Os Segredos de Alice

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| 1 | Debaixo d'agua

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Me chamo Pedro Ventura e apesar do sobrenome, me aventurar não é algo que costumo fazer. Na verdade, Ventura não significa "se aventurar", como é fácil de se presumir, o real significado é "o que está por vir", aquela sensação boa ou ruim de esperar algo acontecer. E sendo sincero, vem sendo assim, desde o dia em que tudo aconteceu: um eterno esperar pelo pior e que ele não seja tão ruim quanto esperado. Se pelo menos fosse Boaventura que significa "boa sorte", as coisas estivessem mais simples do que estão.

Era uma noite de março, relâmpagos luminosos subiam até aos algodões acinzentados no céu, ao mesmo tempo que trovoadas barulhentas eram lançadas na terra fazendo as janelas das casas estremecerem. Essa luta permaneceu por toda a madrugada.

Nos últimos meses, vinha tendo pesadelos constantes e quando eles aconteciam, eu acabava acordando no meio da noite. Naquele dia em específico o relógio na cabeceira marcava um pouco mais de duas horas. Estava frio, mas meu corpo suava. Abri a janela do quarto para poder me refrescar, foi quando vi uma garota surgir correndo no início da rua.

Ela estava assustada, seus olhos arregalados encaravam o interior das vielas como se pudessem ver através das sombras. Procurava por algo, talvez algum fantasma escondido na penumbra. Quantas abominações poderiam estar atrás dela? Imaginei - assassinos, seres de outro mundo, a morte. Eu torci por ela naquela corrida, desejei que chegasse viva até um local seguro. Queria que ela vencesse! Ela tentava correr rapidamente e seu esforço era nítido enquanto lutava contra seus próprios joelhos, mas próximo a linha de chegada, em frente a casa ao lado, ela sucumbiu completamente, caindo numa poça de lama e ali ficando tempo suficiente para perder a corrida.

Devido a escuridão, só pude tirar alguma conclusão de quem era quando ela avançou pela rua. Suas roupas estavam sujas e ela usava um capuz na cabeça. Pensei que fosse um morador de rua, pelas vestimentas. Quando a garota caiu e não se levantou, eu não quis esperar para ver o que aconteceria. Talvez o medo do que estivesse atrás dela, me paralisasse. Talvez eu fosse simplesmente um covarde.

Na outra manhã, após dormir muito mal o restante da noite abri novamente a janela na esperança de que tudo tivesse se resolvido sozinho, mas nada disso tinha acontecido. Lá embaixo uma ambulância tirava o corpo da rua e o meu vizinho conversava com o dono de uma funerária. Aquela altura eu já sabia quem era e é muito difícil explicar a sensação que senti. Como se descreve a sensação de quase ter salvo uma vida? Aquela pessoa não era um morador de rua e mesmo se fosse, não justifica a minha falta de compaixão. Aquela pessoa era uma colega de classe e a única filha dos meus vizinhos, Alice Villa-Lobos.

Observando lá de cima, nada parecia impessoal como na madrugada anterior, aquele acontecimento, por mais que ninguém sequer pensasse que existiu, tinha se tornado pessoal demais pra mim. Meu corpo anestesiado de desespero permaneceu assim por longos minutos. Quando tive forças pra me mover, minha cabeça era mais pesada do que meu próprio corpo. Foi demorado descer as escadas até o andar inferior, na maior parte do caminho me rastejei pelas paredes. Pra ajudar com a culpa quando cheguei, ouvi os murmúrios abafados dos meus pais conversando sobre ela, visivelmente abalados.

Entrei sem pensar muito na cozinha, nela havia uma mesa posta e meus pais. Mamãe ocupava-se com a louça na pia enquanto papai tomava uma xícara de café. O cheiro do café recém passado invadiu minhas narinas, trazendo uma falsa sensação de conforto.

- Bom dia! - Minha voz saiu fraca, era como se viesse bem do fundo da garganta. - Antes que vocês tentem me avisar, eu vi a funerária na casa dos vizinhos. Quem morreu?

Naquele momento eu só precisava de uma confirmação, pra que não restassem dúvidas.

