A Caveira de Luz

By GuilhermeFerreira742

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Belman é cozinheiro de uma taberna, na cidade portuária de Mascapur. Sua vida se transforma ao conhecer uma g... More

Mapa de Kauree
Prólogo - Que cintila em qualquer lugar
Capítulo 2 - Lifa da rua
Capítulo 3 - Como contempla a maré
Capítulo 4 - Modos, algodão e lascas
Capítulo 5 - Sobre festejos e maldições
Capítulo 6 - Me'rik
Capítulo 7 - O preço da sugestão

Capítulo 1 - Algo estranho num dia comum

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By GuilhermeFerreira742

1

Os primeiros raios de luz maculavam o negrume do céu da manhã, trazendo o calor úmido e pouco invejável ao dia. Apenas mais uma manhã na vida monótona de um garoto órfão, que já passou seus momentos de apuro e acabou noutro tipo de vida. Belman Sigwex já tivera morado em outros lugares; distantes, além do Estreito, e não gostava muito do calor dali, deixava-o por muitas vezes ensebado, com falta de ar e atraia insetos.

Naquele árduo verão, do quadringentésimo trigésimo primeiro ano da herança de Káurea, as pessoas começavam a deixar suas moradas, bocejando, se arrumando e dando de comida aos animais de tração. Pessoas das quais o rapaz não era o melhor amigo, pelo menos não daquela rua de Mascapur, mas era onde se tinha para morar naquela metrópole abarrotada. Não que os desprezasse, no entanto, mas a maioria eram idosos resmungões ou pescadores que tinham pouco assunto interessante para partilhar.

No momento ele tinha parado para observar as naus e embarcações menores que iam e vinham. Não era uma novidade de cenário, afinal; morava ali fazia 5 anos, quase 6. Mas o motivo foi uma brisa impressionante que lhe tocou, um lugar tão quente quanto a Enseada Azul fazia esse tipo de agrado se tornar raro e apreciado. E na verdade, não foi só uma simples brisa, era algo totalmente incomum de existir em tal região. Era gelada, como se subitamente estivesse no antigo Norte, sentindo cada filete de vento lhe cortar como lâminas de neve. E assim que ela cessou, Belman voltou a sua realidade, confuso. Pensou um pouco, achando estranho, mas deu de ombros, quem seria ele para discutir o clima? Não passava de um garoto de 16 anos, que ralava numa taberna para ganhar seu pão.

Voltou a caminhar pela rua da beira-mar, e logo atravessou os 8 metros em arco da ponte de pedra sobre o canal central, que penetrava a cidade junto com gôndolas de especiarias que dividiam o caminho aquático com certa dificuldade.

A taberna na qual Belman trabalhava era um pouco afastada de Mascapur, além das casas de guarita que desenhavam o limite norte da cidade, na beira da estrada, esperando forasteiros famintos e apressados. A Tantom's tinha um certo monopólio naquela região periférica, pois qualquer outro estabelecimento que quisesse servir de concorrência falia em menos de um semestre. Isso se dava pelos prolongados estudos que o velho Tantom fez antes de abrir o lugar. Primeiro; viajantes cansados geralmente não se interessam em vasculhar o centro da cidade à procura de comida boa e descanso, isso era bem óbvio, mas ele foi um dos primeiros a ter tal epifania e por anos foi chamado e intitulado de sortudo cagão. Segundo, ao mesmo tempo em que servia de hospedaria para andarilhos, tinha seu próprio porto na Enseada Azul, logo atrás do estabelecimento, que atraia também marinheiros e pescadores de embarcações pequenas.

Assim que Belman deixou a cidade para trás não demorou a enxergá-la. Eram dois andares construídos por pedras de qualidade, irregulares para não perder o naipe rústico; ornamentos de cobre e madeira de mogno para portas, janelas e os cercados. Uma grande placa com o nome "Tantom's" entalhado pendia por cima da porta dupla de entrada, esculpida exclusivamente para chamar a atenção até dos transeuntes mais distraídos.

