O assassinato no campo de gol...

By ClassicosLP

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Obra da inglesa Agatha Christie. More

I - Uma companheira de viagem
II - Um pedido de socorro
III - Na Villa Geneviève
IV - A carta com a assinatura de "Bella"
V - A história de Mrs. Renauld
VI - A cena do crime
VII - A misteriosa Madame Daubreuil
VIII - Um encontro inesperado
IX - Monsieur Giraud descobre novas pistas
X - Gabriel Stonor
XI - Jack Renauld
XIII - A moça dos olhos ansiosos
XIV - O segundo corpo
XV - Uma fotografia
XVI - O caso Beroldy
XVII - Nossas novas investigações
XVIII - Giraud entra em ação
XIX - Eu uso minha massa cinzenta
XX - Uma declaração surpreendente
XXI - Hercule Poirot em cena
XXII - Descubro o amor
XXIII - Dificuldades no horizonte
XXIV - Salve-o!
XXV - Uma descoberta inesperada
XXVI - Recebo uma carta
XXVII - A versão de Jack Renauld
XXVIII - Fim da jornada

XII - Poirot elucida certos pontos

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By ClassicosLP

— Por que tirou as medidas daquele sobretudo? — perguntei, com alguma curiosidade, enquanto descíamos caminhando calmamente pela estrada quente e ensolarada.

— Parbleu! Para saber o comprimento, oras! — respondeu meu amigo, sem se alterar.

Aquilo me irritou. O hábito incurável de Poirot de fazer mistério das mínimas coisas sempre me deixava com raiva. Fiquei em silêncio e procurei me concentrar nos detalhes do caso por minha própria conta. Embora não tivesse dado atenção a algumas palavras de mrs. Renauld no momento em que foram pronunciadas para seu filho, agora elas assumiam certos significados especiais para mim: "Quer dizer então que não embarcou?", ela tinha perguntado a ele e, em seguida, afirmara: "Afinal, agora isso já não importa mais".

O que ela quis dizer com aquilo? Eram palavras enigmáticas e cheias de significado. Será que ela sabia algo mais do que podíamos supor? Ela havia negado conhecer qualquer detalhe sobre a misteriosa missão que o marido havia destinado ao filho, mas talvez estivesse fingindo. Talvez pudesse ter elucidado alguma coisa para nós, mas havia ficado em silêncio propositalmente, como parte de um plano premeditado.

Quanto mais eu pensava nisso, mais me convencia de que mrs. Renauld sabia mais do que havia nos contado. Em sua surpresa ao ver o filho, momentaneamente havia traído a si mesma. Estava convencido de que, se ela não sabia quem eram os assassinos, pelo menos tinha conhecimento do motivo do crime, mas guardara silêncio por razões muito fortes.

— Você está tão reflexivo, meu amigo — observou Poirot, interrompendo meus pensamentos. — O que está deixando você tão intrigado?

Revelei a ele meu raciocínio, convicto do que dizia, porém esperando que ele fosse ridicularizar minhas suspeitas. Entretanto, para minha surpresa, ele concordou com o que eu disse.

— Você está certo, Hastings. Desde o início suspeitei que ela estivesse escondendo alguma coisa. Se não fosse a mentora do crime, ao menos seria conivente com o que aconteceu.

— Você chegou a suspeitar dela? — perguntei, surpreso.

— Certamente que sim. Ela se beneficia enormemente do testamento. Na verdade, pelo testamento mais recente, ela é a única beneficiária. Então, logo de cara, ela mereceu minha atenção. Talvez você tenha notado que eu logo me interessei por examinar seus pulsos. Eu queria verificar a possibilidade de ela própria ter se amarrado. Eh bien! Mas constatei que não havia farsa nesse sentido, pois as cordas foram atadas de forma tão violenta que chegaram a machucá-la. Isso afastava a possibilidade de ela ter cometido o crime sozinha. No entanto, ainda era possível que ela tivesse sido conivente ou que tivesse induzido alguém a praticar o ato. Além disso, a história, da forma como ela nos apresentou, me pareceu muito familiar: homens mascarados e irreconhecíveis, a menção a um "segredo"... Eu já havia ouvido ou lido esse tipo de coisa em algum lugar. Um outro pequeno detalhe confirmou minha crença de que ela não estava falando a verdade: o relógio de pulso, Hastings... o relógio de pulso!

Ora, mas de novo esse relógio de pulso! Poirot me fitava com curiosidade.

— Está vendo, mon ami? Está compreendendo?

— Não — respondi, mal-humorado. — Não estou vendo nem entendendo nada. Você vem com todos esses mistérios confusos e não adianta me pedir para explicar porque você sempre guarda uma última carta na manga até o final.

— Não se irrite, meu amigo — disse Poirot, sorrindo. — Posso explicar, se quiser. Mas nem uma palavra para Giraud, c'est entendu? Ele me trata como um velho ultrapassado sem nenhuma importância! Ora, veremos! E pensar que, por ser justo, acabei dando uma pista para ele. Se ele optar por não utilizá-la, azar é o dele!

