A Ordem: O Círculo das Armas

By TattahNascimento

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A Ordem é uma irmandade milenar, cujo objetivo é oferecer conforto, cura e proteção as pessoas. Seus membros... More

Prólogo
A Lenda
A Hospitalidade
A Mão Assassina
A Família
O Guerreiro dos Mares
Uma Marca de Morte
Um Amuleto de Sangue
Nebulare
Analyn
Auriva
Maxine
Florinae
Vermelho
Castir
Zarif
Azul como o mar
O palácio do sul
Flyn
Manir
Sangue Deminara
Lunar
O círculo
Ishtar
Fios de luz e união
Dashtru
Naria
Assassino
Laio
Valesol
Sob a luz do luar
Traiçoeiro
O poder de um Castir
Sombras
Reencontro
Bórian
Érion
Tucsianas
Colina Merida
Em meio à tempestade
O sinal verde
Lâminas de Ar
Adeus
Depois da tempestade
Portões Abertos
Mirides
Nikal
Zefir
Firense
A cor do círculo protetor
O inimigo é a Ordem
Sobre mentiras e traições
Branco e Vermelho
Spectu to Castir
O círculo do fogo
Caixão de Ar
A voz da terra - [FINAL]

A Ordem

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By TattahNascimento


*

Marie acompanhava a aproximação do barco com olhar sereno, ao contrário do mar, que naquele dia estava agitado e sombrio. Nuvens escuras e espessas enfeitavam o horizonte, anunciando que uma tempestade logo abandonaria o continente e seguiria para a ilha em que se encontrava.

A embarcação ainda estava distante, mas apertou os olhos e conseguiu distinguir as vestimentas dos seus ocupantes. Entre o marrom encardido do barqueiro e o cinza escuro dos novos ordenados, avistou o verde escuro da túnica de Virnan e Petro.

Um leve palpitar de alegria lhe tomou.

Não via a amiga desde que partiu para o continente, sob a incumbência de aplicar os testes para o ingresso de novos ordenados. Era um trabalho que ela nunca apreciou, mas tinha pedido a grã-mestra para executá-lo. Infelizmente, Marie sabia que o motivo não foi o desejo de servir a Ordem, mas a vontade de afastar-se dela.

O barco estava próximo, agora. Já conseguia distinguir a face de traços delicados da guardiã, que estava próxima ao barqueiro, enquanto Petro sentava-se entre os ordenados. Daquela distância, Virnan parecia uma criança, já que era mais baixa e magra que a maioria das mulheres daquelas terras.

— Só três — Fantin falou ao seu lado, trazendo a atenção de Marie para si.

Onde havia uma delicadeza excessiva em Virnan, havia aspereza em Fantin. Não era uma mulher feia, pelo contrário. Possuía um dos rostos mais belos dentre as mulheres da Ordem, entretanto era dona de gestos bruscos e palavras que, embora amenas e agradáveis, sempre soavam rudes.

Ela continuou, com um leve estalar de lábios:

— Estou impressionada. Jurava que essa galhofeira iria trazer um exército consigo. Veja o semblante emburrado de Petro. Deve ter passado por maus bocados ao lado dela.

De fato, o guardião em questão mirava a companheira de uma forma nada amigável, mas esta parecia, ou, mais acertadamente, fingia não notar.

"Você não gosta mesmo dela."  — Marie gesticulou, traçando sinais delicados no ar.

O fazia devagar, para que a companheira conseguisse lhe compreender bem. Mesmo após décadas de convivência, Fantin, assim como outros ordenados, ainda tinha um pouco de dificuldade para compreender a linguagem de sinais.

— Não é uma questão de gostar ou desgostar. Virnan tem lá suas qualidades. Não posso negar que é uma excelente guardiã, mas ainda não engoli aquela história do gato, nem aquela dos lençóis e tantas outras. Às vezes, me pergunto como alguém tão pequeno pode causar tamanho estrago.