O dia não estava tão ruim quanto o rapaz esperava; apesar da câimbra que o acordou durante a madrugada e o calor abafante que o recebeu assim que abriu a porta para a rua, a Tantom's abrigava um número surpreendente de fregueses no período da manhã assim que ele entrou.

Acreditou ser o aniversário de alguém, dada a euforia que uma meia dúzia de homens condecorava uma moça que se sentava entre eles. De vestido verde desbotado e com um sorriso esperançoso no rosto, ela olhava os acompanhantes ao redor, triunfante e ansiosa pelo que viria. Um deles estendeu a mão que segurava uma caixa, e devolvendo o sorriso, começou a desenrolar o barbante que a prendia. A cara esticada da mulher rapidamente se desmanchou e se tornou num boquiaberto confuso.

– Essa é a melhor colher de madeira de toda a enseada – disse o homem barbudo e de olhos vidrados assim que a tirou da embalagem. – Consegui-a por um preço salgado, mas como se tratava de você...

– Uma colher? – a moça indagou, olhando para o homem como se este fosse alguma coisa que ela havia tirado da sola do sapato.

Os outros caíram na gargalhada, esbofetearam a mesa com lágrimas nos olhos, e um deles deu um cascudo no sujeito de barba.

– Seu pedaço de estrume, como ousa dar esta porcaria à srta Maglin? – disse ele, e foi tirando seu presente do bolso. Não era uma caixa, mas sim um saquinho de veludo, e mostrou com dois dedos de modo teatral para todos ao redor. – Nossa bela Mag merece mais do suas tranqueiras de quinta.

A moça se levantou, aplaudindo como uma criança e dando um beijo na bochecha do falante.

– Está vendo, Brando? – ela falou, olhando para o homem enrubescido por cima do ombro e com um sorriso travesso. – Deveria aprender com Vidin. Todo ano traz algo dispensável, mas francamente, um talher?

– Nada mais que bons modos, minha dama – orgulhou-se o homem em seus braços, e colocou o saquinho nas mãos da mesma que o apanharam como uma joia.

A mulher começou a retirar o que quer que fosse, e mais uma vez, seu sorriso desapareceu como uma vela apagando.

– Um colar... de algas? – ela indagou, transformando as sobrancelhas numa linha dura.

O homem virou-se de frente para ela e segurou suas duas mãos que envolviam o utensílio.

– Não é só um colar de algas, nesta incrível trança há todas as espécies de alga que se pode encontrar no leito da enseada. Passei a última tarde inteira colhendo-as e inspecionando-as, tudo para te impressionar, minha cara.

– Acredite, você impressionou – ela disse com o rosto furioso, largou o acessório no chão e explodiu de raiva. – Francamente, esta porra ainda cheira à maresia. Escutem aqui. Todos vocês.

E a gargalhada que havia iniciado se calou.

– Alguém aqui me dará algo que não seja artesanal ou comprado de um sem teto?

Ninguém respondeu, e foi o suficiente para ela deixar o estabelecimento, arfando de raiva enquanto segurava a saia do vestido, com o peito tão estufado que Belman suspeitou que sua coluna fosse dobrar para trás. Os homens ficaram pasmos e se entreolharam, e depois de um minuto se sentaram cabisbaixos e sem conversas. Foi o suficiente para fazer o resto da taberna, fora o grupo deles, explodir em risadas.

Tudo aquilo tirou de Belman um sorriso.