Assegurei a Poirot que ele podia confiar em minha discrição.

— C'est bien! Então é hora de usarmos nossas massas cinzentas. Diga-me, meu amigo, a que horas, em sua opinião, o crime aconteceu?

— Ora, por volta das duas horas — respondi, confuso. — Como você pode se lembrar, mrs. Renauld nos disse que ouviu o relógio dar duas badaladas enquanto os homens estavam dentro do quarto.

— Exatamente. E, em vista disso, você, o delegado, o comissário Bex e todo mundo aceitam esse horário sem questionamentos. Porém eu, Hercule Poirot, afirmo que madame Renauld mentiu. O crime aconteceu ao menos duas horas antes.

— Mas os médicos...

— Os médicos declararam, após exame do corpo, que o óbito ocorreu entre dez e sete horas antes. Mon ami, por alguma razão, era essencial para os assassinos que o crime parecesse ter ocorrido mais tarde do que realmente aconteceu. Nunca leu na crônica policial sobre relógios quebrados que marcam a hora exata de um crime? Para que o horário deste assassinato não dependesse apenas do testemunho de madame Renauld, alguém adiantou os ponteiros daquele relógio para exatamente duas horas da manhã e então o atirou no chão com violência. No entanto, como às vezes acontece, o resultado frustrou as expectativas: o vidro se espatifou, mas o mecanismo do relógio não foi afetado. Foi sua atitude mais infeliz porque, em razão disso, minha atenção se voltou para duas coisas: primeiro, que madame Renauld estava mentindo. Segundo, que houve um motivo vital para que a hora do crime fosse adiada.

— Mas qual seria o motivo para isso?

— Ah, esta é a questão! O mistério todo se concentra agora neste ponto. Por enquanto, ainda não posso dar explicações. Apenas um fato me parece relacionado a isto.

— Que fato?

— O último trem partiu de Merlinville dezessete minutos depois da meia-noite.

Refleti sobre isso.

— Isso quer dizer que, tendo o crime ocorrido aparentemente duas horas mais tarde, qualquer pessoa que houvesse partido naquele trem teria um álibi inquestionável!

— Perfeito, Hastings! Você compreendeu!

Fiquei radiante.

— Contudo, precisamos averiguar na estação! Certamente irão se lembrar de dois estrangeiros tomando o trem! Temos de ir até lá imediatamente!

— Acha mesmo, Hastings?

— Claro! Vamos lá agora mesmo.

Poirot refreou meu impulso tocando-me de leve no braço.

— Se você realmente quer ir até lá, mon ami, então vá... Mas se você for, não faça perguntas sobre dois estrangeiros exatamente.

Encarei-o e ele me disse um tanto impaciente:

— Là, là, não me diga que acredita realmente naquela fanfarronice, não é? Aqueles dois mascarados e todo o resto daquela historinha.

Suas palavras me deixaram tão intrigado que eu mal sabia o que responder. Ele continuou calmamente:

— Lembra-se de quando eu disse a Giraud que todos os detalhes deste crime me pareciam familiares? Eh bien, isso me leva a pressupor duas coisas: ou o mentor do primeiro crime também idealizou este ou então a história de alguma cause célèbre influenciou inconscientemente esse assassino, de modo que o crime saiu semelhante a outro anterior. Posteriormente poderei elucidar isto melhor... — e parou de falar.

Fiquei tentando estabelecer relação entre várias coisas que me confundiam.

— Mas o que me diz da carta de mr. Renauld? Nela, ele menciona Santiago e um segredo!

— Não há dúvida de que havia um segredo na vida de monsieur Renauld. Por outro lado, tenho a impressão de que esse negócio de Santiago não passa de um engodo para nos distrair da pista correta. É possível que tenha sido utilizado desde o início com o próprio monsieur Renauld, a fim de desviar sua atenção para um perigo que estava, na realidade, bem mais próximo dele do que ele podia imaginar. Pode ter certeza, Hastings, o que o ameaçava não estava em Santiago, mas bem aqui perto, na França mesmo.

Poirot estava tão sério e falava com tanta convicção que não pude deixar de crer em suas palavras. Contudo, ainda fiz uma objeção:

— Mas e o palito de fósforo e a guimba de cigarro que foram encontrados próximos ao cadáver? O que me diz disso?

Um ar divertido surgiu no rosto de Poirot.

— Plantados! Foram deliberadamente plantados lá para que Giraud ou alguém da corja que o acompanha os encontrasse. Ah, como é esperto aquele Giraud! Sabe fazer truques! Que nem um cão de guarda. Fica se rastejando pelo chão farejando coisas para poder dizer: "Veja só o que encontrei". E, então, para mim: "O que está vendo aqui?" Eu, certamente, só posso responder com base na mais pura verdade: "Nada". E Giraud, o grande Giraud, ri e pensa consigo mesmo: "Aquele imbecil, aquele velho". Mas veremos...

Contudo, eu estava interessado nos fatos realmente importantes.

— Quer dizer que toda essa história de homens mascarados...

