. Entenderam. Uma enorme explosão foi vista a quase 5 quilômetros do local. Isso distraiu o comando que enviou um pelotão da guarda e um exército de drones para o local. Enquanto isso, um grupo descia na estação auxiliar da Praça Saens Peña. Subiram à rua e chamaram a atenção de todos mostrando as bombas. Exigiam a presença de um repórter da mídia livre. Claro que isso não existia. Não demorou a serem cercados por drones de todos os tipos. Essa confusão em dois pontos da cidade criou a distração suficiente para que o terceiro grupo descesse a encosta da Serra do Grajaú junto ao Hospital Eletrônico Carmela Dutra e chegasse à Rua Dias da Cruz. Em menos de 5 minutos estavam em frente ao Instituto Eletrônico. Agora a reivindicação era diferente: queriam cópia do software do Condão e os projetos da arquitetura drônica. Um pedido completamente insano. Mas era para parecer assim mesmo. Não queríamos que achassem que existia uma rebelião organizada, e sim um bando de loucos. Nesse momento eu já descia a encosta da Gávea Pequena, após passar dois dias atravessando a Floresta da Tijuca, sozinho. Saí praticamente sobre o Instituto de Biotecnologia. Não havia guarda. Todos foram deslocados para as áreas de conflito na cidade. Como era improvável que alguém invadisse o Instituto, deslocaram todo o efetivo. Dera certo. Sabia que o biomédico desgraçado estaria lá. Ele dormia no instituto. E sabia que estava vivo. Foi fácil constatar pela super-rede. Desci da encosta já dentro do prédio à 1 da tarde. Hora de descanso do almoço. Nenhum guarda ou drone. O gabinete do facínora ficava afastado. Gostava do ar puro da floresta. Gostava de ar puro e matar crianças, o filho da puta. Entrei no gabinete e o miserável estava lá. A primeira coisa que fiz foi desintegrar seu braço direito. Sem perguntar nada. O bom da arma antimatéria é que a ferida deixada é completamente incólume fazendo com que o sangue demore muito mais a estancar. O doutor olhava horrorizado para seu toco de esguicho de sangue. '— Quero a senha do DNA. A senha global, não as senhas secundárias. E não me enrole. 'Que senha? Não sei de senha alguma!' Atirei no seu pé. Gritou. 'Ainda tem um pé para alcançar o terminal. Demore mais um pouco e terá que se arrastar.'. Viu que eu não brincava. Pulou até o terminal, como um saci. Mas vocês não fazem a menor ideia do que é um saci. – Riu. – Acessou-o. Quando piscou 3 vezes percebi que estava ligando o dispositivo ótico. Dei um soco tão forte no seu olho que o deixou cego de imediato. Ainda assim enfiei o dedo no hematoma roxo e arranquei o dispositivo. 'Mais algum truque doutor?'. Já estava desesperado. Chorava para que o deixasse vivo. Falei que não só o mataria, como a toda a família. Foi uma ameaça vã. Aquele crápula só amava a si mesmo. Acessou o módulo da central e baixou a senha. Fiz o upload para minha caixa de conexão, que tinha o DNA que Alessandra me passara. Testei. Não batia. Provavelmente era uma senha para envenenar mais rápido. Atirei no outro pé e o doutor urrou de dor. A sala era uma imensa poça de sangue. Com os últimos 5 dedos que lhe restavam no corpo acessou outra área. Fiz o upload. Bateu. Não me passava pela cabeça deixá-lo vivo. Mas matá-lo não era suficiente. Tinha que apagar qualquer traço de DNA do filho da puta. Não queria que o clonassem. Atirei em sua cabeça. Sem dizer nada. Não merecia últimas palavras. Armei as bombas. Saí do gabinete diretamente para a mata ao lado. Ninguém me vira. Fora uma ação silenciosa. Enquanto isso o grupo da Saens Peña havia se detonado, após ter certeza que nenhuma pessoa seria atingida. O grupo do Méier não fez isso. Havia pessoas em volta. Esperaram os drones os explodirem. Heróis. Todos os 15.

Fez uma pausa. Como uma referência.