- A filha deles, foi encontrada morta na frente de casa - diz minha mãe.

Puxei uma cadeira e me sentei, a mesa era farta, mas eu não sentia fome alguma.

- Estão dizendo que foi atropelada. Pelo menos foi o que os paramédicos disseram - completou meu pai.

Pensei que talvez ela poderia ter sido atropelada depois de cair na rua, mas eu sabia que não havia sido o que realmente aconteceu.

- Me pergunto como não ouvimos nada? Teria feito um barulho alto, não? - mamãe refletiu.

Meu pai lia o jornal como sempre fazia todos os dias.

- Deve ter sido de madrugada. Estávamos dormindo - disse ele.

- O que será que ela fazia na rua de madrugada?

- Esses jovens de hoje não tem hora pra voltar pra casa, Elisa.

Minha mãe concorda com a cabeça.

- Você e ela eram amigo, não eram? - pergunta minha mãe.

- Estudávamos na mesma sala, mas não éramos amigos.

- Hunf! Você se lembra que eu te disse que essas pessoas eram estranhas, e que não queria te ver andando com a menina? Pois bem. - Papai foi altivo.

- Para de ser insensível Murilo, ela ainda era uma criança. - Retruca minha mãe.

- Mas o que eu posso fazer, Elisa? Já aconteceu e nesse ponto eu tinha razão.

Minha mãe se volta novamente as louças com um olhar de desaprovação ao comentário de meu pai.

- Eles já encontraram quem atropelou a menina? - Meu pai continua.

- E vão encontrar? Pelo visto ele fugiu sem prestar socorro, bem provável que vai ficar por isso mesmo. - Minha mãe tinha razão.

- Mas e se não foi isso o que realmente aconteceu? - disse mais rápido do que pensei.

Eles não podiam desistir de tentar descobrir a verdade assim, ainda mais por não ter sido simplesmente o atropelamento que estavam falando.

- Acho que tá na mão da polícia e da família agora. Será que descobrir a verdade será mais confortável do que simplesmente aceitar que ela se foi? - diz papai.

Minha família nunca foi próxima aos Villa-Lobos. Desde que se mudaram para a casa ao lado, foram poucas as vezes que trocamos acenos com eles. Ninguém sabe quem são ou de onde vieram. Sabemos apenas que Joaquim é pintor e que Luisa é muito doente.

Sabemos também que o pai da garota possui hábitos bastante estranhos. Todas as noites ele desce até o porão da casa e permanece lá madrugada a dentro tocando um velho violão. Além do fato dele aparentemente não dormir, ele é sempre visto sentado na frente da sua lareira apagada, até mesmo em dias frios. Nunca vi fumaça saindo da chaminé de sua casa. No fundo ele parece ser solitário e muito reservado. Agora, Luísa, a mãe da garota passava grande parte do seu tempo acamada devido a uma enfermidade que atingia seus ossos. Dizem por aí que ela é uma mulher gentil e vaidosa, mas nunca a vi fora de casa.

Meu pai volta o seu jornal ao saquinho, ao qual o mesmo foi entregue naquela manhã. Tomou o restante do seu café e pegou uma maçã na cesta de frutas. Ele encarou o relógio, aquela era sua deixa.

- Bom, estou indo para a oficina, me liga se precisar de algo no mercado, Elisa. Ah, e não se envolva no assunto dos vizinhos!

Meu pai é proprietário de uma oficina mecânica localizada á beira da rodovia que corta a cidade. É uma pessoa séria e com grandes dificuldades de demonstrar sentimentos. Já minha mãe é professora, e sua maior qualidade é a capacidade de ouvir as pessoas.

Minha mãe concordou em um aceno de cabeça, depois o beijou antes de sair.

- Tenha um bom dia no trabalho querido!

Sobraram somente eu e minha mãe na cozinha agora, encarei meu café ainda sem mexer, enquanto um silêncio desconfortável pairava pelo lugar. É óbvio que pra uma mãe, a perca de um filho, sempre afeta muito, mesmo que não seja o dela. Queria ter dito algo pra consola-la, mas naquele momento eu precisava ser consolado tanto quanto ela.

