A Metamorfose (1915)

Da ClassicosLP

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Obra do tcheco Franz Kafka. Altro

I
III

II

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Da ClassicosLP

Foi apenas quando anoiteceu que Gregor acordou após um pesado e profundo sono. Ainda que não o tivessem despertado, certamente não teria acordado muito mais tarde, porque se sentia bastante repousado. Mas ficou com a impressão de que o tinham acordado uns passos furtivos e o ligeiro ruído que a porta que dava para a sala fazia ao ser fechada. A luz dos candeeiros eléctricos lá fora na rua projectava manchas de claridade no tecto do quarto, ao longo dos móveis; mas, mais abaixo, em torno de Gregor, fazia escuro. Tacteando com as suas antenas, das quais começava a aprender a utilidade, moveu-se lentamente em direcção à porta, para ver o que é que acontecia. O seu lado esquerdo assemelhava-se a uma longa cicatriz que latejava desagradavelmente, e, apoiando-se sobre as suas duas filas de patas, coxeava bastante. Para mais, durante os acontecimentos daquela manhã, uma daquelas pequenas patas fora atingida com gravidade – por milagre tinha sido a única –, e arrastava-se atrás do seu corpo como um peso morto.

Quando chegou perto da porta percebeu o que o tinha atraído: era o odor de algo comestível. Porque havia ali uma gamela com leite açucarado, com pequenos pedaços de pão branco que tinham cortado. De início, poderia ter rido de alegria, devido a estar com mais fome do que de manhã; logo mergulhou a cabeça naquele leite, quase até aos olhos. Mas retirou-a imediatamente, decepcionado: não só lhe custava comer com aquele flanco esquerdo magoado – não podia comer sem que todo o seu corpo se movesse, sacudido –, mas, além disso, o leite que até então fora a sua bebida favorita, e fora por isso que a sua irmã lho tinha trazido, não lhe sabia a nada, foi mesmo com alguma repugnância que se desviou da gamela e regressou, arrastando-se, ao centro do quarto.

Gregor reparou, pela luz que atravessava a fenda da porta, que o gás estava aceso, mas, apesar de ser a hora da leitura do jornal da tarde, que o pai lia, com voz forte, para a sua mãe e por vezes também para a irmã, desta vez não se ouvia o mínimo som. Ou talvez a leitura, da qual a sua irmã falava, mesmo nas cartas que lhe escrevia, não se fizesse nos últimos tempos. Mas, mesmo assim, reinava um grande silêncio, apesar de a casa de nenhum modo estar deserta. «Apesar de tudo», pensava Gregor, «que vida tranquila levava a minha família.» E observando em frente de si, na escuridão, sentia um grande orgulho por ter conseguido proporcionar aos seus pais e irmã semelhante vida numa casa tão bela. Mas o que se iria passar se agora toda essa tranquilidade, esse bem-estar, essa satisfação terminassem em catástrofe? Para não se perder em semelhantes conjecturas, Gregor preferiu começar a mover-se e, sempre a coxear, percorrer o quarto em todos os sentidos.

A dada altura, no decorrer daquela longa noite, alguém abriu ligeiramente as portas laterais, uma após outra, fechando-as apressadamente. Sem dúvida, alguém desejara entrar, mas os escrúpulos tinham vencido. Gregor permaneceu então junto da porta que dava para a sala, resolvido a fazer entrar de qualquer modo essa visita hesitante, ou pelo menos saber quem era. Mas a porta não voltou a abrir-se, Gregor esperou em vão. Logo de manhã, quando todas as portas estavam fechadas à chave, todos queriam entrar; agora que ele tinha aberto uma e que as outras manifestamente tinham sido abertas durante o dia, ninguém vinha. Aliás, as chaves estavam nas fechaduras, mas do outro lado das portas.

Já era tarde, à noite, quando apagaram a luz na sala ao lado, pelo que lhe foi fácil concluir que os seus pais e irmã tinham ficado acordados até então, porque os ouviu nitidamente aos três afastarem-se na ponta dos pés. Por agora, até de manhã, certamente ninguém viria ver Gregor. Dispunha portanto de muito tempo para reflectir com tranquilidade sobre o modo como iria reorganizar a sua vida. Mas a altura desmesurada do seu quarto, onde ele se via constrangido a permanecer no chão, fez-lhe medo, sem que pudesse descobrir porquê – afinal era o quarto onde dormia desde há cinco anos –, e, com um movimento quase inconsciente e não sem um pouco de vergonha, precipitou-se para debaixo de um cadeirão, onde, ainda que as suas costas ficassem um pouco apertadas, além de não poder levantar a cabeça, logo se sentiu mais à vontade, apenas lamentando que o seu corpo fosse largo de mais para caber inteiramente sob o cadeirão.

Ali ficou a noite inteira, em parte passada num meio sono do qual a fome de vez em quando o fazia acordar, a par com a agitação que as preocupações e vagas esperanças lhe provocavam, mas que o levavam a concluir pela necessidade de provisoriamente se manter calmo e, através de paciência e de solicitude extremas, tornar suportáveis à sua família os contratempos que o seu estado actual lhes causava.