Marie sorriu, semicerrando os olhos, e continuou traçando novos sinais no ar:

"Sei que para você foram brincadeiras desagradáveis."

Tomou o cuidado de não dizer que se divertiu com as peças que ela sofreu e mordiscou o lábio para não aumentar o sorriso, enquanto Fantin franzia a testa concentrada na interpretação dos gestos.

"Mas Virnan é muito séria quando se trata do trabalho que desempenha na Ordem. Jamais permitiria que qualquer um, que não fosse merecedor, ingressasse."

A outra deu de ombros, deixando claro que não acreditava muito nisso. A mulher em questão era uma das melhores guardiãs que a Ordem já teve, mas era igualmente irresponsável e dada a fazer travessuras com os companheiros.

— Temo que ela nunca mude e continue nos atormentando com essas traquinagens. — Fantin balançou os ombros, retendo um suspiro, e mudou de assunto. — Ela nunca se ofereceu para esse trabalho.

Marie concordou com um inclinar de cabeça, mas não se manifestou além disso.

— Tive a impressão de que vocês andavam um pouco distantes antes dela partir. — Fantin continuou, como se não tivesse nada melhor para falar, mas suas intenções estavam claras.

Marie respirou fundo, alternando o peso entre as pernas. O rumo que a conversa tomava a incomodava, ainda que não estivesse disposta a falar sobre suas desavenças com a guardiã que, um dia, foi sua pupila e, agora, era uma grande amiga. Fantin não era a primeira a se deixar levar pela curiosidade em relação ao assunto. Como Marie não manifestou interesse em tecer comentários, ela parou de observá-la com um leve estalar de lábios e voltou-se para o mar.

O barco, finalmente, tinha chegado ao seu destino. O barqueiro saltou dele para a estrutura de madeira envelhecida e um pouco apodrecida, que era o cais. A guardiã Virnan se prontificou a ajudar os jovens ordenados a desembarcarem e sorriu quando se viu sozinha com Petro na embarcação. O companheiro lhe disse algo, fazendo uma careta de desagrado.

— Acho que Petro estava mais irritado do que aparentava. — Fantin quebrou o silêncio, novamente.

"E vai ficar mais."  — Marie respondeu, mordiscando o lábio inferior. Era conhecedora dos humores da amiga e ex-pupila e percebia o que se aproximava.

— Ela não faria isso, faria? — Indagou a outra mulher, passando a mão pelos cabelos loiros que o vento forte insistia em desalinhar. Ela desistira, há muito, de usar o capuz da túnica pelo mesmo motivo. Revirou os olhos para si mesma. — Não sei como pude perguntar isso. É claro que ela irá fazer! Ficarei desapontada se não fizer.

Alguns metros adiante, Virnan sorriu para o companheiro, fazendo pouco caso do que dizia, e saltou para o píer causando desequilíbrio na embarcação. Esticou a mão para ajudá-lo e, desequilibrado, Petro aceitou. Ele arrependeu-se um instante depois, pois foi atirado na água gelada, sem cerimônia. Virnan ainda sorria, ouvindo os xingamentos do guardião ensopado, quando caminhou pelo atracadouro com a elegância que lhe era característica. Os jovens ordenados a seguiam de forma atrapalhada, claramente desconcertados com o que viram.

— E ela fez! — Fantin falou, tentando se decidir se ria ou mantinha a seriedade costumeira. Não podia negar que, quando não era a vítima, divertia-se com as atitudes da guardiã.

Ao seu lado, Marie ocultou um sorrisinho com a mão.

— Você devia ter sido mais firme com ela durante o treinamento. — Decidiu-se pela seriedade.

"Não funcionaria. Só faz o que quer."  — Retrucou Marie, com ar indignado.

Virnan era uma mulher adulta e não podia lhe dizer como agir. Durante o treinamento, sempre foi exemplar e também era assim no que dizia respeito às suas responsabilidades na irmandade.

A madeira estalava sob os pés do grupo que se aproximava e as duas mestras assumiram semblantes mais sóbrios.

