Ao se aproximar do centro da cidade, o número de passageiros que entrava no veículo não parava de subir. A superlotação do ônibus intensificou a disputa de vagas por lugares. Ao lado de Sócrates, o assento foi marcado por uma dura batalha entre uma senhorinha e um homem de 54 anos, o senhor Luciano Bibar.
Na luta pela vaga, Luciano, que vestia chinelos e uma surrada camisa social entreaberta, não escondia os pelos grisalhos do seu peitoral. A vantagem física oriunda da sua obesa barriga favoreceu a vitória na cadeira do transporte coletivo.
Sócrates ao ver a cena, desliza as atenções para o semblante frustrado daquela mulher franzina. Contudo, antes de elaborar uma pergunta é interrompido pelo novo vizinho de assento. Com ares pertencentes de uma antiga classe média, agora em declínio financeiro, dirige a palavra a Sócrates:
HOMEM: - Não tá fácil não... A sua sorte é que você já tem idade avançada, o que lhe garante o assento!
SÓCRATES: Li aqui neste cartaz sobre os direitos para os denominados idosos.
HOMEM: - É... Mas melhor já ir se acostumando viu? O nosso presidente vai acabar com essa mamata de privilégios.
SÓCRATES: - Privilégios?
HOMEM: - Sim! A sociedade foi dominada por "coitadismos". Temos que entender que é a vontade da maioria que deve prevalecer.
SÓCRATES: - Perdoe-me, mas não achei uma tradução para "coitadismos"...
HOMEM: - Trata-se de pequenos grupos que buscam privilégios e querem impor ideologias! Porém, invertem a lógica: querem curvar as maiorias às minorias. Veja o caso do assento de ônibus, há décadas tínhamos, inclusive que ceder lugar para mulheres...
SÓCRATES: - Mulheres?! De onde venho, não possuem assentos especiais.
HOMEM: - Vejo que me entende! Mas, cuidado com o que você fala!
SÓCRATES: - Por quê?
HOMEM: - Se elas nos ouvem, criarão uma gritaria neste ônibus nos acusando de machismo! O que tem acontecido nesta última década é que a mulherada do movimento feminista é histérica... Usam de um discurso de coitadinhas para se sobressaírem. Se deixar, elas dividem a sociedade brasileira!
SÓCRATES: - Estimado amigo, julgas saber com precisão a respeito das mulheres, que serei ardoroso admirador. Irei empregar toda a minha atenção para não perder uma palavra sequer do que me dizes!
JOVEM: - É... Eu domino um pouco sobre o tema. Experiência pessoal: uma mulher e duas filhas em casa! Não é fácil não!
SÓCRATES: - Por Hera! O destino permitiu cruzar o caminho com um sábio. Quero te seguir, já que não sei!
JOVEM: - Tranquilo, depois te passo meu Instagram...
SÓCRATES: - Como?
JOVEM: - Redes Sociais, meu senhor. Mas, enfim, pergunte!
SÓCRATES: - Dize-me, estimado amigo, por que as mulheres podem ser definidas por "coitadismos"?
HOMEM: - Elas usam de uma posição de vítimas para conquistar vantagens e impor seus valores aos demais. Veja o caso do Brasil, possuem até cotas na política.
SÓCRATES: - Elas são uma minoria populacional, por isso as cotas?
HOMEM: - Não! No Brasil temos mais mulheres, acho que 51,5% da população.
SÓCRATES: - Então, por serem em maior número populacional, criaram uma lei para também tornarem majoritárias no Congresso? Como você disse, é a vontade da maioria que deve prevalecer sobre as minorias...
HOMEM: - Não, você tá doido? Elas acabariam com o país! O direito conquistado é de apenas 30%.
SÓCRATES: - Em cada eleição, as mulheres preenchem 30% das vagas no congresso?
HOMEM: - Também não. Cada partido tem que ocupar 30% de mulheres na candidatura da legenda partidária. Para serem eleitas é outro assunto.
SÓCRATES: - Perdoe-me a ignorância, mas não acompanhei corretamente a sua explicação. Posso retomar o raciocínio?