Desde madrugada, ainda era noite, Gregor teve ocasião de verificar a força das decisões que acabava de tomar, porque a sua irmã, já quase vestida, abriu a porta da sala e olhou para dentro do quarto com curiosidade. Ela não o viu imediatamente, mas, quando o descobriu sob o cadeirão – que diabo, tinha que estar nalgum lado, ele não podia apesar de tudo desaparecer –, foi tomada de tal medo que, sem conseguir controlar-se, voltou a fechar precipitadamente a porta com grande barulho. Mas, como se arrependesse de ter procedido daquele modo, logo abriu de novo a porta e entrou pé ante pé, como se estivesse junto de alguém muito doente, ou de um desconhecido. Gregor tinha avançado a cabeça para a borda do cadeirão e observava-a. Iria ela reparar que ele não tinha bebido o leite e que não era por falta de apetite? Iria ela trazer-lhe qualquer outra comida mais apropriada para ele? Se não fosse ela própria a fazê-lo, antes preferia morrer de fome do que queixar-se, ainda que desejasse ardentemente aproximar-se e lançar-se aos pés da irmã e pedir-lhe qualquer coisa que pudesse comer. Mas a sua irmã já tinha reparado, estupefacta, na gamela quase cheia, apenas com algum leite entornado em redor, apanhando-a imediatamente, verdade seja dita, com um pano, como para proteger as suas mãos. Gregor estava cheio de curiosidade em ver o que ela traria em vez do leite, pensando nas mais diversas hipóteses. Mas nunca poderia ter adivinhado o que a sua irmã fez, cheia de bondade. Ela trouxe, para saber o que comeria, vários alimentos espalhados num jornal. Ali estavam restos de legumes meio desfeitos; ossos do jantar da véspera, acompanhados de um molho branco já muito espesso; algumas passas, algumas amêndoas; um queijo que Gregor tinha declarado execrável, dias antes; uma fatia de pão seco, uma outra barrada com manteiga, outra com manteiga e sal. Para mais, ela voltou a trazer a gamela – decididamente estava-lhe destinada –, desta vez contendo água. E, por delicadeza, adivinhando que Gregor não comeria nada diante dela, saiu do quarto apressadamente, dando mesmo a volta à chave a fim de que Gregor soubesse que podia sentir-se à vontade. Gregor sentiu as suas pequenas patas agitarem-se freneticamente, avançando para onde estava a comida. Aliás, as feridas já tinham sarado quase por completo, não sentia qualquer dor, o que o admirou ao pensar que há um mês apenas tinha feito um pequeno golpe no dedo com uma faca, o qual ainda anteontem lhe causava alguma dor.

– Será que isto significa que estou com menor sensibilidade? – pensou, ao sugar avidamente o queijo, que desde logo o tinha atraído por entre os outros alimentos. Sem parar, de olhos lacrimejantes de satisfação, logo devorou o queijo, os legumes e o molho; os alimentos frescos, pelo contrário, não lhe diziam nada, não podia sequer suportar o odor que deitavam, afastando para longe aquilo que queria comer. Já há muito tinha acabado de comer e ficou ali, preguiçosamente, no mesmo sítio, quando a sua irmã, dando-lhe a entender que devia retirar-se, rodou lentamente a chave na fechadura da porta. Ele sobressaltou-se amedrontado, estava quase adormecido, apressando-se a voltar para debaixo do cadeirão. Mas permanecer naquele lugar exigiu-lhe um grande esforço de abnegação, mesmo durante o pouco tempo em que a sua irmã esteve no quarto, por causa do copioso repasto que lhe provocara um pouco mais de largura e, de tal maneira estava apertado, que lhe custava respirar. Sufocado, naquele instante, viu, com os olhos um pouco exorbitados, que a sua irmã, sem reparar nele, retirava com uma vassoura os restos de comida, mesmo aqueles em que Gregor não tinha tocado, como se tudo aquilo fosse para deitar fora, atirando apressadamente tudo para um balde que ela fechou com uma tampa em madeira, após o que levou tudo para fora do quarto. Mal ela se voltou, Gregor apressou-se a sair debaixo do cadeirão para de novo se estender e dilatar o corpo.

Foi assim que, doravante, Gregor foi alimentado todos os dias, uma vez pela manhã, quando os pais e a criada ainda dormiam, e uma segunda vez quando todos tinham acabado de almoçar, porque então também os seus pais dormiam e a criada era mandada pela sua irmã à rua para fazer qualquer recado. Sem dúvida, não era intenção deles que Gregor morresse de fome, mas prefeririam ser postos ao corrente das suas refeições por outrem, e talvez a irmã pensasse que lhes poupava um desgosto, por mais pequeno que fosse, porque, de facto, já era grande o seu sofrimento.

Quais os pretextos que utilizaram, logo naquela primeira manhã, para se livrarem do médico e do serralheiro, Gregor não conseguiu saber; porque, como não o compreendiam, ninguém, incluindo a irmã, imaginava que ele fosse capaz de entender os outros e, sempre que ela se encontrava no quarto, contentava-se em ouvi-la de vez em quando suspirar e invocar os santos. Só mais tarde, quando ela se habituou um pouco a tudo aquilo – nunca esteve em questão, é claro, que inteiramente se habituasse –, é que Gregor pôde apanhar de fugida uma ou outra observação que demonstrava um bom sentimento ou que assim pudesse ser interpretada. «Ele hoje gostou disto», dizia ela sempre que Gregor fazia consideráveis desgastes na comida, ao passo que, caso contrário, o que cada vez era mais frequente, ela observava num tom de quase tristeza: «Ele hoje deixou tudo.»