— Ainda cheiram a leite, mas são promissores — a recém-chegada disse, apontando para os três jovens que a seguiam. Sorriu de lado e se voltou para eles.

Mestra Fantin causou um pequeno susto nos novatos, quando falou:

— Sejam bem-vindos à Ordem. Assim que instalados, receberão instruções sobre o funcionamento do castelo e serão apresentados ao seu mentor. — Enquanto explanava, Petro se aproximou.

As botas encharcadas faziam um som engraçado e irritante a cada passo dado. O grupo de jovens parecia cansado e mareado, mas não passou despercebido às duas mulheres, os suspiros de alívio que deixaram escapar ao descobrirem que não seriam treinados pela mulher ou o homem que os trouxeram. Curvaram-se suavemente e Fantin fez um gesto para que a seguissem, murmurando um agradecimento para os guardiões. Petro esbarrou propositalmente em Virnan quando passou por ela e bufou ao ouvir uma sonora gargalhada desta.

— Esse daí, precisa aprender a se divertir mais! — Virnan torceu o nariz e se queixou para o vento, então se voltou para Marie, que a fitava curiosa e sempre dona de uma serenidade inquietante, embora temesse o tratamento que receberia.

A guardiã a contemplou por um longo instante, então sorriu mais largo, lhe ofereceu o braço e Marie o tomou. Às vezes, a mestra se surpreendia com a capacidade de Virnan abstrair-se do que lhe fazia mal, mas o brilho suave em seus olhos, de um verde cristalino, revelava que já não se sentia magoada. Apertou-se a ela, com um peso a lhe abandonar o peito.

Afastou-se para dizer, através de gestos cuidadosos:

"Estou feliz que não esteja mais zangada comigo."

Uma gargalhada escapou da amiga, enquanto a conduzia para seguirem pela praia, em vez de tomarem a estrada que os outros percorriam. Centenas de metros adiante, o Castelo da Ordem erguia-se imponente sobre um rochedo e, mesmo daquela distância, conseguiam ver a chama da pira na torre mais alta.

Sob uma bandeira de paz, a Ordem marchava em meio a campos de batalha, oferecendo conforto, segurança e cura a soldados e vítimas, não importando a que lado pertencessem. A Ordem jamais tomava partido e, por isso, seu castelo serviu de ponto de encontro neutro para discussões diplomáticas e tratados por incontáveis vezes. Seus membros eram honrados, admirados e respeitados em todos os cantos do continente e possuíam passe livre para cruzar qualquer reino.

— Jamais ficaria zangada com você. — Virnan divertia-se com o vento que insistia em lhe atirar os cabelos negros como a noite sobre a face e, também, com o desconcerto da amiga. Sem aviso, interrompeu o passo, a puxou pela nuca e a beijou, fazendo o momento perdurar pelo máximo possível.

Marie afastou-se, envolta pela surpresa e revolta do gesto. A mirou com a respiração entrecortada pela raiva. Mantinha os punhos cerrados, como se estivesse prestes a partir para a agressão física, entretanto girou sobre os calcanhares e tomou a direção do castelo.

— Ei! Diga algo! — Virnan a seguiu, rindo. Adorava a forma como a mestra ficava bonita quando zangada.

Ela não lhe deu ouvidos e percorreu uma centena de metros com passos duros. Não ousava olhar para trás, mas sua raiva aumentava sempre que o som das risadas da outra lhe chegava.

— Marie! — A guardiã mudou o tom e abandonou o riso na tentativa de acalmar a fúria dela. Novamente, foi ignorada e observou o intenso tom vermelho que recobria a pele pálida e levemente salpicada por sardas da mestra.

Adiantou o passo para alcançá-la, jogando no ar um gesto de irritação consigo mesma. Desta vez, fora longe demais. Mesmo assim, divertia-se com a situação. Pegou a mão dela para fazê-la parar.

— Marie! — Admirou o olhar castanho, impressionada pela transparência dos sentimentos nele.