Observou os cantos do lugar e notou, que apesar de terem mais clientes que o comum, nada havia na maioria das mesas. Deu de ombros e se moveu até o bar. A taberna por dentro poderia facilmente ser chamada de "tão bonita quanto por fora", afinal não dava para esconder, Tantom tinha dinheiro e o gastava bem, por isso nunca tardava e as paredes trocavam de escudos e braseiros, além de mesas e cadeiras novas que ele alterava antes de que sugerissem um traço de envelhecimento, comprava-as de um fornecedor interiorano que já conhecia a eras. Ainda era cedo demais para ter música, portanto não havia ninguém no palanque lustroso à direita da entrada. Belman encontrou Tantom no lugar que ele sempre estivera, todos os dias, desde que o rapaz começara a trabalhar. Tantom tinha a tez morena; corpulento, porém forte nos braços, e se vestia com roupas largas abaixo de um avental branco. Ele limpava com dificuldade algo no fundo de uma caneca de madeira, e nem notou a presença do garoto até que chegasse bem perto. Levantou apenas os olhos quando o jovem botou as duas mãos no balcão.

– Bel – disse ele, abrindo um sorriso abaixo do bigode mustache. – Achei que nunca fosse aparecer.

– Eu demorei tanto assim? – perguntou Belman, levantando uma sobrancelha. – Que horas são?

– Já passa do terceiro sino, rapaz.

O garoto franziu o cenho, balançando a cabeça em leve negação.

– Eu não me importo – Tantom continuou. – Você trabalhou igual a um cachorro ontem, imaginei que fosse acordar tarde. – ele se virou, apanhou uma garrafa de rum e começou a servi-la na caneca que acabara de limpar. – Além do mais, esse pessoal está satisfeito só com a bebida, e os lá de cima ainda dormem como se tivessem sido maltratados.

Não fazia sentido para Belman, o terceiro sino significava o meio dia, e ele havia levantado assim que o sol raiou. Por quanto tempo teria ficado parado? Contemplando a brisa gelada no auge do verão.

– Que seja – o garoto se ouviu falar, ainda intrigado. – Ninguém pediu algum prato? Alguma porção?

– Só a moça que acabou de sair. Ainda bem, imagine se ela encontrasse uma alga no prato.

Trocaram risadas cansadas, e a bufadela de Tantom soou como um rosnado.

– Brincadeiras à parte – continuou – Estou achando um tanto preocupante a situação desse povo. Maglin sempre passou os aniversários aqui, e sempre ganhou coisas interessantes, nunca que não tivessem um valor moderado.

– Acha que estão ficando sem dinheiro?

– Eu tenho certeza de que estão ficando sem dinheiro. Não só eles como cada puto nessa cidade.

– Uma crise? – perguntou Belman, preocupado.

– Talvez – o homem respondeu, deixando a voz morrer. Ficaram um tempo em silêncio, pensando, e o taberneiro logo viu o aceno de um freguês vindo de um canto. – Você tem trabalho a fazer – e meneou a cabeça na direção do homem, olhando para Belman sugestivamente.

2

Assim o jovem embarcou em mais um de seus dias na Tantom's. Alguns achavam estranho e curioso, mas lá ele era cozinheiro e garçom simultaneamente. É claro que ele precisaria de ajuda quando a taberna lotava, e quase toda noite lotava, mas sempre conseguia concluir bem o trabalho. Belman morava sozinho na região centro-mar de Mascapur, e com o aluguel para pagar, ele precisaria receber um pouco mais que o normal.

A manhã era quase sempre escassa de clientes, a não ser aqueles que passavam a noite nos quartos do andar de cima e desciam no dia seguinte para tomar café da manhã. Após o terceiro sino que começava a se encher consideravelmente, com bêbados de Mascapur, pescadores e forasteiros, e era aí que o trabalho do rapaz se tornava mais árduo.

Haviam mais três garçons além dele: Tuda, Frida e Andros Todos de carisma elevado, e se provavam bem suficientes para receber a clientela, mesmo nos dias apinhados. Andros era um homem de vinte e poucos, de cabelo preto e pele morena, se vestia com roupas apertadas e as vezes era até um pouco formal de mais. Tuda e Frida eram irmãs, de cabelo ruivo, não gêmeas como seria mais engraçado, mas com um espaço razoável de idade para fazer de uma mais responsável do que a outra. Frida era a mais velha, também de vinte e poucos, e Tuda um pouco mais velha que Belman.