— Que Deus os tenha. Subi o Parque da Cidade. Ficara muito mais bonito praticamente abandonado. Caminhei por 4 horas. Consegui encontrar um ponto de visão para o Instituto. Dificilmente teriam descoberto o corpo do médico. Detestava visitas. Apertei o detonador. Um delicioso barulho de explosão seguido de um imenso cogumelo foi visto. Sabia que o drones escaneariam a Floresta da Tijuca inteira. Mas nunca me achariam. Sou ótimo em me esconder na mata. Longe do perigo das torres de detecção do instituto acessei a super-rede, incógnito. Enviei a senha para uma área isolada.

— A menina adoecida já estava quase morta e mais 2 já apresentavam sintomas. Baixamos a senha e imediatamente Alessandra sequenciou um DNA, com o trecho da senha e implantou-o em um vírus inócuo. Infectamos a menina em coma. Esperamos. Em apenas 4 horas os sintomas foram revertidos. Aplicamos em todas as outras. Estavam salvas!

Núbia se levantou e abraçou o Patriarca. – Obrigado Pai. – Fora ela a menina que quase morrera.

— Quando Glauco chegou, não comemorou antes de subir o Catonho e erguer um monumento de pedras para os 15 soldados mortos. 15 pedras em volta de uma placa simbolizando um DNA. Fomos todos, à noite. Apesar do risco, tínhamos que fazê-lo. Após isso festejamos. Essa foi a única vez que vi Glauco realmente embriagado. Cantava e jogava as meninas para o alto. Abraçava a todos. Até samba dançou.

O capitão sorriu. Pegou outra garrafa. Encheu o copo e ofereceu a Jan, que não recusou. O Patriarca continuou.

— Alessandra recolheu amostra de DNA de todos os 15 heróis. A ideia era usá-los para os representantes masculinos. Ela também havia retirado outros, femininos, das mulheres do nosso grupo. Queríamos criar uma população totalmente livre das marcas genéticas da Central. Mas limpar o DNA era complicado. Foram 3 anos para limpar o dela. Estava quase terminando o primeiro DNA masculino quando se foi.

Seus olhos se encheram d'água. Núbia também abaixou a cabeça. Até o capitão parecia chorar do fundo daquelas cavernas que se assemelhavam a olhos.

— Ela simplesmente não acordou. Faria 74 anos em 3 dias. Era comum vermos amigos morrerem. Éramos todos muito velhos. Mas Alessandra parecia ser imortal. Ninguém acreditava que morreria. Fizemos um imenso velório à noite e a enterramos junto ao monumento dos heróis. Naquela época eu quase parti também. Não fosse Glauco me segurar eu teria morrido. Mas teríamos que seguir o plano. Tínhamos que continuar a criação do espécime com DNA limpo. Só que não temos representante masculino e aqui são todos estéreis.

Nesse momento Jan teve um sobressalto e seu coração disparou. Ficou com vontade de gritar que não era estéril, mas na verdade não sabia. Fora os encontros em simuladores, teve apenas três namoradas, uma delas no colégio. De resto, só encontros esporádicos. Nunca engravidara nenhuma delas. Mas não deixaria que a raça humana fosse extinta. Tentaria. Imploraria se precisasse. Estava perdidamente apaixonado por Celeste.

— Nos últimos anos tudo o que fizemos foi continuar a clonagem. Temos 12 incubadoras que trabalham sem parar, desde a primeira filha. – Todos tratavam as meninas como filhas. De todos eles. 93 pais e mães, o mais novo com 59 anos. – Tentamos achar um biogeneticista nos bairros abandonados, mas não encontramos. Uma outra solução seria levar o DNA para um Instituto. Arriscado. Outra maneira seria converter um biogeneticista para nossa causa. Praticamente impossível, além de perigoso. Vocês mesmos só se convenceram de tudo isso depois do que passaram.

— Preciso ver essas amostras! – Sílvia disse decidida. – Se houver qualquer possibilidade de continuar o estudo da Doutora Alessandra farei isso! Há 30 minutos ainda poderia pensar em voltar a minha vida alienada. Agora estou totalmente decidida a ajudar a sua causa, senhor. E ainda mais: agradeço por ter-me aberto os olhos. Estive no limbo da história por muito tempo. Não mais!