"Você não pode sair por aí, beijando as pessoas assim!"

Ela traçou os gestos tão rápido, que Virnan teve um pouco de dificuldade para compreender os sinais.

"E pare de dizer que me ama!"

— Mas é o que sinto! E sei que também me ama. — Sorriu, convicta.

A mestra abriu a boca, revelando descrédito.

— Vejo como me olha quando tomamos banho de rio juntas — explicou a guardiã.

"Eu não te olho assim!"  — Marie agitou as mãos, indignada. A face ficando ainda mais vermelha.

— Ah, olha sim! — Virnan riu, debochada. — E não pense que por ter me dito um "não", deixarei de me sentir assim ou de expressar isso em voz alta sempre que me der vontade. Acostume-se, meu coração é todo seu.

Marie fechou os olhos e escorregou a ponta dos dedos até o nariz. Virnan sempre foi dada a brincadeiras nos momentos mais inesperados e inconvenientes, mas quando lhe disse que a amava, dois meses antes, falou de forma tão séria e contrária ao que geralmente fazia, que a assustou.

"Você é uma criança! Tenho idade para ser sua mãe."  — Argumentou, deixando de lado outra dezena de motivos que usou, anteriormente.  — "Além disso, sou sua superiora."

— Sou mais velha do que aparento e não seja exagerada, apenas dez anos nos separam em idade. — Sorriu, formando covinhas discretas nas bochechas.

"Achei que a viagem tiraria essa história da sua cabeça."

— Ora, como posso tirá-la da cabeça, se você está em meu coração?

"Por que brinca assim comigo?"

A guardiã fechou o semblante, estalando os lábios com impaciência.

— Se tem algo que nunca fiz, é brincar com você. Sabe bem o tamanho do respeito e admiração que lhe tenho. — Afirmou.

"Disse bem: respeito e admiração". A mestra abriu os braços.

— Que cresceram e se tornaram algo mais — Virnan concluiu.

Marie passou a mão na testa, irritada.

— Sinto muito — Virnan voltou-se para o mar e admirou as ondas por algum tempo.

Às suas costas, Marie lutava com a vontade de partir e a de ficar. Toda a alegria que a tomou ao vê-la desembarcar, tinha lhe abandonado e dado lugar a sentimentos conflituosos.

Resolveu ficar e, por algum tempo, enquanto ela fitava o oceano, dedicou-se a contemplar sua figura. Por fim, se aproximou e enlaçou a mão dela. Por que as coisas não podiam ser como antes dela dizer aquele terrível "Eu te amo"? Tudo era tão mais fácil e perfeito.

— Você é minha melhor amiga — Virnan falou, curvando um dos cantos da boca. — Na verdade, é a única que tenho. Aliás, é a única pessoa com quem me importo em muito tempo.

Virou-se para ela, ainda segurando-lhe a mão.

— Só achei que devia saber o que me inspira — tocou-lhe o queixo.

A mentora notou algo diferente naqueles olhos de uma cor preciosa. Uma tristeza que nunca tinha reparado e se questionou se a ex-discípula sempre a escondeu atrás dos gracejos e piadinhas. A guardiã piscou e aquelas impressões desapareceram quando disse:

— E se te beijei, é porque você tem lábios apetitosos. — Ficou na ponta dos pés e encostou a boca na dela. Dessa vez, não passou de um estalar de lábios. Então, se voltou para os portões do castelo ignorando os gestos revoltados de Marie, em meio a uma gargalhada.

A mestra permaneceu no mesmo lugar. Seus lábios se moviam, contorcidos pela contrariedade, mas nenhum som lhes escapou. A amiga ainda iria levá-la a cometer uma loucura. O cheiro da chuva no oceano lhe chegou e tomou a direção contrária a que ela pegou. Partiu para os pomares pisando duro e quase atropelou uma mulher que saía detrás de uma árvore.

Desviou do corpo idoso com um movimento gracioso e ligeiro, então se pôs a pedir desculpas através de gestos apressados.