Junto com o quarto badalar, que indicava as duas horas da tarde, o bardo se apresentava. Edbert era seu nome, loiro, com ombros largos e sorriso branco. Um grande amigo de Belman e de todos ali; conversavam, riam e bebiam, quando havia tempo, é claro. Suas músicas eram quase todas originais e ele se preocupava em adequá-las conforme o clima. Seu violino era como um braço, cuidado e protegido para que nunca se separassem. Amava-o como um pai, e fazia questão de que sempre estivesse limpo e bem polido.

Na cozinha era onde Belman se destacava. sua companheira era Bisca, mulher de cabelos negros, mãos ágeis e não tão gentil quanto os outros. Sempre dava ordens à Belman, apesar de serem parceiros de mesmo escalão. Ele não a odiava por isso, via nela uma pessoa que levava o trabalho a sério, e isso era algo que o garoto respeitava. Sempre amarrava seu cabelo num coque, e Belman a imitava, para que não houvesse riscos de caírem fios na comida. Lavar as mãos era uma lei após tocar qualquer coisa que não fosse alimento, ou seja, após abrir portas, se esbarrar em pessoas ou se apoiar em qualquer lugar. Isso eles levavam como uma filosofia de vida, um profissionalismo que não podia ser ignorado.

Diferente de Belman, Bisca não era tão conhecida pela clientela, principalmente por ele também ser garçom, e assim ter um contato direto com as pessoas do salão, que perguntavam sobre a boa comida e quem as teria feito, e ele, com educação, respondia-os sempre citando Bisca, mas recebendo a maior parte do crédito por estar sempre perto dos clientes. Ela inclusive evitava se importar com elogios e condecorações, seu trabalho era rígido e impecável, e preferia gastar seu bom humor em casa com a família. Isso não podia caber a Belman, o que ele tomava por família eram aqueles que trabalhavam na taberna em questão, o lugar onde ele podia se sentir em casa, entre pessoas que lhe apoiavam e confiavam. Seria só um terceiro observar com cuidado, que facilmente notaria quais eram suas figuras paterna, materna e irmãos.

O período que Belman mais gostava era a noite, onde os clientes que mais apareciam eram aqueles que gostavam de contar histórias e ajudar Edbert na cantoria e sons ritmados.

No mais, a comida era boa, a recepção era gentil, as músicas eram originais e o silêncio noturno era, de fato, um silêncio.

3

Durante o período da noite deste mesmo dia, o jovem cozinheiro saía pela porta da cozinha, trazendo consigo uma bandeja de bronze com sidras e petiscos suínos. Mal ele deu dois passos além do recinto, quando pôde ouvir as exclamações vindouras de um grupo grande reunido no salão, que juntavam suas mesas e partilhavam de uma história envolvente.

– Quando mais três surgiram, o Alderick e seu bando não tinham pólvora o suficiente para afundar tantos – dizia um homem corpulento e de barba negra volumosa para o resto do grupo, com mais de dez pessoas. – Além disso já estava exausto, com cortes por todo lado e uma perna faltando.

– Uma perna faltando?! – indagou um rapaz, pouco mais novo que Belman.

– Deixe o velho contar a história, porra – repreendeu-o uma mulher, que pela distância que estavam, Belman acreditou ser sua mãe ou irmã. Todos a fitaram com aquele olhar de "já era hora de você calar o fedelho".

O homem pigarreou e continuou:

– Da caverna em que estava, ele não tinha muitas escolhas. Fugir? Só havia uma entrada. Lutar? Eram três batalhões armados até os dentes – e todos acenaram com a cabeça esperando o resto. – E então ele ordenou o impensável ao seu bando...