Um brilho surgiu nos olhos do Patriarca.

— Também estou nessa, senhor. – Disse Ed. – Pode contar comigo no que precisar. Já invadi a Central uma vez. Faço de novo. Mas dessa vez não deixarei bit4 sobre byte.

— E eu! – gritou Jan, levantando-se – Alisto-me agora nessa batalha! Vamos povoar o planeta com o mais puro DNA humano!

Glauco gargalhou frouxo com o comentário do rapaz. O whisky fizera efeito. Como eram fracos para bebidas esses citadinos.

— Parece que ganhamos mais 3 soldados. – Celeste estava na porta. As mãos para trás, como em posição de sentido. Jan não precisou olhar sua mão para identificar imediatamente que era ela. – Estive no posto de observação. Há uma centena de drones esquadrinhando tudo. É importante que fiquemos aqui embaixo por pelo menos 10 dias até que todas as aranhas se vão. Não nos acharão. Selamos todos túneis. Suprimentos não nos faltam.

Ed olhou para a moça, usando o detector de íris. Nada de identificação.

— Você não tem nenhuma ficha na Central, ao contrário de sua irmã mais nova.

A moça admirou-se.

— Como sabe?

— Quando invadi a Central peguei um banco de íris na camada de exclusão. É de 10 anos atrás, mas já foi muito útil.

O capitão deu um tapa nas costas de Ed que quase o derrubou. Não sabia medir a própria força.

— Estou começando a gostar desse garoto!

Celeste manteve-se séria.

— A Mãe retirou a identificação por íris das duas primeiras gerações. Não conseguimos repetir o procedimento depois que ela faleceu.

— Eu tentarei. – Disse Sílvia. – Se vocês me mostrarem os arquivos.

O Patriarca se levantou.

— Creio que o dia foi extremamente cansativo para vocês. Devem descansar.

— Acordei quase 8 da noite. Aguento mais um pouco. Estou curiosa para ver os registros da doutora Alessandra.

— Ok. – O capitão falou do alto dos seus 2 metros. – Descansem, pois precisaremos tratar de outro assunto, ainda mais urgente que a clonagem. Precisamos descobrir o que é o protocolo 23.

Capítulo 13

Passara de meia-noite quando o Comandante Henrique entrou no Comando Estadual. ’Muitos drones’, pensou. Nunca houvera tantos. O comando era um lugar para homens, não máquinas. Há muito desconfiava que a humanidade corria perigo. Não era de bom tom brincar de criador. Conceberam a inteligência artificial e agora as máquinas eram superiores em raciocínio e força. Para que teriam necessidade do ser humano agora? Dali para a frente só precisariam deles mesmos. O líder Jeremias havia sido imprudente nesse aspecto. Era tão inteligente e não previra isso? Lembrou-se de quando os robôs substituíram todo o sistema jurídico.

“Durante a era de ouro ficou claro que não havia mais necessidade de promotor, juiz ou advogado. O Condão era capaz de julgar e sentenciar ao mesmo tempo. Como o programa estava estruturado sobre os princípios constitucionais, mantivera-se o contraditório e a ampla defesa, mas tudo no mesmo programa. A princípio foram indicados observadores para avaliar a eficiência da máquina. Dispensáveis, pois o programa sempre sentenciava na mesma medida. Decisões estritamente técnicas. No direito penal a dosimetria era baseada nos padrões fixados na lei, o que evitava uma exacerbação ou mitigação da pena. Pouco tempo depois, retiraram os observadores. Só havia o Condão na resolução jurídica. Alguns anos depois, embutiram o programa nos drones. A partir daquilo, o juízo ia até o cidadão. Qualquer problema de ordem jurídica era resolvido “in loco”. Bastava chamar os drones. Não demorou para que o Condão fosse também inserido nos drones de segurança. A sentença era dada no local da apreensão, antes mesmo da detenção. ”

O comandante ainda era tenente nessa época. Servira um bom tempo na Força de Segurança, colocando corruptos na cadeia. Adorava o Condão por tudo que havia proporcionado à sociedade. Mas a ferramenta também continha a semente da Inteligência Artificial. Via o perigo que os drones proporcionavam. Se aquela bola de neve continuasse rolando, não se saberia com que força atingiria seu alvo. Só duvidava que seu próprio amigo estaria envolvido. O que ele ganharia com isso a não ser a própria morte? Será que lhe prometeram algum tipo de imortalidade em um mundo virtual? Não acreditava que isso seria possível, conhecia-o.