- Não vai tomar seu café? - ela pergunta.

- Não estou com fome.

- Tudo bem! Então vai lá se arrumar pra ir pro colégio.

Até aquele momento, eu ainda não tinha me tocada que precisava continuar vivendo a minha vida. Ir pro colégio naquela manhã era a última coisa que eu gostaria de fazer. A ideia de ter que encarar todos os amigos de Alice, só aumentaria ainda mais o sentimento de culpa que sentia. Não tentei pedir pra ficar em casa, na realidade, ficar em casa também era desconfortável. Subi para meu quarto e logo estava pronto.

Minha mãe era professora na minha escola, então eu sempre tinha carona. Antes de entramos no carro, na nossa varanda, ela observou a rua já vazia, a poça e o sangue ao redor dela.

- Não dá pra acreditar que isso aconteceu tão perto da gente assim, não é?

Dei de ombros porque não queria falar sobre o assunto.

Estávamos prestes a entrar no carro quando percebo Joaquim vindo na nossa direção. Ele se aproximava cada vez mais e eu o evitava cada vez menos. Não consegui olha-lo nos olhos, mas encarar sua sombra era quase impossível. No fundo eu só queria sair rapidamente dali com toda a minha culpa e enterra-las junto com Alice, mas minha mãe me segurou pela alça da mochila.

- Oi, senhora Elisa! - A voz frágil saiu de sua boca, era morta como a filha.

Minha mãe foi logo cumprimentá-lo.

- Sinto muito pela sua perda! Não consigo imaginar o quão difícil está sendo pra você e sua esposa. - Eles apertam as mãos.

Eu permaneço em silêncio, encarando fixamente o chão de concreto, enquanto rezo pra que ele não converse comigo.

O homem abatido aceita as condolências sem relutância e volta a dirigir a voz morta para mamãe.

- Obrigado! Bom, eu estava precisando fazer algumas ligações e gostaria de saber se poderia usar o seu telefone.

- Claro, pode entrar e usar o tanto que precisar. - Mamãe, foi rápida em oferece-lo ajuda, talvez instintivamente, pois ela ainda se lembrava muito bem das palavras ditas por meu pai mais cedo naquela manhã.

- Não pretendo demorar, são nesses momentos que a gente percebe a falta que faz um telefone em casa.

Mamãe concorda abrindo a porta da sala novamente.

A morte de Alice foi necessária para que a relação entre as duas famílias passasse a existir. Se não tivesse acontecido, Joaquim não estaria prestes a entrar pela primeira vez na minha casa e minha mãe não estaria tratando-o com a mesma gentileza.

- Pra quem preciso ligar mesmo? - Ele se pergunta em voz alta, tirando uma listinha de números do bolso.

Pelo que pude ver eram números de familiares, do seu chefe no trabalho, da funerária e do hospital. Era uma pena, ele acabar de perder a filha, e ter que lidar com o processo do sepultamento sozinho.

Encarei minha mãe desconfortável e ela soltou um sorriso tímido porém envergonhado.

Joaquim fez umas três ligações antes de um senhor chamá-lo na nossa porta.

- Joaquim, Joaquim!

Saímos na varanda e demos de cara com uma figura pouco carismática e bêbada. O velho estava ofegante.

- Sua esposa avisou que estaria aqui - disse o velho.

- Estou fazendo algumas ligações.

- É que me pediram pra avisar que prenderam o motorista que atropelou sua filha.

- Quem disse isso?

- A dona Rosa, esposa do policial. Aquela que trabalha no bar do senhor Simão.

Joaquim se recordou de quem ele falava.

No realidade a polícia havia apreendido um carro no bairro vizinho que estava andando com a lataria destruída. O motorista também foi levado a delegacia, mas não sabiam se ele realmente tinha atropelado alguém.

O homem desistiu imediatamente da ligação e passou a acompanhar o senhor rua abaixo.

- Você quer que eu faça alguma ligação para você? - Mamãe disse antes dele se distanciar o suficiente para não ouvi-la.

- Agradeço pelo que fez, mas não precisa!

Nos encaramos com sentimento de alívio e finalmente seguimos para o colégio.

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