Até mesmo Edbert havia parado de se concentrar no que tocava para prestar atenção na história. No mais, tudo que fazia era tocar notas simples, como uma trilha sonora sutil que adicionava ao clima. Tantom observava do bar, de braços cruzados e sorrindo.

– O Alderick teve sorte de que seu barco estava em um canto da caverna nesse momento, ou seja, nada de flancos. Ele ordenou que a maioria dos tripulantes fizesse peso na lateral do navio, e apenas três ficassem de prontidão nos canhões do outro lado, e assim o fizeram. Quando a embarcação angulou de uma forma favorável, ele enfim gritou... – e fez uma pausa para ver quem descobria a palavra.

– Fogo! – exclamou o jovem de antes, entusiasmado e apertando os punhos com força.

– Fogo! – o homem repetiu, tomando o entusiasmo para si e dando um murrão na mesa, fazendo algumas canecas tremerem e quase caírem. – E então parte do teto da caverna desmoronou, bem na frente das embarcações inimigas. As pedras que caíram eram quase maiores que o barco de Alderick, e faziam a água dançar loucamente à medida em que a alcançavam.

– Então ele errou? – perguntou uma mulher da plateia.

– Errou? – o contador de histórias gargalhou. – Ele acertou exatamente onde queria. O que o Alderick almejava era a luz do sol, que invadiu a caverna como lanças fluorescentes.

– Por que? – o menino indagou, agitado.

– Por que o Alderick, além de ser o maior pirata do Mar dos Restantes, que tinha o maior bando possível num barco pequeno e ágil – e fez uma pausa para aumentar a surpresa. – Controlava totalmente os espectros da luz.

Edbert tocou uma nota de suspense, e todos alongaram testa, soltando suspiros de exclamação.

Belman continuou a andar para além do grupo, afinal, nenhum daqueles tinham pedido as bebidas e a porção de toucinho, mas assim que passou por eles pôde ouvir os murmúrios que soltaram após a revelação.

– E então ele apontou uma mão em direção à claridade, suspirou algumas palavras e a luz se intensificou. Seu bando já conhecia bem tal poder, e taparam seus olhos de imediato. As outras embarcações, no entanto, tiveram sérios problemas com cegueira.

– Ficaram cegos? – um homem ao lado perguntou, sorrindo.

– Cada um deles.

– E aí?

– Não é óbvio? Alderick ainda conseguia navegar, então como sua única e última escolha, passou pelas as embarcações inimigas, em meio a uma chuva de disparos desorientados de canhões, e desapareceu pela entrada da caverna.

E três homens, evidentemente amigos, se levantaram de supetão, assustando o resto do grupo que ouvia a história. Eles gritaram, brindaram e se empurraram com força, seja lá por que.

– Isso é que é história, porra! – berrou um deles para os dois amigos, claramente bêbados.

– Não é verdade Don? – o mais baixo concordou. – O velho sabe entreter.

– Velho, por que não viaja conosco? Qual é o seu nome? – o terceiro e mais forte perguntou, tinha uma clássica voz abobada de brutamontes.

O contador de histórias, claramente lisonjeado, respondeu:

– Sou Mamber, é um prazer que tenham gostado. Bem, também sou viajante, quem sabe nós não marcamos algo?

Foi a partir dali que Belman começou a ouvir apenas alguns murmúrios entre eles.

E então por algum motivo o jovem refletiu. Ele não era aquele que ouvia a história, nem aquele que contava a história, tampouco aquele sobre quem se contava a história. Era apenas o cozinheiro, e naquela roda estavam todos os elementos que ele não poderia ser. Balançou a cabeça e continuou andando até a mesa que lhe esperava, ele se achava bom nisso: expulsar pensamentos que o intrigavam.

As duas moças ouviam a história de longe, sentadas numa mesa redonda pequena, observando o exaltado grupo de rabo de olho. Notaram Belman apenas quando ele chegou bem perto. Uma delas, de cabelos puramente negros e meio amarrados atrás, abriu um sorriso comprido ao vê-lo, a outra, de cabelos castanhos soltos e bem longos também sorriu, mas nem tanto.