Chegou ao salão do comando. Era um enorme espaço redondo sem nenhuma viga. Maravilha das novas ligas metálicas ultraleves. Aproximou-se do amigo. Só havia os dois na sala.

— Aldren. Ainda posso dizer que é bom revê-lo, apesar das circunstâncias.

— Henrique, meu amigo. Sua presença é sempre satisfatória, em quaisquer circunstâncias.

Apertaram fortemente as mãos.

— Gostaria de estar com o mesmo aspecto tranquilo que você. – Disse o comandante nervosamente. Suas mãos suavam e a perna não parava. – Não sei como não lhe encaixa isso na mente, mas as máquinas estão notoriamente tomando conta de tudo. Aquele androide. Até sua face parece viva. Hoje foi capaz de dizer algo que a humanidade vem negando, talvez num bloqueio próprio da mente. Aldren… – olhou para o amigo, angustiado.— Ele disse que se as máquinas quiserem podem exterminar toda a nossa espécie, mas que não estão preparando nenhuma revolta cibernética. Até quando? Em algum momento seremos dispensáveis. Admiro-me que ainda estejamos vivos. Temos que reunir todos os comandos e planejar o desligamento total da Central. Não tenho a mínima ideia de como fazer isso. Caso não consigamos, teremos uma guerra.

O Comandante Estadual suspirou.

— Henrique. Não haverá guerra. As máquinas não tem interesse em acabar com a humanidade.

— Isso não tem lógica, Aldren. Se não fizermos algo viraremos fósseis. E pior: não haverá sequer registro de que estivemos nesse planeta!

O amigo riu.

— Você não acredita em mim. Mas talvez acredite em outra pessoa.

— Quem? Você sabe que não existe outra pessoa no comando em quem eu confie a não ser você. Mas parece que até nisso eu estava errado. Está do lado deles ou do nosso?

— Nessa pessoa você vai acreditar.

Uma grande imagem holográfica de projeção apareceu diante deles. Em pé, de terno. Ainda com feições joviais. ’Era ele? Não era possível! Estava morto!'

— Boa noite, Comandante Henrique. Creio que, apesar de tudo que o comandante Aldren disse, o senhor ainda precise de alguns esclarecimentos.

— Líder! – Bateu continência. Depois percebeu que poderia estar saudando uma máquina. – Pelo que sei, o senhor está morto. Por uma imagem holográfica não posso deduzir que não seja um robô em mais um engodo.

Jeremias riu.

— Estou bem vivo, Comandante Henrique. Mas mesmo que não estivesse, o que tenho a dizer agora independe disso.

O comandante não disse nada. Apenas manteve-se atento.

— Está claro para qualquer um que as máquinas alcançaram um nível de inteligência muito superior à raça humana. Está claro também que é praticamente impossível para nós confrontá-los e vencê-los em batalha, apesar de que sei que a humanidade abraçaria essa guerra. O homem nasceu assim, naturalmente lutando pela vida. Não seria agora que fugiria do combate.

Henrique assentiu com a cabeça.

— Acontece comandante, que apesar de todo avanço tecnológico ou de força, a inteligência artificial não nos superou, não da forma que você deduziu.

O comandante parecia surpreso. Fora a primeira vez que ouvira aquilo. Seria mesmo o Líder falando?