HOMEM: - Ok!
SÓCRATES: - As mulheres são maioria na população, porém minorias no Congresso.
HOMEM: - Exato.
SÓCRATES: - Em virtude disso, foi criada uma lei que exige vagas no pleito eleitoral, mas nada garante que elas serão eleitas.
HOMEM: - Correto!
SÓCRATES: - Logo, como elas podem ser adjetivadas de favorecidas se tampouco conquistaram lugares na política? Convém que voltemos à análise do tema. De minha parte, tenho certeza de que irá me explicar tudo sobre as mulheres!
HOMEM: - Elas querem vencer de qualquer jeito impondo valores. Hoje, utilizam do argumento de que não há diferenças por natureza entre homens e mulheres, pois se trata de uma construção social! É um absurdo! Se fizéssemos uma eleição para bailarinos e colocássemos uma cota de 50% para homens, perderíamos belíssimas bailarinas, porque a vocação da mulher é muito maior do que a do homem! Da mesma forma que a política não é muito da mulher...
SÓCRATES: - Você trouxe um ponto sobre a natureza humana que gostaria de examinar contigo, se for possível, talvez eu possa entender sobre a imposição de valores.
HOMEM: - Pode perguntar!
SÓCRATES: - Gostaria de resgatar um debate que tive com um querido amigo, o Glauco, digamos há um longo tempo.
HOMEM: - Vamos lá!
SÓCRATES: - Você afirma que homens e mulheres são diferentes por natureza.
HOMEM: - Correto!
SÓCRATES: - Portanto, a diferença é o que define as aptidões e os papéis de cada um em sociedade.
HOMEM: - Sim!
SÓCRATES: - Mas, não existem mulheres que têm uma disposição inata para a medicina ou música e outras não?
HOMEM: - Com certeza!
SÓCRATES: - E há também algumas com disposição inata para a ginástica e outras que não apreciam essas atividades.
HOMEM: - Exato!
SÓCRATES: - Muito bem! E não existem mulheres que amam e outras que odeiam estudar?
HOMEM: - Sim, existem.
SÓCRATES: - Logo, seguindo suas afirmativas, existem mulheres aptas para a política e outras não.
HOMEM: - Correto!
SÓCRATES: - Ora, não escolhemos homens dessa natureza para nos representar na sociedade?
HOMEM: - Sim, escolhemos.
SÓCRATES: - Portanto, se existem mulheres e homens com aptidões, bem como sem nenhum talento, o que os diferenciam não é o sexo, mas a aptidão de cada indivíduo na sociedade. Logo, não teriam a mesma natureza?
HOMEM: - Nossa... Você pergunta demais!
SÓCRATES: - Trata-se de uma característica da minha ocupação.
HOMEM: - Qual?
SÓCRATES: - Digamos que eu cumpro o papel de um parteiro.
HOMEM: - Como assim?
SÓCRATES: - Quando era criança, vi minha mãe Fenareta ajudar mulheres a dar à luz. Penso que minha ocupação é algo parecido, procuro auxiliar no nascimento do conhecimento. É como dar vida a novas formas de pensar, dentro de cada um, trata-se de um parto de ideias.
HOMEM: - Que viagem! Enfim, vou reformular a minha afirmativa.
SÓCRATES: - Por favor!
HOMEM: - Em todas as culturas, há uma divisão entre homens e mulheres. Porém, elas não aceitam isso... Você mesmo disse que na sua terra as mulheres não participam da política.
SÓCRATES: - De fato! Na minha cidade, Atenas, as mulheres não participam de nenhuma das atividades políticas. Elas estão confinadas a cuidar do lar.
HOMEM: - Está vendo? A tradição mostra as diferenças de natureza entre homem e mulher! O contrário é uma imposição de valores!
SÓCRATES:- Porém, em uma cidade vizinha a minha, Esparta, os papéis sociais das mulheres são diferentes!
HOMEM: - Por exemplo?
SÓCRATES: - Lá a posição da mulher é de grande destaque! Os cidadãos espartanos acreditam que a mulher é responsável por dar origens a indivíduos para comporem o exército.