— O que aconteceu? — A mulher deu fim ao seu constrangimento, tomando suas mãos.

A grã-mestra Melina arrastou os cantos da boca para cima, em um sorriso enrugado, mas gentil. Encarou o rosto afogueado, avaliando suas reações com interesse redobrado. Marie era sempre serena, bem diferente daquele momento.

"Ela fez de novo!" Contou Marie.

A idosa riu, já sabendo do que se tratava. Estava em seus aposentos, na torre norte do castelo, quando avistou as duas mulheres caminhando pela praia. Soltou uma gargalhada quando viu a mais moça roubar-lhe um beijo.

— Ela é jovem e brincalhona. Releve esses rompantes. — Afastou-se e cortou um cacho de frutinhas vermelhas, da árvore sob a qual estavam, e lhe entregou para que depositasse no cesto aos seus pés. Com os lábios apertados, Marie se dedicou à tarefa de auxiliá-la e, aos poucos, foi se acalmando enquanto ouvia o cantarolar das outras mulheres no pomar e o assovio discreto da idosa que ajudava.

Antes de recolher a cesta, gesticulou para ela:

"Virnan insiste em dizer que me ama."

Soprou o ar, com evidente cansaço. A grã-mestra interpretou isso como sendo causado pelo impacto que essa declaração lhe causou e não pelo esforço da tarefa que acabaram de desempenhar. Os olhos azuis da velha senhora brilharam, mascarando o pensamento que lhe ocorreu ao perceber seu transtorno.

— A Ordem não proíbe relacionamentos entre seus membros. Apenas exige que isso não ocorra durante os anos de treinamento. Virnan já é uma guardiã e, há muito, deixou de ser sua pupila. É bastante dedicada e promissora. Logo se tornará mestra, também. Não há mais empecilhos entre vocês.

"Somos boas amigas. Apenas isso!" Um tom rosado lhe tomava a face com impetuosidade.

A superiora coçou o queixo, com jeito de quem enxergava mais do que queriam lhe contar.

"Mas ela anda insistindo nessa história há algum tempo." Concluiu Marie.

— É tão ruim assim, saber que alguém lhe tem amor?

A mestra engoliu em seco e baixou o olhar. Não era ruim, pelo contrário, contudo aquilo não lhe pertencia.

"Isso não é para mim, a senhora sabe."

Melina balançou a cabeça, concordando. Nem todos podiam usufruir da felicidade de compartilhar a vida com alguém, cuja alma possui os mesmos anseios que a sua. Além disso, em se tratando de Virnan, tudo podia ser mesmo apenas uma brincadeira. Mas acreditava que não era esse o caso. Afinal, de todos os moradores do castelo, Marie era a única pessoa com a qual jamais brincou.

A guardiã sempre lhe dedicou um profundo respeito e se esforçou para aprender a linguagem de sinais para, assim, poder comunicar-se melhor com ela. Um gesto nobre e carinhoso, já que alguns de seus colegas falharam na mesma tarefa. Não foram poucos os que se impacientaram, chegando ao cúmulo de pedir para ficar sob a tutela de outro mestre.

De fato, Virnan foi a primeira pupila de Marie que terminou seu treinamento com ela. Talvez por isso, as duas formaram um laço forte de amizade. Vieram outros ordenados depois dela, mas jamais passaram o limite "mestre e aluno".

— Leve essas frutas para a cozinha. — Melina mirou o céu.

As nuvens que Marie avistou do atracadouro se aproximavam, e o vento frio trazia consigo algumas gotículas de água gelada.

— Conversarei com Virnan. Após o jantar, venha ter comigo em meus aposentos.

Marie inclinou a cabeça em agradecimento e se afastou para cumprir o ordenado, torcendo para que a grã-mestra conseguisse trazer bom-senso para a guardiã.

**

Verne se abrigava debaixo do alpendre de uma taverna caindo aos pedaços, ouvindo a música de má qualidade e a conversa dos bêbados no estabelecimento. A chuva que caía era serena, mas prometia tornar-se mais forte em breve.