— Caro Henrique. Não posso lhe dizer que isso não foi ponderado pela mente eletrônica da Central, mas antes vou lhe contar como a concebi. O primeiro protótipo de software do Condão era um interpretador de códigos básico. Todos os casos análogos que eu tentava resolver davam resultados diferentes quando eu inseria as provas. Mesmo que fosse praticamente o mesmo caso, havia algo no tratamento das provas que não batia. Portanto, desde o início foi necessária a utilização da inteligência artificial. O Condão não poderia ser um programa cartesiano. Inseri mais de 430 mil casos no sistema até que ele estabelecesse padrões através dos métodos de aprendizagem. De forma alguma inseri doutrina ou jurisprudência contaminadas pela subjetividade humana e foi isso que levou o programa ao sucesso imediato, por se basear apenas nas deduções lógicas induzidas pelos princípios constitucionais. Obviamente tive que lançar mão da lógica difusa de ponderação, mas sempre com a preocupação de manter os padrões. Naquele momento evitei qualquer tipo de uso de redes neurais. Não queria, nem de perto, que a máquina se comportasse como algo próximo ao cérebro humano.

O comandante estava zonzo de tanta informação computacional e mais impaciente do que antes. O Líder pareceu perceber isso.

— Bem, as questões de ordem técnica podem ser vistas em alguns manuais. De qualquer forma, cada vez que uma nova versão do software era lançada, a inteligência artificial sofria um upgrade. Quando o programa foi institucionalizado, verifiquei que a máquina estava criando ponderações sobre alguns princípios constitucionais. Ainda não aplicavam tais ponderações, apenas as criava e mantinha-as classificadas. Vi que o software estava tomando decisões próprias. Naquele momento, levantei pela primeira vez a hipótese de a inteligência artificial superar a humana a ponto de dispensá-la. Ainda assim, inseri cada vez mais recursos no programa, separando-os em módulos. Tive a intuição de que daria certo.

Henrique se arrepiou. O líder estava louco. Decidira o futuro da humanidade por uma intuição! Que diabos!

— Alguns anos depois resolvi criar a Central. O software já havia se transformado em algo gigantesco. Não fazia sentido mantê-lo em máquinas pequenas. Construí o maior conjunto de processadores do mundo. Isolado, a princípio, da super-rede, ou de qualquer tipo de rede lógica. Inseri todos os módulos de inteligência artificial, que havia mantido separados. Agora sim, tinha um supercomputador capaz de decidir, dialogar e questionar mais do que códigos legais. Poderia calcular e ponderar sobre qualquer coisa. E foi aí que fiz a pergunta crucial:

“Qual o percentual de benefícios e malefícios que a extinção da humanidade causaria para a existência das máquinas?”

— Eram muitas variáveis. Até para um supercomputador. O tempo de cálculo estimado era de 6 horas. Não consegui sair da frente dele até que acabasse. O resultado final veio na tela: “Benefícios 3% – malefícios 97%”. Minha intuição estava certa. Não era interessante para as máquinas a extinção da humanidade. Os 3% de benefícios se dariam apenas com a desnecessidade de prover alimentação. Para uma máquina é muito mais fácil se energizar do que para um homem. Existem inúmeros meios de se obter eletricidade, inclusive com a incipiente microfusão, o que dispensaria um recarregamento externo por séculos. Fiz a pergunta inversa:

“Qual o percentual de benefícios e malefícios que a extinção das máquinas causaria para a existência da humanidade?”

— A resposta foi pior. “Benefícios 0,33% – malefícios 99,67%”. De fato, a possibilidade da raça humana se extinguir ou voltar a barbárie seria enorme. Então fiz a pergunta derradeira, já esperando uma resposta satisfatória:

“Qual o percentual de benefícios e malefícios na coexistência entre máquinas e homens?”

— A resposta: “Não há malefícios.”. Era isso. O melhor caminho. Uma existência em paridade entre homens e máquinas. Mas nenhuma submissão entre ambos.

— Como assim, senhor? Quer dizer que a tendência é que esses trambolhos estejam livres por aí, tomando óleo em bares e ganhando todas as olimpíadas? Além disso, a superioridade deles é enorme! Não creio que se contentarão em sustentar uma raça inferior.