– Para as duas damas, que sorriem na cor de Jasmim – Belman se ouviu galantear, devolvendo um sorriso cortês e reconfortante, enquanto pousava as taças, a comida e os pratos na mesa. – Um par de sidras e uma porção de toucinho.

Notou que os olhos da mulher de cabelos escuros não se despregavam dele.

– Você deve ser o cozinheiro de que tanto falam – disse ela, com uma delicadeza incomum, enquanto usava sua mão como apoio para o queixo.

O garoto se sentiu enrubescer, pois ela era muito bonita, de fato, já estava acostumado com esse tipo de comentário por parte da clientela casual.

– Talvez eu seja – respondeu, enquanto anotava os preços em um bloco de fichas. – Já lhe disseram sobre mim?

– Alguns, por aí, dizem que é um rapaz gentil, fofo, e que faz os pratos da Meliborgo parecerem sobras de domingo.

– Não posso dizer que sou tudo isso – disse ele com um sorriso tímido.

– Seu toucinho nos dirá se de fato é – e pela primeira vez olhou para a mesa. – O cheiro é divino, devo admitir.

A outra moça levou um pedaço pequeno ao paladar e sua feição foi de surpresa e agrado.

– É esplêndido – disse ela, de boca cheia. – Harmoniza muito bem com a bebida.

– Fritado no Óleo de Demadasi, com um enxágue suave de Rum dos Campos. – disse Belman.

– Como consegue cozinhar e servir ao mesmo tempo? – a de cabelos escuros perguntou, olhando o garoto por cima do ombro com um sorriso travesso.

– Bem, precisei de muita prática, durante muito tempo – respondeu ele, tentando soar da maneira mais humilde possível. – Com cuidado, é possível organizar o tempo e o esforço.

– E não lhe cai uma gota de suor? Parece bem limpo ao meu ver.

– Eu sempre me limpo ao sair da cozinha, mas além disso, não sou de suar com muita facilidade – disse ele, dando de ombros e com um sorriso de lisonjeio.

Ela deu um risinho baixo e mordeu o lábio inferior, segurando com gentileza a mão do garoto que repousava na altura do quadril.

– Só acredito testando... – foi o que ela disse, fitando-o com o olhar mais perigoso que o rapaz já foi atingido. Parecia bêbada, com as bochechas coradas e pálpebras pesadas, mas a surpresa o paralisou mesmo assim. Enrubesceu como um morango maduro por dentro; felizmente suas feições eram bem treinadas, mas não escaparam de um sutil boquiaberto.

Percebeu a outra moça chamar a atenção da amiga, dando-lhe tapinhas em sua mão por baixo da mesa, olhando-a com um certo reprovar.

– Barb – ela sussurrou, apostando que Belman não ouviria. – É só um menino.

O semblante da mulher que lhe segurava a mão desmanchou, como se tivesse percebido algo muito inconveniente, e em seguida se transformou num sorriso sem graça. Ajeitou-se na cadeira, e piscou os olhos com rapidez.

– Obrigada docinho – ela falou, com uma postura claramente menos ousada. – Te chamaremos se precisarmos de mais alguma coisa.

– Senhoritas... – ele disse, com uma leve mesura e se retirou.

Ela de fato conseguiu, pensou, uma gota de suor iniciava-se em sua têmpora. O coração estava acelerado, e as mãos trêmulas quase deixaram a bandeja cair.

Passou pelo grupo de antes, uma nova história havia começado, quando viu Edbert, no palanque. Ele o olhava como se o garoto tivesse recebido um balde de ouro, safiras e um violino caro.

– O que é? – perguntou Belman, começando a rir baixo.

E isso só fez o sorriso do músico se estender.