Mas, ainda que não conseguisse saber o que de novo acontecia, Gregor observava várias coisas nos quartos vizinhos, bastava apenas que ouvisse vozes para correr até à respectiva porta e nela encostar o seu corpo. Principalmente no início, não houve uma única conversa que ele não escutasse, mesmo sussurrada. Durante dois dias, as refeições deram lugar a conciliábulos sobre o modo como conviria que ele se comportasse; mas mesmo entre as refeições falavam do mesmo assunto, porque sempre havia duas pessoas da família em casa, dado que, sem dúvida, ninguém queria permanecer sozinho em casa, nem tão-pouco deixá-la sem ninguém. Para além disso, desde o primeiro dia, a criada – sem que tenham sabido se ela teria suspeitado de alguma coisa e o quê – tinha suplicado de joelhos, à mãe de Gregor, que a deixasse ir embora imediatamente e, quando um quarto de hora mais tarde se despedia, foi a chorar que se desfez em agradecimentos, como se ter sido dispensada fosse a melhor coisa que lhe tivessem feito naquela casa; e, sem que lhe tivessem pedido nada, jurou pelos seus deuses que não diria a ninguém fosse o que fosse.

A partir de então, a irmã e a mãe passaram a tratar da cozinha; certamente, não era um trabalho pesado, porque quase nada comiam. Gregor ouvia-os a suplicarem uns aos outros que comessem, sem outra resposta que não fosse: «Obrigado, isto chega», ou qualquer coisa no género. Talvez nem sequer bebessem. Por vezes, a irmã perguntava ao pai se ele queria beber cerveja, oferecendo-se amavelmente para a ir buscar e, se ele não respondia, ela afastava qualquer escrúpulo que o pai tivesse, dizendo que mandaria a porteira comprar a cerveja, mas o pai acabava por dizer, finalmente, um rotundo «não», acabando assim a conversa.

Desde o primeiro dia que o pai explicara detalhadamente, tanto à mãe como à irmã, a situação financeira da família e as suas perspectivas. De vez em quando, levantava-se da mesa e dirigia-se ao pequeno cofre que tinha conseguido salvar da falência que sofrera a sua casa comercial, para de lá tirar qualquer recibo ou livro de apontamentos. Gregor podia ouvi-lo a abrir a complicada fechadura e a fechá-la novamente, uma vez retirado qualquer papel. Estas informações vindas do pai eram, por um lado, a primeira boa notícia que chegava a Gregor desde o início do seu cativeiro. Pensara que nada restara a seu pai da sua casa comercial, pelo menos nunca este lhe tinha dito alguma coisa sobre isso, e Gregor, por sua vez, nada lhe tinha perguntado. Nessa ocasião, a única preocupação de Gregor foi tudo fazer para que a sua família esquecesse o mais rapidamente possível a catástrofe comercial que os tinha lançado em completo desespero. Tinha então começado a trabalhar com invulgar determinação e, de pequeno tarefeiro que era, quase de um dia para o outro, tinha-se tornado vendedor, o que lhe oferecia naturalmente outras possibilidades de rendimento, graças ao que ganhava, o que significava desde logo obter dinheiro contado que trazia para casa e pousá-lo na mesa perante o olhar espantado e a alegria da sua família. Eram bons tempos, mas nunca essa primeira época teve continuação, pelo menos com os mesmos resultados, ainda que Gregor ganhasse o suficiente para prover às necessidades da família, o que efectivamente fazia. Tanto a família como Gregor se tinham habituado a isso, aceitando reconhecidamente esse dinheiro à medida que Gregor o oferecia, sem que, apesar disso, houvesse uma relação mais calorosa. Só a sua irmã se tinha mantido, apesar de tudo, próxima dele, e ele acarinhava secretamente um projecto a seu respeito: ela que, ao contrário dele, amava por demais a música e tocava violino de um modo comovedor, iria frequentar o Conservatório, no próximo ano, sem que Gregor olhasse às despesas a que isso o obrigaria e que tentaria suprir de qualquer modo. Frequentemente, nas breves estadias que Gregor fazia na cidade, o tema do Conservatório era lembrado nas conversas que tinha com a sua irmã, mas sempre a título de um belo sonho impensável de realizar, ouvindo os seus pais de mau grado esse assunto inocente; Gregor, contudo, pensava seriamente nisso e tencionava anunciá-lo com solenidade por ocasião da ceia de Natal.

Tais eram os pensamentos que lhe ocorriam, bem vãos, aliás, no estado em que se encontrava, enquanto ali permanecia em pé, colado à porta, a escutar furtivamente. Por vezes, invadido por uma imensa fadiga, nada conseguia ouvir, a cabeça a descair suavemente sobre a porta, logo levantada porque o ligeiro ruído que fizera se tornara audível do outro lado da porta, fazendo-os calar. «O que estará ele a fazer?», dizia o seu pai após um momento de silêncio, voltando-se para a porta, após o que a conversa interrompida retomava a pouco e pouco o seu rumo.