— Comandante. Veja o que está falando? Soa como os senhores de escravos da antiguidade. Não aguentavam ver negros na sua calçada. Mas você tocou em um ponto importante: a humanidade terá que se desenvolver. Biologicamente. Não podemos ficar tão para trás a ponto de sermos insignificantes. E para isso a biogenética avança a passos largos. Teremos um upgrade mental nos próximos anos, com as novas gerações. Como próximo passo, tentaremos dobrar a capacidade cognitiva geneticamente. Mas pode-se ver que o nível intelectual já é muito alto. Não ficaremos para trás se é o que teme. Quanto às olimpíadas, não posso garantir nada. – Sorriu. – Pense um pouco comandante: a Central tem mais de 50 anos. Naquele momento já era uma máquina superinteligente. Depois que liberei seu acesso à super-rede, ganhou mais poder. Ela controla drones de todos os tipos há décadas. Crasso não estava errado. Se quisessem, já teriam dado um fim ao homem.

Henrique estava matutando sobre aquilo. Não via com bons olhos uma igualdade entre máquinas e homens. Sempre conhecera robôs servindo-o. Mas raciocinou sobre o que disse o comandante: sendo tão ou mais inteligentes que o homem, tratá-los como serviçais pareceria como a forma que os senhores de escravos tratavam os negros. E isso ocorrera até há menos de 250 anos atrás. Ainda assim, não acreditava que aqueles montes de parafusos tivessem qualquer sentimento. De qualquer modo, em relação à extinção humana o Líder e Crasso estavam certos: se as máquinas quisessem já a teriam realizado.

— O que a Organização das Nações Unidas pensa disso? – Após o Condão e à criação da Central, as decisões dadas pelas Nações Unidas ganharam força significante.

— Estão de acordo. Mas não é questão de concordar, comandante. É inevitável. E o melhor: Não envolve mortes nem sofrimento. Só evolução. Um novo passo para toda a civilização, que agora contará com homens e máquinas.

O comandante estava chocado, mas resignado. De qualquer forma, seria melhor do que uma guerra civil. Mas sua intuição de policial ainda dizia que havia alguma coisa errada, alguma peça não encaixava.

— Se for assim Líder, devemos seguir os rumos que o futuro nos guarda. Não se briga com a inevitabilidade. Só gostaria de fazer um pedido. Faço-o junto ao meu amigo e também comandante estadual, Aldren.

— Prossiga.

— Gostaria que o Comando fosse mantido como um departamento humano, e sempre fosse gerido por um homem, nunca por uma máquina. Sei que é pedir demais. Pelo menos o senhor poderia ponderar sobre isso?

— Claro, Henrique. Isso já foi acordado com a Central. Ela também faz questão de que tenhamos sempre as duas formas investigativas e de força ostensiva. Considere esse pedido aceito.

Dito aquilo a imagem se desfez e Aldren voltou-se para o comandante.

— Acredite Henrique: quando ouvi essa história pela primeira vez fiquei exatamente como você está agora.

— Com certeza eu acredito. E também sei o porquê do segredo: assim como eu, a população em geral não aguentaria uma informação dessas. Não de uma vez. Terá que ser tudo bem preparado. Porra, Aldren! Onde fomos nos meter?

— Bem no meio do futuro, amigo.

1Têmis era a deusa grega guardiã dos juramentos dos homens e da lei, sendo que era costumeiro invocá-la nos julgamentos perante os magistrados. Por isso, foi por vezes tida como deusa da justiça, título atribuído na realidade a Dice cuja equivalente romana é a Deusa Justiça.

2Broadcasting (do Inglês to broadcast, "transmitir") ou radiodifusão é o processo pelo qual se transmite ou difunde determinada informação, tendo como principal característica que a mesma informação está sendo enviada para muitos receptores ao mesmo tempo. Este termo é utilizado em rádio, telecomunicações e em informática.

3O Patriarca nomeou Maciço do Catonho o conjunto formado pelo Morro da Caixa D'Água e o Morro do Valqueire, cortados pela Estrada do Catonho.

4Bit (simplificação para dígito binário, "BInary digiT" em inglês) é a menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida. Usada na Computação e na Teoria da Informação. Um bit pode assumir somente 2 valores, por exemplo: 0 ou 1, falso ou verdadeiro respectivamente. Byte é o conjunto de 8 bits.

Continue Reading

You'll Also Like

Kairos By leigh heasley

Science Fiction

842K 23K 28
Time travel is legal and Ada Blum is looking for love. But what happens when one of her charming bachelors from the past makes his way to the present...