– Sou apenas o bardo, meu caro, é esperado que eu sorria para todos, não é?

– Vá se danar – rosnou Belman, ainda segurando a vergonha e o sorriso sem graça.

E o bardo logo olhou para Tantom no bar, que fitava Belman com a mesma expressão.

– Ah, qual é? – resmungou o garoto, tombando a cabeça. – Será que todo mundo viu?

Tantom lhe chamou com um aceno, e então voltou a cruzar os braços. O jovem garçom chegou perto dele, com cara de bobo.

– Belman Sigwex Fid – falou, enquanto servia-lhe uma bebida que ele não pediu. – Espero muito que não esteja cortejando a minha clientela.

– Foi ela que... – gaguejou Belman, e então percebeu que o homem só estava tirando uma com ele. Debruçou-se de costas no balcão do bar, soltando a respiração que por muito prendeu. – Malditas sejam as mulheres, Tantom.

– Fato, nos fazem parecer uns tolos com seus joguinhos.

E ficaram em silêncio por um bom tempo, apenas observando Edbert tocar, dessa vez, um alaúde. Algumas pessoas começaram a dançar em seu som e ritma-lo com palmas e sapateados. Belman apanhou a bebida que Tantom havia servido e a virou de uma vez.

– É intrigante, não é? – perguntou para o homem.

– Desembucha garoto, não gosto de enigmas.

– Alguns me chamariam de sortudo, por ser flertado por uma mulher bonita.

– E não se sente sortudo? – ele perguntou, levantando uma sobrancelha.

– Bem, sim, mas... – e fez uma pausa, enquanto escolhia bem as palavras. – E se tivesse sido ao contrário? Um homem mais velho azarando uma garçonete da minha idade.

Tantom não respondeu.

– Seria mais estranho, não? – insistiu.

– Com toda certeza – o homem bufou. – Mas vou lhe dizer por que no seu caso, em específico, não é estranho.

E Belman se virou para ele, confuso.

– Você é um garoto, Bel, e muito novo por sinal – continuou. – Mas você não age como um. Seu caminhar tem equilíbrio, sua postura é correta, seu olhar é profundo e sua voz um flauteado – e fez uma pausa, quando apanhou a caneca vazia e começou a lavar. – Não me espanta que algumas mulheres caiam na sua, e sem querer, acabem notando que você não passa de um...

– Pivete – completou Belman, abrindo um sorriso.

– Um pivete – Tantom repetiu, deixando a voz morrer. – Sua sorte não é ser cortejado, ela está muito à frente disso.

E ficaram em silêncio mais uma vez, que só era cortado pelo som do pano que roçava o interior de uma caneca de madeira atrás do balcão.

Agora dê o fora daqui – disse Tantom, dando-lhe um leve tapa na nuca. – Vá ver se há mais alguém pedindo algo, você ainda tem uns minutos de trabalho.

4

Assim ele o fez, e tornou à cozinha mais uma ou duas vezes naquela noite. Preparou batatas douradas e alguns molhos à licor, sempre com Bisca ao seu lado. Os demais garçons ajudavam um bocado enquanto ele cozinhava, e ainda assim, ele se apressava para servir o que coubesse no tempo. Tantom o pagava por isso, afinal, e em troca ele não precisaria contratar mais um garçom. No badalar do último sino já não sobravam tantas pessoas, só uma meia dúzia sem papo que Belman suspeitou que passariam a noite nos quartos de cima.

O jovem cozinheiro limpava as mãos num pano enquanto observava Frida, Tuda e Andros partirem pela porta da frente em gargalhadas, quando Tantom o agarrou pelo ombro.

Virou-se para ele e encontrou seu sorriso cansado.

– Rapaz, você trabalha feito um mineiro-escravo de Adibária – ele falou, colocando um grande saco de garrafas nas mãos do rapaz. – Se puder fazer um último favor para esse velho taberneiro...