A porta da taverna se abriu e um homem irrompeu, despejando o conteúdo do estômago na lama. Instantes depois, outra dupla de bêbados saiu do estabelecimento e o rebocou pela rua, entoando os versos de uma canção de pescadores. A porta se abriu pela terceira vez, dando passagem para um cavaleiro, um rosto conhecido.

— Então? — Verne indagou.

— Foi difícil achar alguém que se dispusesse a nos levar. Disseram que uma tempestade se aproxima e não podemos demorar muito para partir ou seremos pegos por ela no meio do caminho.

Dois homens saíram da taverna, enfiando-se dentro de capas surradas. Um deles sorriu para o cavaleiro, Fenris, e curvou-se quase até o chão ao reconhecer o escudo de Lorde Badir que adornava o sobretudo de Verne. O companheiro o imitou, atabalhoado.

— Meu príncipe — disse ele, e correu para o cais com o outro em seu encalço.

Fenris limpou a garganta, notando que o barco dos homens era menor do que imaginou.

— Vai ficar um pouco apertado — comentou, franzindo o cenho.

O lorde puxou o capuz da capa para a cabeça e saiu debaixo do alpendre. Mirou a ilha na qual almejava chegar. Era apenas um ponto escuro e desfocado, graças a chuva. No cais, um dos homens gesticulou, informando que estavam prontos para partir.

— Chame os outros — afastou-se em direção ao barco.

Caminhava pesadamente, forçando os ombros a manterem-se firmes. Preparava-se para a segunda missão mais difícil de sua vida. Curiosamente, a primeira também envolveu aquela ilha. Enquanto andava, relembrou a conversa que teve com a esposa, Emya, antes de deixar as muralhas acolhedoras de Midiane.

— Gostaria que não tivesse de ser assim — a esposa sussurrou.

Ele inspirou fundo, abrigando o ar gelado da manhã em seus pulmões pelo máximo de tempo possível, então cerrou as janelas e voltou-se para a cama. Demonstrou ligeira surpresa ao descobrir que estava acordada, e balançou a cabeça em acordo. Mesmo assim, obrigou-se a se manter em um silêncio inquietante, enquanto se enfiava dentro das roupas, que estavam dobradas, cuidadosamente, sobre uma cadeira.

Emya, que tinha se deixado cair em contemplação do teto, entregue a um mar de pensamentos revoltosos, se pôs de pé para auxiliá-lo na tarefa de colocar a couraça, como fizera centenas de vezes ao longo dos anos de casamento. Quando atou a última tira de couro, o sol despontava no horizonte e a luz se introduzia pelas frestas da janela, preenchendo o quarto com a palidez amarelada dos primeiros raios.

O marido lhe sorriu com ar cansado e agradecido.

— E se lutássemos? — Ela indagou.

Verne contraiu os lábios.

— Não podemos lutar, você sabe — retrucou ele, enfiando-se dentro do sobretudo e afivelando a espada na cintura, enquanto ela se afastava e sentava na cama.

— Não, claro que não! Por que lutar, se podemos arrastar uma princesa para um altar cerimonial e enfiar um punhal em seu coração para que o maldito demônio que beberá seu sangue nos deixe em paz?! — Alteou a voz. — Quantas foram antes dela? Quantas serão depois? Quem nos garante que teremos mais cinquenta anos de uma falsa paz?

O barqueiro lhe estendeu a mão enrugada, timidamente. Baixou a cabeça, submisso e envergonhado. O lorde pouco lhe prestou atenção, mas aceitou a mão que lhe firmou, enquanto adentrava na embarcação. Os pensamentos ainda fixos na conversa com a esposa.

— Isso tem de acabar, Verne! Emya voltou a ficar de pé.

— Me dê uma solução e o poder de matar aquele maldito cavaleiro e seu dragão, que o farei com alegria! — Rosnou ele, que abriu as janelas novamente e pousou as mãos sobre o parapeito para fitar o céu alaranjado. — Sua irmã aceitou o destino dela há muito tempo...