— É falsa.

— O que aconteceu realmente?

Poirot fez um gesto com os ombros.

— A pessoa que poderia nos contar isso é madame Renauld, mas ela não vai fazer nada. Nenhuma ameaça ou artimanha será capaz de fazê-la falar. É uma mulher notável, Hastings. Assim que a vi pela primeira vez, reconheci nela uma mulher de caráter excepcional. Em primeiro lugar, conforme eu lhe disse, suspeitei da participação dela no crime. Mais tarde, mudei de opinião.

— O que o levou a mudar de ideia?

— O pesar espontâneo e autêntico ao ver o marido morto. Posso jurar que a agonia daquele grito foi da mais pura sinceridade.

— De fato — concordei, refletindo —, a gente não se engana com essas coisas.

— Sinto discordar, meu amigo... Sempre podemos estar enganados diante das demonstrações de emoção. Considere o trabalho de uma grande atriz: sua atuação numa cena de grande dramaticidade é capaz de impressionar com seu senso de realidade. Apesar da minha forte impressão em relação a madame Renauld, eu precisava de mais provas antes de me dar por satisfeito, pois o grande criminoso pode ser também um grande artista. Minha certeza em relação a ela não deriva de minha própria impressão apenas, mas do fato inegável de que madame Renauld desmaiou de verdade. Eu ergui sua pálpebra e tomei-lhe o pulso. Ela não estava fingindo. Ela realmente teve uma crise de nervos. Por isso, fiquei satisfeito em saber que sua angústia era autêntica. Além do mais, um pequeno detalhe adicional, aparentemente sem importância, confirma o que estou dizendo. Madame Renauld não tinha mais necessidade de demonstrar tanto desespero diante do corpo do marido. Ela já havia tido um ataque quando soube da morte dele, então não havia mais necessidade de outra demonstração tão forte de sofrimento. Não, madame Renauld não é a assassina. Mas por que mentiu? Ela não falou a verdade sobre o relógio de pulso nem sobre os homens mascarados. E mentiu sobre um terceiro fato. Diga-me, Hastings, como você explica a porta da frente ter ficado aberta?

— Bem — respondi, meio embaraçado —, acho que foi por descuido. Eles se esqueceram de fechá-la.

Poirot balançou a cabeça e suspirou.

— Esta é a explicação de Giraud. Não me satisfaz. Aquela porta escancarada tem um significado que ainda não consegui destrinchar. Porém tenho certeza de uma coisa: eles não saíram pela porta, mas sim pela janela.

— O quê?

— É isso mesmo.

— Mas não havia pegadas no canteiro do lado de fora.

— É verdade, mas devia haver. Ouça, Hastings: o jardineiro, Auguste, conforme você mesmo o ouviu comentar, trabalhou naqueles canteiros na tarde anterior. Em um deles, há marcas evidentes de suas próprias botas. No outro, porém, não há nenhuma! Você compreende? Alguém passou um ancinho por ali a fim de encobrir as próprias pegadas.

— Mas onde conseguiram o ancinho?

— No mesmo lugar onde encontraram uma pá e um par de luvas de jardinagem — respondeu Poirot, impaciente. — Não há nenhuma dificuldade nisso.

— Mas o que o leva a crer que eles saíram pela janela? Acho que seria mais provável que tivessem entrado pela janela e saído pela porta.

— É claro que isso é possível, mas tenho um forte pressentimento de que, de fato, saíram pela janela.

— Acho que você está errado.

— Talvez, mon ami.

Fiquei refletindo sobre o novo âmbito de conjeturas que as deduções de Poirot expunham para mim. Lembrei-me do quanto havia ficado surpreso quando ele se referira às pegadas nos canteiros pela primeira vez, sem falar no relógio de pulso. Naquele momento, essas referências não haviam feito nenhum sentido para mim. Agora, era surpreendente ver como ele conseguia tirar conclusões desses pequenos incidentes e como eles eram importantes para ajudar a desvendar o caso. Naquele instante, eu estava secretamente lhe rendendo uma homenagem atrasada.

— Por enquanto — exclamei, retomando a conversa —, embora saibamos bem mais do que sabíamos no início, ainda não estamos mais próximos de resolver o mistério de quem matou mr. Renauld.

— Não mesmo — disse Poirot, animado. — De fato, estamos ainda mais distantes dessa possibilidade do que estávamos antes.

Isso parecia causar nele uma satisfação tão peculiar que acabei encarando-o, intrigado. Ele me devolveu o olhar e sorriu.

De súbito, então, uma ideia me ocorreu.

— Poirot! Mrs. Renauld... estou entendendo agora. Ela deve estar acobertando alguém.

Em virtude da calma com que Poirot recebeu meu comentário, percebi que a mesma ideia já havia ocorrido a ele também.

— Sim — ponderou. — Pode estar protegendo uma pessoa... ou, quem sabe, ocultando alguém? Das duas, uma.

E, como entrássemos no hotel, ele me fez um sinal para que parássemos de falar nesse assunto.


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