Foi então que Gregor soube, em pormenor – porque o seu pai, ao tentar explicar, se repetia com frequência, talvez devido ao facto de ele próprio durante muito tempo não se ter preocupado com esses assuntos, ou porque a mãe de Gregor não conseguia compreender tudo à primeira explicação –, que, apesar da ruína, ainda ficara, da época passada, um capital modesto, verdade seja dita, que fora sendo acrescido dos respectivos juros em que nunca se tinha tocado. Mas, por outro lado, o dinheiro que Gregor trazia todos os meses para casa – não guardando senão para si uma pequena quantia – não tinha sido completamente gasto, constituindo um pequeno capital. Atrás da sua porta, Gregor abanava a cabeça com entusiasmo, encantado com aquela demonstração imprevista de prudência e de economia. De facto, esse remanescente de dinheiro ter-lhe-ia permitido liquidar a dívida que o seu pai tinha para com o seu patrão, avizinhando-se o dia em que poderia riscar das suas contas a despesa naquela importância, mas, de momento, seria melhor que o seu pai tomasse outras providências.

Contudo, aquele dinheiro estava longe de poder permitir à sua família viver do rendimento: apenas chegaria talvez para os manter por um, dois anos, quando muito; era tudo o que havia. Era, pois, um dinheiro que não se poderiam permitir gastar e que era preciso pôr de lado para qualquer necessidade: era preciso ganhar qualquer coisa para viver. Ora, o pai, apesar de estar de boa saúde, já estava velho, não trabalhava desde há cinco anos e não devia abusar das suas forças; durante esses cinco anos, que foram as primeiras férias da sua penosa vida, afinal infrutuosa, ele tinha engordado bastante e tinha-se tornado vagaroso. Iria a sua velha mãe, talvez agora, ver-se obrigada a ganhar o seu sustento, ela que tinha asma, ela para quem percorrer a sua casa era já um esforço e que passava, dia sim, dia não, deitada no sofá, próximo da janela aberta? Iria a sua irmã ver-se obrigada a trabalhar, ela que era ainda uma criança, com os seus dezessete anos de idade, ela a quem ninguém desejava tirar o modo de vida que fizera até então, que consistia em se vestir bem, em dormir muito, em ajudar nos trabalhos da casa, em tomar parte nalgumas distracções e, sobretudo, em tocar violino? Quando a conversa recaía sobre a necessidade de ganhar dinheiro, Gregor afastava-se daquela porta e lançava-se sobre o sofá que estava próximo, forrado de couro e que o refrescava, porque ele se tornava como que rubro de vergonha e de tristeza.

Muitas vezes permanecia ali deitado ao longo das noites, sem sequer dormir um instante, arranhando o couro do sofá durante horas. Ou então, não cedia perante o considerável esforço que lhe exigia arrastar uma cadeira até junto da janela e subir para o seu espaldar onde permanecia apoiado, apenas o necessário para ter o sentimento de liberdade que apesar de tudo experimentava ao olhar pela janela. Porque, de facto, de dia para dia, ele via cada vez com menos nitidez, mesmo as coisas mais distantes; já não distinguia à sua frente o hospital, que anteriormente o aborrecia, porque, se não soubesse que habitava numa rua sossegada, mas completamente citadina, como era Charlottenstrasse, teria acreditado que a sua janela dava para um deserto onde céu e terra, cinzentos, se juntavam a ponto de se confundirem. Logo que a sua irmã reparou por duas vezes que a cadeira se encontrava junto da janela, de cada vez que arrumava o quarto colocava-a com cuidado naquele lugar, deixando mesmo abertas, a partir de então, as portadas interiores da janela.

Se ao menos conseguisse falar com a irmã e agradecer-lhe por tudo o que ela tinha sido obrigada a fazer por ele, estaria mais à vontade para aceitar os seus cuidados, mas, nas condições em que se encontrava, isso fazia-o sofrer. Apesar disso, a sua irmã fazia todos os possíveis para disfarçar como tudo aquilo era extremamente penoso e, é óbvio, quanto mais o tempo passava, mais o conseguia; mas, cada vez mais, também a Gregor não passava despercebido o que ela fazia. Bastava a entrada da sua irmã no quarto, que, para ele, já era terrível. Mal esta entrava, sem aliás se deter a fechar a porta, para evitar a alguém o espectáculo que o quarto de Gregor oferecia, corria para a janela, como que sufocada, com gestos febris, abria-a de par em par, estivesse o frio que estivesse lá fora, permanecendo um bom momento, respirando fundo. Por causa desta corrida e confusão, Gregor assustava-se duas vezes por dia; nesses momentos, começava a tremer por debaixo do cadeirão, sabendo muito bem que a sua irmã lhe pouparia de boa vontade tudo aquilo, se pudesse permanecer num quarto onde ele estava com a janela fechada. Um dia – já teria decorrido cerca de um mês desde a metamorfose de Gregor e a sua irmã já não deveria espantar-se ao vê-lo –, ela entrou um pouco mais cedo do que costumava e deparou com ele a olhar pela janela, imóvel e, de facto, assustador, levantado como estava. Gregor não ficou admirado por ela não entrar, pois, onde este estava, impedia-a de abrir a janela de imediato; mas, além de esta não entrar, deu um passo atrás e fechou a porta; alguém que desconhecesse estes factos, julgaria que Gregor tinha esperado pela sua irmã para a morder. Mas ele foi logo esconder-se sob o cadeirão e teve de esperar até ao meio-dia para que ela aparecesse de novo, parecendo-lhe mais inquieta do que costumava. Compreendeu que a sua vista lhe era sempre insuportável e que assim permaneceria a seus olhos, sendo grande o seu esforço sobre si própria para não fugir perante o espectáculo de uma simples parte do corpo dele que se avistasse de fora do cadeirão. A fim de até a isto a poupar, um dia Gregor decidiu – precisou de quatro horas de esforços – levar às suas costas um lençol da cama até ao cadeirão e colocá-lo de modo a que o escondesse por completo, impedindo-o de ser visto, mesmo que a sua irmã se inclinasse. Se ela considerasse aquela coberta desnecessária, teria podido tirá-la, porque era óbvio que não era por puro prazer que Gregor se escondia daquela maneira; mas a irmã deixou o lençol tal como estava e a Gregor pareceu-lhe vislumbrar um olhar de gratidão quando, certo dia, levantou prudentemente a borda do lençol com a cabeça, para ver como a sua irmã encararia aquela mudança.