Belman apanhou o recipiente pesado, já sabendo sobre o que ele se referia.

– É claro – falou, dando seu melhor sorriso, e partiu para a porta da frente.

– És mesmo abençoado por Káurea – recitou Tantom ao longe, virando-se para apagar os braseiros e enxotar o resto dos bêbados para os quartos. – Boa noite!

Belman atravessou a porta; badalando uma última vez o sininho preso em seu topo. A maresia logo atingiu suas narinas, e ele respirou fundo, fitando brevemente os vagalumes no matagal ao longe. Sentiu muitas brisas diferentes, algumas traziam sal, outras calor, mas nenhuma era igual à que ele sentiu pela manhã. De certo dormiria pensando naquilo, e chegaria a conclusão nenhuma.

Virou a esquina da taberna em direção ao lixão da mesma, carregando com dificuldades a grande saca de garrafas. Logo ao lado da parede leste estava uma pilha de lixo, empacotados, ensacados e alguns apenas jogados de qualquer jeito. Tirou o recipiente pesado de frente do rosto e pousou-o no chão com um baque agudo de vidro roçando. Limpou suas mãos, uma na outra e respirou fundo.

Quando levantou a cabeça e olhou para frente, pôde ver algo estranho na penumbra que o telhado da Tantom's criava.

Olhava-o de um jeito único. Era uma pessoa sim, mas, em seu olhar não havia profundeza. Talvez igual à um cachorro? Não, alguns cachorros ainda conseguiam impressionar com o quanto seus olhares podiam ser profundos, era menos que isso. Um gato, talvez? Também não, apesar dos felinos terem um olhar vidrado e sem alma, seu jeito elegante de andar e estufar o peito os faziam se diferir da figura que estava à sua frente. Era muito mais como um roedor qualquer, ou algo do tipo. Seu olhar era puramente hostil, como se Belman fosse a única coisa no mundo que poderia impedi-la de comer o que estava em suas mãos. Ao pensar um pouco mais, o garoto pôde perceber que a tal figura havia se remexido um pouco após o baque que deu, seu posicionamento se tornara encurvado, como se estivesse prestes a fugir. Estava muito suja, a ponto de fazê-la se esconder ainda mais na penumbra e deixando visível apenas sua silhueta, olhar, e cabelos esvoaçantes ao vento.

Belman ficou apenas parado, fitando aqueles olhos animalescos por bons segundos.

O que ele sentiu foi impotência, como se qualquer movimento seu fosse espantar aquilo, ou pior, que saltasse em cima dele. Pôde ver seus olhos piscarem, depois de muito tempo arregalados e isso humanizou um pouco mais a figura para ele. Palavras, pensou, talvez palavras fossem a melhor forma de se comportar naquele momento, deixando qualquer movimento para depois, isso se aquela coisa falasse, é claro.

– Vou lhe trazer comida – foi a única coisa que Belman falou, e nem pôde acreditar.

O rapaz se virou para a entrada, sem me importar se a coisa fugiria. Entrou na Tantom's, tinha a sua própria chave do lugar, com cuidado para que o sino não acordasse alguém. Atravessou o salão. As mesas, o palanque e o bar estavam escuros, manchados apenas pelo luar que invadia pelas janelas. Adentrou a cozinha, apanhou um prato no armário, abriu o estoque, encheu-o com fatias de presunto, uma peça de queijo fresco, alguns legumes e qualquer outra coisa que não dependesse de quentura para se apreciar. Encheu uma caneca de madeira simples com rum, e além disso apanhou uma saca. Se retirou da cozinha, depois da taberna, com tudo em mãos.

A figura misteriosa não estava lá quando voltou, como o esperado. Mesmo assim ele deixou a comida ali no chão, enrolada na saca para que nenhum animal a pegasse.

Voltou para casa assobiando uma canção de Edbert, enquanto ponderava se aquilo que viu era mesmo uma garota, como estava a suspeitar.

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