— Ela não teve escolha!

— Ninguém teve! — Ele baixou a cabeça, apertando firme as pedras em que se apoiava.

Emya fitou o chão. Se a irmã mais velha não tivesse sido eleita, Verne a teria desposado, como sempre foi seu desejo. O lorde se voltou para ela e forçou um sorriso que morreu um instante depois.

Há rumores que o Lorde de Axen tem planos diferentes. — Ela comentou.

Axen é um assassino! Verne resmungou.

Mesmo assim, se levanta contra aquele demônio. Às vezes, gostaria que tivesse sucesso.

Não se iluda, o que ele quer é controlar o poder do cavaleiro e, assim, dominar todo o mundo que conhecemos. Zangou-se, e ela calou-se por algum tempo, enquanto afastava as lágrimas que se avizinhavam. Eu a compreendo, necessita ter esperanças de que sua irmã não precisará participar da eleição definitiva, mas não deposite suas esperanças em Axen. Daquele lugar, nada de bom pode vir.

Não sou tola e alheia à política do reino, como os conselheiros do rei imaginam. Se falei em Axen, foi apenas para recordar que ainda existe gente que não se curva para o cavaleiro e não teme enfrentá-lo.

O esposo fez um gesto irritado.

Pois, antes de voltar a repetir tal coisa, recorde o que aconteceu com o Reino de Caeles.

Emya curvou os ombros, derrotada, e nunca pareceu tão pequena aos olhos dele, como naquele momento. Verne continuou a se vestir, jogando uma capa sobre os ombros.

Jamais conseguirei compreender os motivos que a levaram a decidir passar os últimos anos de sua vida enfiada naquela ilha.

— Acho o mesmo, ele cofiou a barba, depois de fazer um laço para prender a capa mas a Ordem tem seus atrativos. Ainda mais, para uma mulher como Analyn.

A esposa enxugou uma lágrima solitária, recordando:

— Se ela não tivesse ido para lá, vocês teriam se casado. Em vez disso, você ficou comigo.

— Foi tão ruim assim? — Ele questionou. Caminhou até ela e lhe fez um carinho no queixo.

— Eu sempre o amei. E sei que você me ama à sua maneira. Mas jamais será como o amor que teve e ainda tem por ela. — Escorregou a mão pelo peito largo.

O lorde pareceu derrotado por um instante. Mas afastou os pensamentos com um sorriso pueril. Não adiantava negar que ainda carregava fortes sentimentos pela cunhada. Emya era uma mulher inteligente e jamais se deixaria enganar por falsas declarações de amor, as quais nunca esteve disposto a fazer.

— Não falemos do passado. Não era meu destino casar com Analyn e não tenho do que me queixar. Fomos e ainda somos felizes juntos, não? Temos filhos bonitos e saudáveis e um reino que um dia governaremos lado a lado. É nosso dever fazer tudo que esteja ao nosso alcance para protegê-lo.

Afastou-se um pouco, concluindo:

— O cavaleiro e o dragão estão além do nosso alcance, mas se conseguirmos realizar o ritual, o exército de Axen também será derrotado.

Os remos tocaram a água, levando-os em direção à ilha. Estavam a algumas centenas de metros no mar, quando ele puxou o capuz, ocultando quase metade da face ao avistar a chegada dos primeiros cavaleiros na praia.

O que não contou para Emya, naquele dia, foi que das cinco eleitas para o ritual, apenas Analyn permanecia viva. Isso, graças à proteção da Ordem e o segredo, muito bem guardado, sobre seu paradeiro. Segredo que já tinha chegado aos ouvidos do Lorde de Axen, a quem se atribuía os assassinatos das outras eleitas.

— Foi por pouco! — Fenris soltou.

Verne não queria e nem iria comemorar. Assim que a tempestade passasse, a Ilha da Ordem se tornaria um campo de batalha.

— § —

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