Os seus pais, durante os primeiros quinze dias, não conseguiram resolver-se a entrar naquele quarto e Gregor ouvi-os várias vezes elogiar o trabalho que a sua irmã estava a fazer, ao contrário da anterior manifestação habitual, proferida com irritação, de que ela pouco ou nada sabia fazer. Mas, agora, ambos aguardavam, o pai e a mãe, diante do quarto de Gregor, que ela saísse, para lhes contar minuciosamente em que estado estava o quarto, o que Gregor tinha comido, de que modo se tinha comportado e se porventura houvera alguma ligeira melhoria do seu estado. Aliás, a sua mãe, após algum tempo, quisera ir vê-lo, mas logo o pai e a irmã se tinham oposto, utilizando reais motivos, que Gregor, ao escutar com toda a atenção, aprovava sem qualquer reserva. Mas logo após tiveram de impedi-la à força e, quando a ouviu gritar: «Deixem-me vê-lo, é meu filho, esse infeliz! Não compreendem que preciso de o ver?», Gregor considerou que, apesar de tudo, seria uma boa coisa a sua mãe vir vê-lo, não todos os dias, é certo, mas ao menos uma vez por semana; porque, apesar de tudo, ela, melhor do que a sua irmã, compreenderia que, apesar da coragem que mostrara, era apenas uma criança, o que explicaria ter-se ocupado daquele penoso trabalho, apenas por irreflexão infantil.

O desejo que Gregor tinha de ver a sua mãe não tardou em ser satisfeito. Evitava mostrar-se à janela durante o dia, preocupado como estava em relação aos seus pais, mas também já não podia arrastar-se por muito tempo naqueles escassos metros quadrados de soalho, e, para além disso, o que comia depressa lhe tirou qualquer prazer. Começou habitualmente, como distracção, por deambular em todas as direcções, pelas paredes e pelo tecto. Gostava em particular de permanecer suspenso no tecto: era totalmente diferente de permanecer estendido no chão; uma ligeira tremura percorria o seu corpo e, no estado de distracção, de quase felicidade, em que se encontrava lá no alto, para grande surpresa de Gregor, deixava-se cair e aterrava firmemente no soalho. Agora, ele sentia-se naturalmente mais senhor do seu corpo do que antes, mesmo caindo daquela altura, sem sequer se magoar. Desde logo a sua irmã se apercebeu daquela nova distracção que Gregor encontrara – aliás, aquele seu rastejar deixava aqui e ali traços e manchas pegajosas –, e pensou em arranjar-lhe ainda maior facilidade de movimentos, tirando do quarto os móveis que poderiam ser obstáculo, especialmente a cómoda e a escrivaninha. Contudo, não conseguia fazê-lo sozinha; quanto ao seu pai, não se atrevia a pedir-lhe que a ajudasse; a criadita certamente recusaria, apesar de essa criança de dezasseis anos, sobretudo desde a partida da antiga cozinheira, se ter portado corajosamente: mas tinha pedido encarecidamente como um favor poder manter constantemente fechada a porta da cozinha e só a abrir quando pedissem; não restava mais nada à irmã senão pedir ajuda à sua mãe, num dia que o pai não estivesse em casa. A mãe de Gregor aceitou, por entre gritos de excitação, mas, uma vez chegada diante da porta do quarto, calou-se. A irmã começou por se certificar de que tudo estava em ordem no quarto, ao entrar, e só depois deixou entrar a mãe. Gregor, apressadamente, baixou ainda mais o lençol, enrugando-o mais do que já estava, dando o aspecto de um pano lançado ao acaso sobre o cadeirão. Também desta vez Gregor se absteve de espreitar por debaixo do lençol, renunciando, daquela primeira vez, a ver a sua mãe, demasiado contente por ela ter acabado por vir ao seu quarto.

– Venha, não está à vista – dizia a irmã, conduzindo a mãe pela mão.