HOMEM: - Sim, mas isso não nega o que eu te disse. O papel da mulher é de ser mãe, algo que as feministas querem acabar!
SÓCRATES: - Não só isso, estimado amigo. Lá as mulheres são responsáveis por controlar as finanças, participarem de reuniões públicas ligadas à vida política, além de dedicarem aos jogos esportivos. Assim, por que duas cidades vizinhas apresentam papéis distintos sobre a tradição?
HOMEM: - Bem, eu não conheço essa cidadezinha aí de Esparta que você está falando. O mundo é muito grande, infelizmente tem de tudo. De qualquer forma, você citou Atenas, né?
SÓCRATES: - Sim, de onde venho!
HOMEM: - Pois bem, se a natureza fosse igual, nós não teríamos aptidões distintas. Um exemplo é a filosofia! Veja os primeiros filósofos da Grécia. Por que não há registros de mulheres?
SÓCRATES: - Um ponto interessante! Porém, não havia mulheres por não terem aptidões ou os registros históricos não as consideravam?
HOMEM: - Elas não estavam presentes... Não tinham aptidões para tal!
SÓCRATES: - Em minha formação, apesar de eu ter sido discípulo de Anaxágoras, Arquelau e Pródico, foi Diotima de Mantinea responsável por introduzir-me o método de interrogação. Não menos importante, citaria a Aspásia de Mileto. Ela era altamente literata, membro do círculo de Péricles e me orientou, sobretudo na arte da retórica.
HOMEM: - Você não pode usar um caso único, a sua experiência de vida para generalizar! Veja que homens e mulheres são diferentes biologicamente. Nascem com órgãos reprodutores específicos. Logo, os seus papéis sociais são distintos, e não me refiro à política, esporte e arte, mas à função da família!
SÓCRATES: - Dentre os diversos órgãos que formam o corpo humano, é o reprodutor, por sua diferença e funcionalidade que determina essa distinção?
HOMEM: - Sim, o que definimos por sexo!
SÓCRATES: - E a diferença seria um atributo de qual substância?
HOMEM: - Você quer dizer quem é o criador, né?
SÓCRATES: - Sim.
HOMEM: - A própria natureza!
SÓCRATES: - Vejamos se compreendi! A natureza é a instância superior?
HOMEM: - Sim, perfeita!
SÓCRATES: - E a partir do sexo, sua perfeição se manifesta na criação de homens e mulheres com suas funções específicas.
HOMEM: - Correto.
SÓCRATES: - Porém, se a criação vem de uma instância perfeita, por que há pessoas que nascem com dois órgãos genitais ou com funcionalidades distintas do dito padrão?
HOMEM: - Esses casos são aberrações! Mas, a medicina está ao nosso serviço para reparar os danos.
SÓCRATES: - Nesse caso, alguém que possui dois órgãos genitais ou diferentes do padrão se submete a um procedimento médico?
HOMEM: - Sim!
SÓCRATES: - E terá que fazer uma escolha?
HOMEM: - Claro! Ele ou ela não sei, até me confundo com essa bagunça de gênero, e os médicos decidirão qual órgão irá manter ou reconstituir.
SÓCRATES: - Então, a escolha do sexo será a partir do próprio sujeito. Ele ou ela quem irá condicionar o seu papel social na sociedade.
HOMEM: - Sim!
SÓCRATES: - Mas, antes você disse que a natureza é perfeita. Portanto, ou ela não cometeu nenhum um erro e não há um padrão que distinga a natureza dos homens e mulheres, ou errou e, logo, não se pode afirmar a sua tese da perfeição. Assim, você ainda não me explicou a imposição dos valores das mulheres. De qualquer forma, pela sua sabedoria, não tenho dúvidas que detalhará tudo o que o sabes sobre o tema. Retomemos ao assunto...
HOMEM: - Meu ponto está chegando, senhor. Terei que me preparar para sair!
SÓCRATES: - Vais partir meu caro amigo? Então, destruirá a grande esperança que alimentava de aprender de ti sobre as mulheres. Saudações, e que Afrodite te acompanhe!