Gregor ouviu então aquelas duas fracas mulheres arrastarem a velha cómoda, demasiado pesada, ao mesmo tempo que a irmã ralhava constantemente com a mãe para deixar o trabalho mais pesado para ela, ignorando os cuidados maternais sobre o risco que corria de se fatigar em excesso. Demoraram muito tempo; após um bom quarto de hora de esforços, a mãe foi de opinião que mais valia deixar a cómoda ali, pois era demasiado pesada e não acabariam antes do regresso do pai, impedindo então os movimentos a Gregor, deixando-a ali no meio do quarto; por outro lado, não se sabia se agradaria a Gregor que tirassem aqueles móveis. Apertava-se-lhe o coração ao ver a parede vazia; e provavelmente assim pensaria Gregor, uma vez que estava habituado desde há muito aos móveis daquele quarto e, por conseguinte, não se sentiria perdido quando estivesse vazio?

– Aliás – concluiu ela baixinho, quase sussurrando, como que para evitar que Gregor, pois não sabia ao certo onde este se encontrava, ouvisse sequer o som da sua voz, porque, quanto às palavras, ela estava convencida de que ele não as compreendia –, aliás, ao tirarmos estes móveis, não estaremos a mostrar que abandonamos toda a esperança de que ele melhore, deixando-o cruelmente entregue a si mesmo? Creio que melhor seria manter o seu quarto tal como estava para que Gregor, quando voltar para nós, encontre tudo na mesma e para que esqueça mais facilmente estes tempos.

Ao escutar estas palavras da sua mãe, Gregor apercebeu-se de que a falta de qualquer diálogo humano directo, a par da monotonia da sua vida na família, tinham certamente perturbado o seu espírito no curso daqueles meses; de outro modo, como explicar que ele pudesse desejar ter o seu quarto vazio? Precisava realmente que aquele quarto acolhedor, agradavelmente mobilado com os móveis de família, se metamorfoseasse num antro onde ele pudesse, de facto, movimentar-se a seu modo em todas as direcções, mas onde, ao mesmo tempo esqueceria rapidamente, totalmente, o seu passado de ser humano? Porque, enfim, já estava a dois passos desse esquecimento, tinha sido preciso a voz da sua mãe, que já não ouvia há muito tempo, para o transtornar. Era preciso que não levassem nada, tudo devia ficar; os efeitos benéficos desses móveis nos seus lugares eram-lhe indispensáveis; e se estes o impedissem daqueles movimentos ineptos, isso não seria em si um mal, pelo contrário, seria uma boa coisa.

Mas a sua irmã não pensava, infelizmente, da mesma maneira: tinha-se habituado, com toda a razão, aliás, a decidir as coisas em vez dos pais, no que dizia respeito a Gregor, e, ainda desta vez, a opinião da mãe foi suficiente para que ela insistisse em querer tirar não só os móveis que tinha de início pensado levar, a cómoda e a escrivaninha, mas também os restantes, à excepção daquele indispensável cadeirão. Obviamente, essa exigência não era inspirada por uma reacção infantil de desafio, nem pela segurança que adquirira naqueles últimos tempos de modo tão eficaz como repentino. De facto, ela também tinha observado que Gregor tinha necessidade de bastante espaço para se mover, mas, apesar de tudo, pelo que se via, não se servia de nenhum dos móveis. E talvez porque assim era o espírito exaltado das jovens daquela idade: um espírito que procurava satisfazer-se em todas as ocasiões e que, agora, levava Greta a dramatizar a situação de Gregor, com o objectivo de poder dedicar-se a ele mais do que até então. Porque, num quarto onde Gregor seria dono e senhor das paredes vazias, ninguém mais a não ser Greta teria a coragem de entrar.

Ela também não quis voltar atrás na sua decisão e a mãe, a quem aquele quarto inquietava, calou-se e ajudou o melhor que pôde a sua filha a arrastar o móvel. Bem, quanto à cómoda, Gregor podia, a bem dizer, passar sem ela; mas quanto à escrivaninha, essa, devia ficar. E, logo que as duas mulheres, entre gemidos ao arrastarem a cómoda, saíram do quarto, Gregor deitou a cabeça fora do cadeirão para ver como poderia intervir com prudência, o mais discretamente possível. Mas, infelizmente, foi a sua mãe quem primeiro regressou, enquanto, na sala ao lado, Greta ainda empurrava a cómoda, conseguindo balançá-la ligeiramente, mas, evidentemente, sem a mover. Ora, a mãe de Gregor não estava habituada ao aspecto dele, podendo mesmo pô-la doente, pelo que Gregor recuou rapidamente para o fundo do cadeirão, sem contudo poder impedir que o lençol se movesse à frente. Isso foi o suficiente para chamar a atenção da sua mãe. Ela ficou imóvel, surpreendida por um instante, após o que se voltou para ir ter com Greta.

Embora Gregor dissesse para si mesmo que nada de extraordinário se passava, ao tirarem apenas alguns móveis, teve que reconhecer que aquelas idas e vindas das duas mulheres, as pequenas exclamações, o arrastar dos móveis pelo chão tinham sobre ele o efeito de o aturdir imenso em todos os seus sentidos; e apesar de recolher a cabeça e as pernas, alongando-se no chão, opinou para si mesmo que não iria conseguir suportar tudo aquilo por muito tempo: elas estavam a ponto de lhe esvaziar o quarto; elas tiravam-lhe tudo de que gostava; já tinham levado a cómoda onde ele arrumava a serra de recorte e as suas outras ferramentas; agora tiravam do soalho onde quase criara raízes, a secretária onde estudara durante os tempos da escola de comércio, do liceu, mesmo quando fizera a escola primária... Já não conseguia pensar se as duas mulheres agiam com boas intenções, aliás já quase as esquecera, pois tão cansadas estavam, que trabalhavam em silêncio, apenas se ouvia o som dos seus passos.

Saiu para fora do seu esconderijo – as mulheres, na sala ao lado, tinham-se encostado momentaneamente à secretária para recuperarem um pouco o fôlego –, mudou quatro vezes de direcção, não sabendo ao certo o que iria salvar em primeiro lugar. Foi então que viu, pendurada na parede nua, a moldura com a imagem da mulher vestida só com peles; trepou com rapidez e colou-se ao vidro, que o segurou e o aliviou do calor escaldante do seu ventre. Esta imagem, pelo menos, que Gregor tapava completamente com o seu corpo, de certeza que ninguém lha iria tirar. Virou a cabeça na direcção da porta da sala, à espera do regresso das duas mulheres.

O descanso foi de curta duração, pois já regressavam ao quarto; Greta segurava a sua mãe rodeando-a com o braço pela cintura, quase a transportando.

– Agora, o que iremos levar? – disse, olhando à sua volta.

Foi então que Greta e o seu irmão, ali na parede, se olharam nos olhos. Sem dúvida, por causa da sua mãe estar ali, manteve a calma, inclinou-se para a mãe, impedindo-a de olhar, dizendo-lhe bruscamente, não conseguindo deixar de estremecer:

– Venha, não prefere vir mais um pouco para a sala de estar?

Para Gregor, as intenções da sua irmã eram bem claras: queria pôr a sua mãe em segurança e depois afugentá-lo dali. Pois bem, podia tentar. Ele estava agarrado ao vidro e não o largaria, antes saltaria para a cara da sua irmã.

Mas as palavras de Greta tinham tido o efeito contrário de inquietar a sua mãe, a qual deu um passo para o lado e viu a gigantesca mancha castanha sobre o papel de parede decorado com flores e, antes mesmo de realmente ter tomado consciência de que era Gregor quem ela via, gritou quase sem voz:

– Oh! Meu Deus! Oh! Meu Deus! – e desfaleceu, de braços abertos em cruz como se a tudo tivesse renunciado, estendida sobre o cadeirão.

– Oh! Gregor! – gritou a irmã, levantando o punho na sua direcção, fitando-o intensamente.

Eram, depois da sua metamorfose, as primeiras palavras que ela lhe dirigia directamente. Ela apressou-se a ir procurar um frasco de sais na sala ao lado, para reanimar a sua mãe do desmaio. Gregor também quis ajudar – teria sempre tempo para salvaguardar a imagem sob o vidro –, mas encontrava-se de tal maneira agarrado ao vidro que teve de soltar-se à força; precipitou-se por sua vez para a sala vizinha, como se pudesse dar algum conselho à sua irmã, tal como em tempos fizera; mas conseguiu apenas ficar atrás dela, sem nada fazer; logo que ela se voltou, procurando entre vários frascos, teve de novo medo; um frasco caiu ao chão e quebrou-se; um bocado desse frasco, que continha um remédio corrosivo, feriu Gregor na cara; sem se demorar, Greta agarrou quantos frascos pôde e apressou-se a socorrer a sua mãe, fechando a porta com o pé. Gregor viu-se separado da sua mãe, que talvez estivesse em risco de morrer por sua culpa; não podia abrir a porta sob o risco de afugentar a sua irmã que devia vigiar a sua mãe. Não lhe restava senão esperar e, invadido pelo remorso e preocupação, começou a trepar, evoluindo pelas paredes, móveis e soalho, até que, por último, em desespero e ao ver tudo a girar em turbilhão à volta dele, se deixou cair no centro da grande mesa.

Decorrido algum tempo, Gregor ali estava, extenuado, sob o silêncio que o rodeava, o que lhe indicava ser um bom sinal. Foi então que tocaram à porta de casa. A criadita, certamente, estava na cozinha, fechada à chave, e portanto foi Greta que teve de ir abrir a porta. O pai regressava.

– O que é que aconteceu? – foram as suas primeiras palavras, sem dúvida ao perceber tudo pela expressão de Greta.

Apoiando vivamente a cabeça no peito do pai, ela respondeu com uma voz abafada:

– A mamã sentiu-se mal, mas já está melhor. Gregor fugiu.

–Já esperava – disse-lhe o pai –, sempre vos disse isso, vocês, as mulheres, nunca escutam nada.

Gregor percebeu que o seu pai tinha interpretado mal o que Greta lhe contava de modo excessivamente breve, levando-o a pensar que Gregor tinha feito qualquer coisa violenta. Era preciso, desde já, que Gregor tranquilizasse o pai, e não tinha tempo nem possibilidade de lhe dar qualquer explicação. Foi refugiar-se junto à porta do seu quarto, apoiando-se nela, a fim de que, logo que o seu pai entrasse na sala, este pudesse ver que Gregor estava cheio de boas intenções, que desejava regressar imediatamente ao seu quarto, não sendo necessário expulsá-lo, bastando para isso que lhe abrissem a porta para que desaparecesse rapidamente.

Mas o seu pai não estava com disposição para se aperceber desses pormenores.

– Ah! – gritou ao entrar na sala, num tom de voz misto de furor e de satisfação.

Gregor moveu a cabeça erguendo-a e olhou para o pai. Nunca tinha, na verdade, visto o seu pai do modo como agora o via. É certo que, nos últimos tempos, absorvido naquelas novas evoluções trepadoras, tinha deixado de se preocupar, como outrora, com o que se passava no resto da casa, sendo de prever que viesse a descobrir novos factos. Mas, mesmo assim, era aquele, realmente, o seu pai? Era o mesmo homem que, ainda há pouco, ficava cansado e mergulhado na cama, quando Gregor saía em viagem para trabalhar; que, nas noites em que Gregor regressava, o aguardava em roupão sentado no seu sofá; que não era sequer capaz de se levantar e se contentava em estender os braços em sinal de alegria, e que, então, durante os raros passeios que a família fazia nalguns domingos e feriados, caminhando entre Gregor e a sua mãe, avançando lentamente, já mais devagar, bem protegido no seu velho sobretudo, tacteando incansavelmente o caminho com uma bengala, cheio de precauções, e que de cada vez que queria dizer alguma coisa, parava para juntar ao pé de si os companheiros?

Mas, agora, surgia como qualquer um, bem direito, vestido com uma farda azul com botões dourados, tal como vestem os contínuos nos bancos, o seu poderoso duplo queixo assente sobre a rígida gola alta do seu casaco; sob umas sobrancelhas espessas, uns olhos negros lançavam olhares vivos e vigilantes; os cabelos brancos, outrora emaranhados, dispunham-se agora cuidadosamente penteados, separados por uma risca impecável.

O seu boné, ornamentado com um monograma dourado, sem dúvida de algum banco, descreveu uma curva através de toda a sala para ir aterrar sobre um canapé, após o que, de mãos nas algibeiras das calças, afastando as abas do seu casaco comprido, avançou em direcção a Gregor, com um ar de irritação contida. Sem dúvida, ele mesmo não sabia o que fazer, mas sempre acabou por erguer o pé a uma altura excepcional, espantando Gregor com o grande tamanho das solas daquelas botas. Mas este não se demorou onde estava, sabendo muito bem, desde o primeiro dia da sua nova existência, que o pai entendia usar a seu respeito da maior severidade possível. Pelo que se pôs a correr diante dele, parando quando o pai se imobilizava, fugindo de novo logo que ele se movia. Andaram assim, várias vezes, à volta da sala, sem nada de decisivo ocorrer, não dando sequer o aspecto de uma perseguição, de tal maneira tudo aquilo se desenrolava lentamente. Foi, aliás, o motivo pelo qual Gregor decidiu permanecer no chão, com receio de que, se procurasse refúgio pelas paredes ou no tecto, o seu pai considerasse isso como uma maldade intencional. Além disso, Gregor sentia que não podia aguentar por muito tempo, mesmo devagar, porque, enquanto o pai dava um passo, se via obrigado a uma série de pequenos movimentos.

A falta de fôlego começava já a manifestar-se, tal como acontecia na sua existência anterior, pois nunca possuíra pulmões fortes. Enquanto titubeava, mantendo a custo os olhos vigilantes para melhor concentrar as suas energias naquela corrida, e atordoado como estava, apenas lhe ocorria fugir correndo, esquecendo-se de que poderia recorrer às paredes – cheias de móveis, com formas salientes e reentrâncias –, eis que, agilmente atirada, qualquer coisa bateu junto a ele, à sua frente: era uma maçã, logo seguida de uma outra. Gregor imobilizou-se, aterrado; prosseguir naquela corrida era inútil, porque o seu pai tinha decidido atingi-lo. Enchera os bolsos de maçãs, que tirara da fruteira no aparador e, sem sequer fazer pontaria, atirava-as uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam em todas as direcções ao caírem no chão, chocando umas com as outras, como que electricizadas. Uma delas, lançada com pouca força, veio atingir Gregor nas costas, saltando sem lhe provocar qualquer dano. Mas logo foi seguida de uma outra que, pelo contrário, ficou literalmente cravada no dorso de Gregor: bem desejou arrastar-se para mais longe, como se essa surpreendente e inacreditável dor pudesse desaparecer ao mudar de lugar; mas antes se sentiu como que cravado ali, estendido, numa completa confusão de todos os seus sentidos. Apenas conseguiu ver, num derradeiro olhar, terem aberto brutalmente a porta do seu quarto, e que, seguida pela sua irmã aos gritos, a sua mãe saía precipitadamente em camisa, pois Greta tinha-a despido para lhe facilitar a respiração enquanto se encontrava desmaiada, dirigindo-se para o pai, com as saías soltas da cintura a caírem ao chão uma após outra, fazendo-a tropeçar, precipitando-se sobre o pai, enlaçando-o, não formando mais do que um com ele – já Gregor começava a deixar de ver qualquer coisa – e, com as mãos agarrando a cabeça do pai, suplicava-lhe para poupar a vida a Gregor.

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